Cigana da mata

Alvoroçada, inquieta e aparentemente inábil, assim a vejo em meu primeiro olhar

Cai seu instrumento de corte ao chão do barco que nos leva para a mata sagrada, corre e agarra

Volta pra seu pensamento bagunçado

Cai à linha que liga o início do corte aos fins, agarra

Logo ela inicia o tecer de seus fios mágicos

Fios que ao serem entrelaçados em nosso pescoço imediatamente passamos a tagarelas do seu desejo de ouvir, nossos segredos maiores, escancarados como se voltássemos a nossa crianças chorando os medos no colo de nossa amada madre

Se entrelaçadas ao nosso coração, somos tomados para seus escravos

Agora me vejo entregue e sinto a necessidade de vê-la em teu tear maior

Em senti-la cantar suas canções para a lua

Seu uivar me estremece e eleva minha alma a uma dimensão em que a vejo sentada como num trono feito de cipós

Minha visão se torna turva, como se uma imensa fogueira tocasse minhas pupilas

Suas pernas me cruzam o peito e sinto o arrepio de estar amando a uma bruxa

O fogo que sai de suas veias aquece meu ventre como se passasse de escrava a amante desejada

Tantas luzes lá fora e meu único anseio é não deixar de sentir as queimaduras que estão sendo formadas e mim me fazendo viva

Olho pela janela da jangada estou em 1802, minhas vestes são volumosas, meus sapatos, não os reconheço, meu cheiro é forte como se estivesse a anos em uma empreitada em alto mar

Ouço um grito: o capitão do navio chama todos a proa

Que diabos de idioma este homem entoa?

Um grande alvoroço se inicia, o vento sopra, as águas sobem como se nos expulsasse, como se fossemos odiados.

Por não entender suas palavras sou jogada em um calabouço, ouço um chocalho ao chão frio, minha espinha nunca esteve tão rígida

Tenho a impressão de ser um réptil, não, não permita que meu maior pavor se torne realidade.

Uma voz me chama, soa como hertz que não tenho registro, uma forca maior me gira no ar e vejo sua silhueta, a grande serpente de pé, como se fosse o maior Nefilins da história.

Ela segura meu olhar e canta: acalmasse menina, também sou refém, fui enclausurada, pois disseram que sou má

O arrepio que lhe causo é pela energia que exalo ou pelas lendas que ouviste a meu respeito?

Ela arrasta uma cadeira com seus olhos me pede, sente-se

Seria possível me ouvir somente um pouco?

Sua voz era agora facilmente reconhecida por meus tímpanos, me soava como alguém tão familiar, como a voz que meu coração necessitava ouvir, talvez fosse melhor assim

Sento-me, respiro, olho, agora ainda mais esguia

Sou tomada por uma calmaria que me abraça me aquece a ponto de não me recordar do calabouço anterior

Ah cigana, minha cigana, daria tudo para tê-la agora, vê-la agarrada em seu manto caloroso

A serpente interrompe meu devaneio com sua suplica de atenção

Estou a milênios presa na viagem destes loucos homens, tenho sede do mar, de meus longos e volumosos mergulhos pelas águas encantadas de Yemanjá, sinto fome de peixes frescos, de conversas engraçadas com os botos cor de rosa, dos cantos ao rei sol aos fins de tarde com minhas belas sereias.

Sinto que a loucura me ronda como se já não houvesse mais tempo e espaço pra fuga

Tenho um plano, posso levá-la comigo caso não queira se tornar a nova serpente dos homens famintos por malevolência

Preciso que digas o que desejas de mim

Esta resposta será tua vida ou morte, tua libertação ou prisão eterna.

Dar-te-ei a noite toda para pensar, amanha pela manha nos olharemos sob a pouca luz do sol que adentra por esta fresta e aqui selaremos nosso pacto.

Ela deita ao chão, se encolhe no canto da parede e adormece, tuas escamas são tão reluzentes que quase me cega os olhos

Tento fazer-me crer que passei da beira da loucura para a insanidade total

Olho pela fissura que será a fechadura de minha mais dolorosa e saborosa porta a se abrir.

Um sono profundo me toma, entrego-me

O sol raia lá fora, um silencio doloroso se estende

Abra os olhos, digo mentalmente a mim mesma

O medo me paralisa, terá sido um sonho, ou estou ainda em meu pior pesadelo?

Abra os olhos Pandora.

Abra os olhos Atenas.

Abra os olhos Gaia.

Abra os olhos Lilith.

Abra os olhos Manuela.

Abro.

La esta ela, como uma serpente pode se dobrar sentando-se majestosamente?

Incrível, mas este é o único pensamente que me ocorre

Teu olhar me pede uma resposta

Peço que não me ceife a vida.

Teu olhar vai rumo ao horizonte e se vai como o ar que entra por qualquer que seja o milimétrico espaço.

Agradeço por não me matar.

Um desespero entra em minha alma, choro, sinto que acabo de perder a mais pura experiência de minha vida

Encontro uma caixa, nela uma mensagem foi deixada

Uma pena que esteja lendo isto, meu grande desejo seria levá-la comigo garota tola.

O mal para teu corpo seria a tua morte, a melhor de tuas experiências seria que tua alma pudesse mergulhar comigo como faço neste instante.

Siga sendo escrava, pois ainda não sabes nadar.

Meu coração leva um choque olho para o lado e lá esta a cigana que tece tua artesanilia.

O homem pergunta alguém desce no próximo ponto?

Desço sigo a minha casa como todos os demais tediosos dias.

Michela Buck
Enviado por Michela Buck em 18/06/2018
Reeditado em 29/04/2020
Código do texto: T6367823
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