EMÍLIA E AS LAGARTAS

Emília vale ouro, previu Dr. Molina assim que a criança nasceu, depois de sobreviver a uma gravidez complicada. Por três meses dividiu o quartinho apertado na barriga de dona Cecília com a irmã gêmea, mas a placenta de Marília descolou antes do tempo. Daí em diante, Emília cresceu, se desenvolveu, enquanto via a irmã definhar, dia após dia, sem ter de onde receber oxigênio e comida. Não agüentou até o fim: pediu para sair na vigésima nona semana, mas a equipe médica só lhe deu permissão vinte dias depois. A menina que vale ouro nasceu com mil e quatrocentos gramas, mas conseguiu se recuperar, e com a idade de quatro anos já estava a três dedos do metro de altura. Foi quando a previsão do obstetra começou a fazer um sentido diferente do que provavelmente ele quisera dizer.

 

A essa altura da história, dona Cecília já estava separada do marido. Seu Maurílio não pôde agüentar o tanto que a esposa mimava a criança. Não tinha tempo para ele, reclamava, e nem sexo mais eles faziam. Pra evitar outros filhos, pra não acordar Emília, pra não emporcalhar o quarto... cada noite uma desculpa. Um dia ele se encheu, arrumou as coisas e se mandou. Foi morar no meio do mato, curtindo uma vida de Botânico, com muito tempo para ler os livros que sempre adiara, e muita matéria de estudo por todos os lados. Por anos não viu a filha, que ninguém podia chegar perto da menina sem a mãe saber. E essa ferida seu Maurílio jamais conseguiu cicatrizar. Até o fatídico aniversário de quatro anos.

 

Emília não saía de casa, não tinha brinquedos que elas próprias não fizessem, a comida era preparada exclusivamente pela mãe. Não ia ao parque, à escola, ao pediatra. A mãe, ocasionalmente a avó, e muito de vez em quando uma amiga de dona Cecília eram as únicas pessoas que Emília conhecia. Ver televisão era permitido, mas só entre as duas e três da tarde, quando no aparelho preto e branco de um só canal passava um programa de culinária que jamais interessaria a qualquer criança da sua idade. Quieta, encerrada em pensamentos que ninguém podia adivinhar, de que a mãe sequer a julgava capaz, Emília passava os dias a se distrair com os carros de caixa de fósforos e as borboletas de papel maché. Com as bonecas de retalho conversava, discutia toda espécie de assunto, e assustava a mãe quando a via falando sozinha, temendo pelo segredo de seu nascimento que com tanto afinco guardara. E apesar de toda superproteção, dona Cecília, por algum acaso da vida que nem o diabo é capaz de explicar, resolveu comemorar o quarto aniversário da filha no Jardim Botânico.

 

Muito se engana quem pensa que foi pedido de Emília, pois quem nunca viu a coroa vive satisfeito com uma vida só de cara. Dona Cecília arrumou a bolsa com brinquedos e uma muda de roupa, máquina fotográfica e papel higiênico – tudo que meu bebê pode precisar –, e, assim que Emília acabou de se aprontar, tomaram o caminho do parque.

 

Tudo era novidade, motivo de mãe o que é isso e aquilo e aquilo outro. Numa dessas, ai que dor, ainda não se tinha passado meia hora de passeio quando Emília gritou com toda potência que a mãe nunca soubera estar contida naquele corpo diminuto. Gritou e saiu desembestada, como se o ar expelido fizesse motor de seus pulmões. Aonde você vai, minha filha, volte aqui, o que houve, chamou dona Cecília, correndo atrás da menina. A pequena à frente, a mãe atrás, nenhuma prestando atenção aonde ia, até que, bam, trombaram as duas com um homem que apreciava as Dendrobium densiflorum do orquidário. Ele se assustou com o choque, com a criança chorando, e principalmente com encontrar de uma forma tão insólita, depois de passados três anos, sua ex-esposa no Jardim Botânico. Maurílio? Cecília? Os dois se estranhavam enquanto a filha continuava a chorar e gritar. Essa é Emília? Santa Misericórdia, como ela cresceu... O que foi, minha filha, perguntaram juntos. Minha mão está queimando!

 

Emília relutava em abrir a mão esquerda. Pai e mãe precisavam ver o que era, mas ela cerrava tão firme como se estivesse pronta a desferir um soco canhoto. Aceitou, enfim, muito a contragosto, quando disseram que aquilo podia ser muito sério. Podia, realmente. E era. Nunca tinham visto, pai ou mãe, tampouco Emília, uma mão tão pequenina contar tantas cores diferentes. No meio da palma se via uma mancha negra, e dali a inflamação pintava uma aquarela de inúmeros halos concêntricos, num fino dégradé do vermelho ao violeta, qual arco-íris, passando por vários tons de laranja, amarelo, azul e verde. A dor aumentou, e Emília, que ainda não tinha parado de reclamar, aumentou o volume da choradeira.

 

Onde aconteceu isso, seu Maurílio perguntou, olhando atônito para aquele espetáculo de cores que tanto doía a mão da filha. Mais calma, embora incomodada, a menina levou os pais para a árvore em que tinha se encostado. Apontou para uma Caesalpinia echinata, onde se via, sem muito procurar, meio metro acima do solo, escurecendo a madeira avermelhada do pau-brasil, um círculo de lagartas-de-fogo. Queimadura de taturana pode matar, rápido, vamos levar Emília para o hospital, apressou-se dona Cecília, dando ao papel higiênico uma nova utilidade, qual seja a de enfaixar a ferida de Emília.

 

Que situação a menina se metera, queimada por aquele coletivo de lagartas, sendo levada ao hospital por um homem que se dizia seu pai, de quem dona Cecília jamais tinha falado. Aos quatro anos, uma e outra situações são suficientes para traumatizar qualquer cabeça, quanto mais a de Emília, agredida pelo mundo em sua primeira aventura fora dos limites de casa. Outra criança estaria eternamente condenada ao divã; mas Emília, pelo contrário, depois do primeiro susto, e do segundo, parecia ter rapidamente se acostumado à dor da queimadura e à idéia de ter um pai. E em silêncio chegou à emergência.

 

Será preciso amputar a mão, disse o primeiro médico, depois de desenfaixar a mão esquerda de Emília.

Talvez possamos controlar com antibióticos, sugeriu o segundo.

Ela está séptica, diagnosticou o terceiro, apesar do bom estado de Emília, por conta de uma febre que não chegou aos trinta e oito graus.

Ligue para o plantonista do centro de queimados, mandou o quarto, descubra se tem vaga na UTI.

Nada disso, encerrou o quinto, com ares de chefe, essa menina fica aqui na emergência. Quero acompanhar pessoalmente o caso.

 

Pai, mãe e filha acompanhavam confusos a indecisão. Sabiam apenas o nome do último médico, Dr. João Marques, justamente porque a informação constava de seu crachá. Ninguém se apresentou, não podiam perder tempo com coisas sem necessidade se a criança corria risco de ter a mão amputada. Vamos com isso, preciso de um acesso venoso no membro superior direito. E ainda que Emília não soubesse o nome de quem a furava, uma moça de verde não hesitou em lhe enfiar a agulha no braço. Quando os outros médicos foram embora, o tal Dr. João Marques e a enfermeira ficaram a sós com a família.

 

Rosa, carmim, cor de pôr do sol em início de primavera, cor de boca antes do beijo, cor de pena de pavão à expectativa da cópula. As bordas da queimadura não se pareciam mais com um arco-íris. Os ordinários verde e vermelho deram lugar a cores nunca antes vistas pela medicina em lesões como aquela, que apenas jardineiros, poetas e apaixonados seriam capazes de descrever. Dr. João Marques estava intrigado; seu Maurílio e dona Cecília, maravilhados, tinham medo; e Emília só queria saber de quando a dor estonteante ia melhorar.

 

Do centro da ferida, ainda negro feito carvão, onde o médico julgava necrosado, desvitalizado, uma elevação se fez surgir, edema ou bolha, inexplicável como toda a evolução da menina. Latejante, a dor vinha em pulsos, e cada pulso aumentava mais a tal elevação. Emília gritava, não se continha, mas nos intervalos conseguia se manter quieta. Soro fisiológico, antibiótico de última geração, morfina, antialérgico, nada parecia deter o que estivesse a provocar aquela reação na criança. Se no início os latejos vinham a cada quinze minutos, logo se tornaram mais freqüentes, dez, cinco, dois minutos, praticamente contínuos. Dr. João Marques chamou o cirurgião, que, apesar de não terem fechado o diagnóstico, concordou com a proposta de amputação. Antes que essa coisa se espalhe pelo braço, tome o corpo e não tenhamos mais o que fazer.

 

Cor de flor de maio em primeiro de junho, cor de nuvem passageira, cor de pétala de Passiflora edulis depois da chuva. O meio da queimadura intumescia, sempre preto, enquanto os bordos não paravam de mudar de coloração. Doutor, o que está acontecendo, dona Cecília e seu Maurílio se intercalavam a perguntar, mas a resposta era sempre um inseguro estamos esperando os resultados dos exames. A verdade era que ele não fazia a menor idéia, bem como toda equipe da emergência.

 

Em um segundo Emília estava calma, e no seguinte soltou o maior ai de todos, mais alto e amedrontador até que o primeiro, ainda no Jardim Botânico, quando encostou a mão no círculo de lagartas. Todos acudiram, o que foi, o que foi, temendo que algo pior estivesse se passando com a menina. Minha mão, ela resmungou baixinho, como querendo guardar pulmão para os gritos de dor, está rasgando.

 

Emília tinha razão. O centro enegrecido parecia estar sendo cortado por um bisturi invisível pelas mãos de um deus magarefe. O conteúdo se mexia, borbulhava, um abscesso vivo. As tonalidades do entorno se alternavam ainda mais freneticamente, cor de cobra coral em mudança de pele, cor de fruta-pão madura, cor de brinco de princesa. E dali saiu, para o pasmo de todos os presentes, sob o som do maior grito de todos, deixando o do parque em terceiro lugar, uma bela borboleta. Sacudiu as asas e levantou vôo, iluminando de todas as cores aquele quarto de emergência. Bem à vontade, passeou à frente dos rostos incrédulos de seu Maurílio e dona Cecília. Quase pousou no nariz do Dr. João Marques, mas ele, distraído, só pensava em como descreveria o caso na próxima edição dos Arquivos Brasileiros de Emergência Médica.

 

Emília se calou e sorriu quando a borboleta, depois de visitar um a um os presentes, olhá-los nos olhos, fazendo-os duvidar da sanidade ou da ciência, descansou em seu peito. E a ela deu o nome de Marília.