Dois amigos
D O I S A M I G O S
Era uma vez, dois amigos inseparáveis: a cabeça e o coração. A cabeça era lógica, planejava as ações e seguia à risca os planos traçados. Era astuta, ladina, convincente. Tinha cultura, imaginação e idéias brilhantes. Incansável nas suas maquinações e fiel aos seus conceitos. Seus princípios, eram inabaláveis e suas convicções, irremovíveis. Acima de tudo, era prática e, suas soluções, as mais simples e diretas. Era muito diferente do seu grande amigo, o coração. Poder-se-ia até dizer, o seu oposto. Este, era sensível, doce, meigo, suave, carinhoso. A ilusão e o amor habitavam o seu íntimo. Os sentimentos de ternura e compaixão norteavam seus caminhos. A saudade era companheira de infância e a solidão, de vez em quando, vinha visitá-lo, amigavelmente. Enquanto a cabeça se ocupava de negócios, o coração fazia poesias e cantava canções melodiosas. Mesmo assim, tão distintos, eles eram profundamente unidos e, sem se compreenderem, se estimavam tanto, que seria quase impossível um viver sem o outro.
Um dia, o coração adoeceu gravemente. Esta crise poderia até levá-lo à morte. Estava acometido por um amor fracassado e isto consumia todas as suas forças. Prostrava-o preso e sem ação, no seu interior.
A cabeça ficou inconsolável, com a notícia; mas, prática como era, pensou, imediatamente, em uma solução. Hipnotizá-lo-ia para saber a origem de tudo. Influenciaria seu comportamento. Anestesiaria com amnésia a sua dor. Desenraizaria esta causa e livraria o amigo desta aflição.
Tão logo quanto pensou, colocou em movimento esta idéia. Levou o coração para um local bem tranqüilo, ambiente de perfeita harmonia e calma. Lugar ideal para execução de seu plano.
O coração seguiu-a serenamente, confiante de que melhoraria o seu estado e amenizaria seu sofrimento. Era tão grande a angústia que sentia, o aperto interno, a garganta com um soluço estrangulado, a lágrima presa e o pranto seco, que qualquer coisa seria preferível, a esta sensação. Talvez a cabeça estivesse certa e esta era a melhor maneira para solucionar o seu problema.
Prepararam-se os dois, para a operação. Em voz monótona, a amiga começou a agir. Ia dizendo ao coração que ficasse calmo, que relaxasse os músculos, que a tensão dos nervos, pouco a pouco, afrouxaria. Uma imensa nuvem morna e confortável, o envolveria em alguns segundos e a sensação de profunda felicidade, tomaria conta do seu interior. Um cansaço agradável colaboraria com o relaxamento e o coração ia sentir que o vazio ocuparia o espaço da dor.
Tentou tudo. Inútil. O coração não se deixou hipnotizar. Passada a hora, nesta luta, a cabeça desistiu de saber a origem do sofrimento e passou direto para, o que ela, considerava a cura. Anestesiaria o amigo com o esquecimento total. Desta forma, ele não sofreria mais com um amor, do qual nem se lembrava.
Aplicou-lhe doses maciças de amnésia. Esperou um momento e perguntou ao coração se ele ainda sentia alguma coisa, se recordava que estivera doente e, atônito, ouviu a seguinte resposta:
- Não sinto a menor diferença de quando aqui cheguei. Meu amor fracassado ainda está vivo dento de mim e as lágrimas continuam rolando pela minha face. Você tem certeza de que esta anestesia não está falsificada e vai fazer efeito?
Mais uma vez a cabeça entrou em ação, com outros truques que só ela conhecia e normalmente agiriam como num passe de mágica, trazendo o esquecimento e o vazio para este pobre coração sofredor.
A persistência era uma de suas características, mas, no final de muito tempo, a sua lógica lhe dizia que deveria desistir. Não conseguiria o seu intento e reconheceu sua derrota. Precisava, no entanto, saber a razão deste fracasso. Como não compreendia, perguntou ao amigo se ele ao menos, sabia o que estava acontecendo e porque?
- É simples, disse o coração, é preferível a lembrança amarga de um amor desfeito, do que a dor do vazio do esquecimento e da falta de um amor.