Mão Furada

Era uma vez um jovem príncipe chamado Martelo, filho do rei Poliandro, conquistador temido pelos inimigos e pelos súditos. Vivia ao Norte da África, em um reino próspero, onde os professores eram sábios seqüestrados na Grécia e os médicos escravos egípcios. Os criados, trazidos da Ásia e da África, tinham direito ao cultivo do espírito pelas ciências, artes e filosofia. O castelo do rei guardava muitas riquezas, mas sua corte era um típico “ninho de serpentes e escorpiões”, onde reinavam as paixões, a luta pelo poder e a falsa moral. Intrigas, traições e feitiçaria eram armas usadas amiúde por gente ambiciosa e sem escrúpulos.

Martelo tinha seis irmãos homens e a ele caberia uma parte do reino quando o velho Poliandro morresse. Ao completar 21 anos, o rei seu pai determinou-lhe que se casasse. Ele escolheu como noiva a bela jovem Luz de Luar, sem perceber que era vítima das artes mágicas da futura sogra, a feiticeira Viviana. Para garantir para si e para sua filha uma parte do poder e da riqueza do reino, Viviana usou de artes mágicas e fez Martelo apaixonar-se por sua filha. Ambos casaram-se, mas logo o efeito dos filtros enfraqueceu-se, o encantamento inicial da união se desfez. Depois de pouco tempo de casados Martelo e Luz de Luar passaram a sentir-se infelizes.

Certa noite, ao assistir a um espetáculo de dança na corte de Poliandro, Martelo sentiu-se atraído pela graça de uma dançarina africana de negros olhos brilhantes e sorriso sedutor chamada Rosa Vermelha. Alcoolizado, o príncipe determinou aos criados que a levassem até seus aposentos. Os criados o advertiram de que a jovem era noiva de Gracien, um dos escravos da casa do rei, príncipe de um pequeno reino conquistado e destruído, estudante de Medicina, e que o rei não toleraria que um filho seu não respeitasse a união de dois servos protegidos seus e cometesse adultério abertamente. Martelo disse aos criados que, assim sendo, a todos deixaria em paz.

Contudo, não desistiu de satisfazer o desejo de possuir Rosa Vermelha. Contratou secretamente um bando de salteadores para que raptassem Gracien e o vendessem em um país distante. Realizado o plano, Martelo aguardou algum tempo para que Rosa Vermelha se recuperasse do choque inicial da perda e passou a cortejá-la. Mandou flores para a dançarina e a convidou a participar de atividades artísticas em sua residência, onde poderia estudar e cultivar o espírito com mestres orientais. Rosa Vermelha suspeitava das intenções de Martelo mas, pensando nas vantagens que a amizade do príncipe lhe proporcionaria, aceitou o convite. Assim o jovem e infeliz príncipe pôde aproximar-se da dançarina e com o tempo ambos afeiçoaram-se um ao outro, tornando-se amantes. Luz de Luar revoltava-se com infidelidade do marido, mas sua mãe a aconselhava a manter-se calada, pois enquanto assim o fizesse garantiria a vida e a riqueza de ambas.

Passaram-se alguns anos e aconteceu que tribos bárbaras invadiram o reino de Poliandro, reduzindo tudo a cinzas. Durante a batalha, Martelo foi ferido na mão direita com um ferro em brasa, ficando nela um buraco por onde se podia ver de um lado a outro. Durante três dias ele permaneceu desacordado, caído nos escombros da cidade, enquanto os bárbaros se dedicavam a saquear os restos do poderoso reino destruído.

Assim que pôde, tratou de fugir para bem longe. Sem procurar pelos parentes e amigos sobreviventes, deixou a cidade e dirigiu-se ao Oriente, disposto a começar uma vida nova em algum lugar distante. Viajou muito, atravessando o Cáucaso, a Pérsia e a Índia. Dirigiu-se à Arábia, contornou o Mar Vermelho, cruzou o Delta do Egito e depois contornou o deserto imenso, peregrinando pelas savanas, até encontrar o Atlântico. Chegou a uma cidade que existia ao sul de Gibraltar, chamada Arvoredo, onde resolveu estabelecer-se. Com as moedas que trazia consigo, adquiriu mercadorias e montou um pequeno bazaar. O negócio era bom mas não prosperava, pois tudo o que ganhava durante o dia o ex-príncipe gastava à noite. Seus amigos diziam que ele jamais ficaria rico, pois tinha a mão furada e nela não se detinha o dinheiro, e que esta seria sua maldição.

Certo dia Martelo viajou até Palmares, cidade vizinha de Arvoredo, onde pretendia adquirir novas mercadorias para negociar em seu bazaar. Para seu espanto, lá encontrou Rosa Vermelha e Gracien, que ali viviam há muitos anos e eram proprietários de um próspero artesanato de tapetes. A surpresa de Martelo foi grande, mas ao perceber que não fora reconhecido pelos seus antigos criados, apresentou-se com o nome de Martius Mão Furada.

Mão Furada tornou-se amigo do casal e guardou em segredo sua identidade. Os anos de sofrimento e a peregrinação por inúmeras terras distantes o haviam tornado cauteloso e paciente, embora não tivessem sido suficientes para dar-lhe o controle sobre as paixões, que ainda queimavam com força em seu coração, de modo que o desejo por Rosa Vermelha reacendeu-se e passou a atormentá-lo como antes. Como não podia declarar-se, nem tinha como tomar a mulher de Gracien, manteve seus sentimentos em segredo, aguardando um momento propício para novamente possuir a sedutora dançarina de negros olhos brilhantes e sorriso sedutor.

Desse dia em diante, para Mão Furada qualquer pequeno incidente era motivo ir até Palmares a negócios. Lá procurava encontrar-se fortuitamente com Rosa Vermelha, que às vezes dava sinais de reconhecer o príncipe Martelo na pessoa de Martius Mão Furada, e dava a entender que aceitava seu cortejo secreto, fazendo aumentar as esperanças de seu antigo amante. Em seguida, dissimulava e fingia nada perceber, mas também ela não tinha segurança sobre seus sentimentos e se divertia exercendo sem escrúpulos o imenso poder de sedução com que fora dotada.

Um belo dia o príncipe Excelcius, filho do rei de Palmares, comprava tapetes no mercado quando conheceu Rosa Vermelha e tomou-se de paixão por seus negros olhos brilhantes e sorriso sedutor. Desse dia em diante o príncipe de Palmares passou a cortejar a vendedora de tapetes, sem se importar com os sentimentos e a honra de Gracien, que percebia tudo mas não tinha meios para repelir Excelcius e o bando de áulicos e de soldados que sempre acompanhavam o príncipe corrupto. Mão Furada soube do fato e reuniu-se secretamente a um bando de mercenários, a quem contratou para matar o príncipe Excelcius. Não o fazia por Gracien, mas por si próprio. Aguardou uma noite propícia e armou emboscada, executando o assalto. O resultado, porém, não foi o esperado. Excelcius foi gravemente ferido, mas sobreviveu, e durante o duelo reconheceu o rosto de Mão Furada, a quem jurou perseguir até a morte.

O episódio teve sérios desdobramentos políticos. O rei de Palmares, vendo o filho ferido por assaltantes provenientes de Arvoredo, preparou-se para a guerra, mas o rei de Arvoredo, sabendo do fato, adiantou-se e mais rápido preparou seu exército para invadir Palmares. Tinha a seu favor o fato de o príncipe Excelcius estar ferido e seu pai, o velho rei de Palmares, não ter mais forças para comandar a guerra de forma eficiente. Iniciada a invasão de Palmares, Mão Furada, que se colocara entre os soldados do rei de Arvoredo, aproveitou-se da confusão da batalha e raptou Rosa Vermelha, fugindo em direção ao mar, onde embarcou sem revelar o rumo que tomaria.

Foi assim que os amantes, novamente reunidos, chegaram às férteis terras da Gálea, onde Mão Furada comprou uma taberna e plantou vinhas. O negócio era bom mas não prosperava, pois a maldição de seu dono era ter a mão furada, onde não conseguia reter o dinheiro ganho, sempre dissipando com festas para si e para os amigos, pagando qualquer preço sem negociar o preço justo, deixando que qualquer espertalhão lhe tomasse o que tinha no bolso.

Sete anos se passaram, até que na taberna hospedou-se um homem que os reconheceu. Era Excelcius, que depois da queda de Palmares, tendo sido seu pai deposto e preso, se tornara mercador e viajava pelo mundo negociando tapetes, sempre cercado de turbulento bando de ajudantes e soldados.

Naquela noite, Rosa Vermelha serviu-lhe comida e bebida e o visitante em dado momento a segurou pelo braço, convidando-a a segui-lo mundo afora. A mulher agradeceu polidamente o convite, fingindo aceitá-lo, mas retirou-se assustada. Contou tudo para Mão Furada, pedindo-lhe que fugissem imediatamente. Mão Furada, porém, estava de mau humor naquele dia e disse que ela poderia fugir se quisesse, mas que ele ficaria exatamente onde estava. Rosa Vermelha juntou rapidamente seus pertences mais preciosos, chamou uma criada de sua confiança e no mesmo instante partiu, sem despedir-se nem dizer para onde iria. Na manhã seguinte Excelcius percebeu que a mulher havia desaparecido e mandou os soldados de seu bando prenderem Mão Furada. O mercador exigiu que o taberneiro dissesse onde estava a mulher e, como não obtivesse resposta que o satisfizesse, com a ajuda de seus homens agarrou o braço do taberneiro, colocando sua mão sobre a mesa de madeira e fincando um punhal no buraco da mão. E para impedir que ele livrasse facilmente da incômoda posição, amarrou o braço esquerdo em uma coluna da taberna, de modo que para Mão Furada livrar-se precisaria rasgar a mão no fio do punhal cravado na mesa. Rindo e se divertindo, o mercador e seu bando saquearam a estalagem e atearam-lhe fogo, fugindo com seus cavalos e burros de carga. Sufocado pelo calor e pela fumaça, Mão Furada perdeu os sentidos, ficando seu corpo inerte por três dias, entre escombros e brasas, até que apareceu um viajante e o salvou, tratando de suas feridas.

O seu salvador era Gracien, que viajava pelo mundo à procura de Rosa Vermelha desde que Palmares havia sido destruída. Quando Mão Furada recuperou a saúde, revelou a Gracien que ele e Martelo eram a mesma pessoa. Propôs tornar-se seu escravo e ajudar a procurar Rosa Vermelha, porém Gracien sentiu repugnância pelo príncipe traiçoeiro, cuja pele queimada, repuxada pelas cicatrizes das queimaduras, era agora a imagem do castigo dos infernos. Não aceitou a oferta de servidão, mas consentiu que Mão Furada o acompanhasse até que encontrassem a mulher, desde que, finda a missão, ambos tomassem rumos opostos.

A busca já durava alguns anos quando, desembarcando em algum lugar do Oriente Médio, os viajantes tiveram informações de que o mercador Excelcius estava acampado na região. Mão Furada propôs a Gracien a execução imediata de um plano de vingança. Este porém não aceitou, preferindo esquecer o ódio e apenas continuar procurando sua mulher, pois não tinha outro objetivo que o animasse a viver e a peregrinar ou estabelecer-se. Foi assim que Gracien seguiu viagem e Mão Furada, nutrindo desejo de vingança contra Excelcius, deixou-se ficar.

Ao sondar o acampamento do mercador, a fim de traçar a estratégia de ataque, Mão Furada descobriu que Rosa Vermelha fazia parte do bando. Excelcius a havia tornado sua concubina, regalando-a com muitos presentes e com todo o conforto possível na vida nômade. Para ocupar o tempo, Rosa Vermelha tecia tapetes e ensinava outros artesãos. Sorrateiramente, Mão Furada entrou na tenda de Rosa Vermelha. A mulher levou um grande susto e custou acreditar que se tratava do príncipe Martelo, seu amante, agora transformado pelo fogo em horrenda figura. A mulher disse-lhe que preferia permanecer com Excelcius e não o acompanharia, a menos que fosse para levá-la até Gracien. Mão Furada sentiu-se humilhado e pela primeira vez em toda sua vida derramou lágrimas. Tomou de um punhal para cravar em seu próprio coração, mas Rosa Vermelha, tomada de compaixão, fitou-o com seus negros brilhantes e o sorriso sedutor, e deu-lhe esperanças de um dia tornar a amá-lo, desde que desistisse de seu plano de vingança. Mão Furada, acostumado com as armadilhas do mundo, não acreditou que ela falava com seriedade e afastou-se prometendo que tornaria a vê-la em breve. Contudo, não tinha a certeza de que um dia cumpriria sua promessa.

Os dias se passaram e Mão Furada, com o espírito agora atormentado por sentimentos contraditórios, pois desejava vingar-se e recuperar sua amada, e ao mesmo tempo desejava estabelecer-se e prosperar como nunca conseguira antes, e tinha consciência do lamentável estado de seu corpo. Sentia-se morrer, e foi assim que juntou-se a uma comunidade religiosa que vivia nas montanhas. Orientado pelos monges, tratou de esquecer tudo quanto o magoava e resolveu que ali passaria o resto dos dias, trabalhando arduamente de sol a sol para cultivar terras semi-áridas, praticando a caridade e estudando em silêncio os mistérios dos iniciados.

Enquanto isto o acampamento de Excelcius prosperava, impulsionado pelo comércio de tapetes e obras de arte, e se transformava rapidamente em uma cidade, que veio a receber o nome de Nova Palmares. Rosa Vermelha descobriu onde Mão Furada estava agora vivendo, nas montanhas não muito distantes, e secretamente passou a visita-lo. Ambos, sentados sobre as pedras de uma colina próxima, conversavam longamente durante as tardes, até as sombras se tornarem longas e o sol iluminar as nuvens com as cores especiais do poente. Mão Furada levava sementes de flores e as espalhava, para que germinassem por todo canto. Outras vezes fazia voar ao vento pequenos objetos que um amigo chinês lhe ensinara a fabricar com varetas de madeira leve e flexível, recobrindo as armações com finas folhas de papyro, ou com lâminas brancas e flexíveis preparadas com a palha do arroz. Tais objetos recebiam a forma de pássaros, dragões ou de simples caixas que voavam com a força do vento, presas a longos cordéis torcidos de linho ou seda. Rosa Vermelha levava sua harpa e passava a tarde executando as músicas que conhecia. Depois dos encontros cada um voltava à sua vida, ela à cidade e ele ao mosteiro.

Aconteceu porém que Nova Palmares foi invadida e tomada por um exército conquistador. Durante a batalha, Excelcius fugiu, deixando Rosa Vermelha para trás, levando consigo, na fuga, apenas as concubinas mais jovens. Abandonada, a mulher cujo amor fora disputado por três príncipes, tornou-se mendiga entre as ruínas de Nova Palmares. Quando a cidade começou a ser reconstruída, ela tornou-se serva de uma casa de artesãos, pois era exímia tecelã de tapetes, e passou a trabalhar sem descanso e sem permissão para ausentar-se a fim de visitar o monge Mão Furada. Resignada, acreditava que assim passaria o resto de seus dias, agora com os olhos menos brilhantes e o sorriso menos sedutor, mas o destino ainda lhe reservava surpresas. Pouco tempo se passou e Gracien chegou a Nova Palmares, descobrindo-a. Usando parte da pequena fortuna que amealhara nas andanças sem rumo, resgatou-lhe a liberdade e estabeleceu-se no antigo negócio da tapeçaria. O casal estava novamente unido e tornou a prosperar.

Certo dia Gracien soube da comunidade religiosa que vivia nas montanhas próximas e tomou-se de curiosidade. Rosa Vermelha contou-lhe então tudo o que sucedera desde que Mão Furada entrara furtivamente no acampamento de Excelcius. Gracien, para quem a vida longa e a prosperidade engrandeceram seu bom coração, resolveu visitar o ex-príncipe, e o encontrou alquebrado pelo trabalho e pelos prejuízos à saúde causados pela mão defeituosa e pelas queimaduras. Tornaram-se amigos e Gracien e Rosa Vermelha visitaram Mão Furada muitas vezes, até o dia em que o encontraram no leito de morte. Como puderam, com remédios aliviaram a dor dos últimos momentos e quando o príncipe Martelo Mão Furada morreu prepararam para ele um singelo túmulo entre as pedras ensolaradas e as flores que ele próprio semeara na colina próxima ao mosteiro, mandando gravar em uma placa de metal a seguinte inscrição:

Aqui jaz Mão Furada,

um homem que foi

príncipe e pária,

demônio e anjo.

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 14/08/2018
Reeditado em 10/03/2024
Código do texto: T6418756
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