Um conto de solidão

Quando cheguei, deparei-me com portas e janelas trancadas. As passagens todas foram obstruídas. Qualquer atalho à vista era inútil; não havia realmente caminho algum por onde eu pudesse entrar. O sótão era o único cômodo inabitado, o único lugar onde eu podia me esconder de mim mesma, para quem sabe – talvez – sumir. Nele eu não precisei ser recebida e nem mesmo aceita, uma vez que aquele era um canto há muito tempo já esquecido.

Estive em sua tutela desde o meu princípio. Dos maus aos piores dias, até o meu final, foram as suas paredes que cercaram a minha inércia e contiveram minha dor. Do alto do terceiro andar, a janela fechada e imunda embaçava a visão para o lado de dentro, embora não fosse isto o que me escondia do mundo lá fora. Da janela eu via muitos dos olhares passageiros cruzarem a calçada, enquanto lançavam suas sentenças sobre nosso jardim. Dos tantos que já vi, apenas seus silêncios me retribuíam.

Contrariando meus mais bravos esforços, jamais alguém me viu. Não que tivessem escolha. O mal que me acometia, acometia também a eles. A causa da sua cegueira e da minha quase existência tinha nome, idade e endereço. Alguém, um eles. Ela, assim como não me via, não via a ninguém. Reconfortava-me um pouco não ser a única – ainda que fosse esta nada mais do que uma infeliz exceção. Ela tinha os seus motivos. Poucos, mas bons. Recusava-se a tudo, pois assim com ela fizeram. Cercaram-na de muros. Impediam-na com regras. Por isso mesmo, admito: nós parecíamos tão iguais!

Entre nossas semelhanças haviam diferenças, é claro. Mas, tão pequenas estas, eu mesma nunca as vi. Gosto de pensar que fomos amigas e, para todos os efeitos, nós fomos. Éramos inseparáveis, e por inseparáveis quero dizer que eu jamais me separava dela. Onde estivesse, eu estaria. Aonde fosse, eu iria atrás. Algumas horas mais do que em outras, porém.

Os gritos começavam por volta das 22:00 da noite, alternando datas – a depender do favorecimento da estação. Dias quentes agravavam os surtos e os frios por muitas vezes seriam capazes de controlá-los. Fosse qualquer um deles, às 22h em ponto eu estaria lá. Acomodava-me bem ao lado da cabeceira, à espera da nossa única e mais íntima interação, enquanto minha presença passava desapercebida por entre os olhares vagos que muito ocasionalmente cruzavam com os meus.

As horas estendiam-se pela madrugada sem que silêncio algum se ouvisse. Adentraria ela a manhã ainda sem ter iniciado a noite, mas sempre se levantava sem atrasos. O sol mal nascia e ela já estaria de pé. Admirava-me demais dos seus hábitos; de uma disciplina ímpar; uma retidão cortante. Não me importava em seguir seus horários rígidos. Acompanhá-la me fazia bem.

Para ser justa comigo, esta devoção não me permitia grandes feitos. Bastava-me o feito de tê-la comigo, e nada me importaria mais. Idolatrá-la também não posso dizer que tenha sido escolha minha. Aliás, se houve algum propósito na minha existência, foi o de jamais faltar-lhe com nada – seja lá o que fosse. Na mais cruel das verdades que me sondam, confirmo com pesar que de fato eu não fui feita para duvidar. Fui feita para jamais cobiçar o que não me pertence, e nada me pertencia. Entre o mundo e eu só havia ela. Logo, só ela existia para mim. Assim pensei eu, por um bom tempo.

A casa estava sempre cheia. Os cômodos repletos de convidados corrompidos pela bebida farta e de celebrações arrastadas pelas conversas mal improvisadas de quem pouco se importava com o sorriso alheio. Inúmeras vezes eu me misturei a eles, seguindo pelos cômodos com meus passos calados – como se qualquer som meu pudesse ser ouvido. Apesar da multidão que desprevenidamente cruzava meu caminho, ninguém jamais esteve lá por mim – nem mesmo ela.

Dentro do emaranhado de dentes, copos e braços, ela se esquivava com ânimo e firmeza, como se atravessasse a uma floresta densa e hostil. Logo abaixo da escada da sala ela se escondia. Corpo rente à parede e livro na mão. Era eu sua criação e, a sua mente, uma vastidão de pavores latentes.

Nunca a vista, como eu mesma fazia, ela encostava o rosto sobre a parede e deixava que seus olhos lessem os sentidos intencionalmente escondidos que preenchiam as taças. Perdida entre os corpos calculadamente posicionados, ela também se camuflava a eles como uma mera espectadora, ultrajada pela morbidez da vida que se rompia a sua frente. E eu, igualmente sozinha, dividia com ela em silêncio nossa cumplicidade imaginária.

Não me recordo exatamente quando desvendei o infortúnio do meu destino, mas me lembro exatamente como aconteceu:

Era noite. No sótão todas as horas eram escuras, mas aquela em particular estava especialmente sombria. Não havia nada lá fora. Os sons todos haviam cessado. As luzes apagadas, senão escondidas. Só eu permanecia acordada, à espera da minha tarefa. A poeira me incomodava, mas dava-me um bom ponto de vista do tempo, onde as coisas se acrescentavam ao invés de decrescer. Enquanto observava a poeira acumulando, assisti à porta do sótão se abrir, como acontecia frequentemente nas mais importantes datas do ano. A hora beirava as 22h, todos deveriam estar deitados, e eu prestes a sair.

A porta escancarada me revelaria minha companhia, mas ainda era difícil enxergar. A casa estava toda apagada - tão escura quanto o pequeno pedaço que meus olhos viam -, e a silhueta do meu visitante se perdeu na escuridão. Eu me levantei e, como se em resposta, pude vê-la enfim tomar forma conforme seus passos a conduziam para debaixo da única luz que entrava pela janela. Um espectro borrado por dentro e nítido por fora. Era ela. Nós duas sob o mesmo teto e sobre o mesmo chão.

Desta vez, no entanto, não era eu a visitante.

Ela deslizou sobre o assoalho em único e longo movimento. Os passos tão incontáveis quanto os segundos. O tempo lá dentro virando-se e revirando-se na minha cabeça, e apesar de eu mesma há tanto viver sob seu domínio, me perguntei o quanto ele a afetava também. Quando intervalo nenhum mais cabia entre nós, ajoelhou-se aos meus pés. Junto a eles ela deixou escorrer um áspero pranto arrependido que arranhava sua voz. Fui até ela, unindo meu próprio choro ao ar que envolvia aquilo que pensei ser o momento que tanto esperei.

Lado a lado, de tão perto, quase tocamo-nos. Seus olhos de todo inteiros diante dos meus. Suas lágrimas, nunca tão esplendidas, testemunhas do meu propósito. Pareceu-me, de repente, que ela enfim as confiava a mim pela primeira vez. Seria tudo como deveria ter sido. Faria imediatamente tudo o que não fiz. Estendi o braço, naquele que teria sido o mais revolucionário ato das nossas vidas, para secá-las eu mesma. Eu, com minhas próprias mãos. E assim o faria, não tivesse ela mesma o feito, antes que pudesse tê-la oferecido.

Aguardei por ela uma vez mais. Tão logo recostara sobre mim, nos seus olhos via-se - em ambos - a mais plena ausência dos meus, e algo se desfez. Era aquela a minha verdade; eu não existia. Mesmo quando com ela, ela não estava comigo. No dia do nosso encontro nós não nos encontramos.

Eu ainda estava sozinha, e assim fiquei.