O resgate
Uma nova manhã estava prestes a nascer e a escuridão cedia aos poucos, relutante em desaparecer por completo. O cheiro de mata cerrada se acentuava com o orvalho e o ar gelado queimava os pulmões.
Lado a lado eles caminhavam, como um só, cada qual pensando diferente, mas no fundo igual, completando um ao outro. O homem pensava no frio, cansaço e na fome que sentia. Enquanto tentava ignorar o peso da enorme mala que carregava, procurava estar atento ao caminho e alerta aos perigos. O Javali pensava que esta seria sua última jornada, precisava estar preparado, logo chegariam ao seu destino, onde teriam abrigo, comida e descanso, precisava aproveitar ao máximo.
– É por aqui. – Disse o homem puxando de leve a corrente que prendia o Javali.
– Isso é realmente necessário? – Disse o Javali, indicando a corrente com a cabeça.
– Desculpe, mas não posso correr o risco de você fugir.
– Eu não vou fugir, já disse mil vezes, logo que ouvi sua história dei minha palavra que te ajudaria. Porque eu fugiria agora? Deixa pra lá, olha, já dá pra ver a cabana.
A cabana era muito rústica, escondida entre as árvores, mas a fumaça que saía pela chaminé a tornava quase acolhedora. Pararam na porta e o homem assoviou uma melodia simples. Na mesma hora a porta se abriu e os dois entraram. A primeira coisa que perceberam foi o cheiro delicioso de comida quente, fazia dias que só comiam pão e queijo, bebiam água dos rios e comiam as frutas boas que encontravam pelo caminho.
– Vocês chegaram bem na hora. – Disse a mulher que abriu a porta. – Coloque a mala naquele armário Halden, lá estará segura. Porque você prendeu o Javali? Ele não quis vir por vontade própria?
– Desculpe senhora, mas seu irmão é muito “cabeça dura”, imagina que fugirei se ele me soltar. – Disse o Javali fazendo uma reverência.
– Meu nome é Amaranta, fico feliz que tenha vindo nos ajudar. – Disse ela com respeito e amabilidade, e olhando para o irmão, franzindo as sobrancelhas, disse: – Halden faça o favor de soltar o Javali, agora!
Halden soltou a corrente, relutante, bufando e resmungando. Logo depois tirou o casaco de couro, sacudiu para expulsar as gotas de orvalho. Tirou também os óculos de visão noturna e o chapéu. Ele e o Javali sentaram-se à mesa, ansiosos.
Amaranta preparou dois pratos com uma sopa fumegante de legumes, cogumelos e carne e observou os dois comerem em silêncio. Conseguia imaginar, quase ouvir mesmo, o que cada um pensava, com um sorriso de canto de boca pensou que ganharia algum dinheiro se apostasse sobre o que pensavam.
Ela sempre havia sido muito boa em ler as pessoas, sabia o que sentiam e pensavam só de olhar para elas, isso quase nunca agradava. Juntando esse “dom” com um gênio forte e um espírito livre e aventureiro, muitos achavam que ela era feiticeira e embora fosse muito bonita, nunca conseguiu se casar. O que não a incomodava em nada, mas sentia a falta de ter filhos e desde que o irmão começou a tê-los, se apaixonou perdidamente pelas crianças e era quase como uma mãe para elas.
Halden não gostava de ver sua irmã parada ali enquanto ele comia, era doloroso demais, era parecido demais com suas memórias mais doces de Cristiana, sua esposa, com as mãos cruzadas sob o queixo, como se estivesse segurando a cabeça que pesava toneladas de bons pensamentos. A comida em sua boca se tornou amarga e desceu com dificuldade pela sua garganta, ele cerrou o maxilar e se obrigou a continuar comendo. Ele merecia sofrer, merecia ser torturado pelas lembranças.
Sim, ele havia se deixado seduzir por uma mista. Sim, ele deixara sua família desprotegida para sentir a adrenalina de uma aventura cheia de luxúria e medo de ser pego desobedecendo à lei. Até que um dia sua doce e pacata esposa foi violentada e assassinada enquanto tentava proteger seus três filhos, que foram capturados e estavam sob o domínio do líder dos mistos no Entremundos. Foi aí que se afogou no álcool e na comiseração. Foi aí que Amaranta o encontrou e lhe deu uma surra de chicote, curou sua ressaca, limpou suas feridas, o trouxe para o mundo das criaturas e mostrou o caminho para recuperar seus filhos. Desde então nutria uma mistura de amor e ódio por ela.
O Javali por sua vez, comia com satisfação e prazer, procurava não pensar no que enfrentaria a seguir, aprendera há muito tempo a viver o presente com a intensidade de uma vida inteira. Sentia-se aquecido, era respeitado por uma linda mulher que o observava comer com preocupação e doçura, logo deitaria e dormiria algumas horas que faria durar por anos, estava feliz.
– Tem uísque? – Perguntou Halden, com ar de deboche.
– Claro que não! Tem café. Vai querer?
– Se não for muito incômodo…
Amaranta ainda ofereceu café para o Javali que recusou e foi dormir. O clima ficou ainda mais tenso entre os irmãos.
– O Javali ofereceu resistência em vir com você?
– Não…
– Então por que a corrente?
– Eu não pude acreditar que ele viria por livre vontade. Sabendo o que vai acontecer…
–Você não entende nada mesmo. Está na natureza dele. Ele representa a coragem e a bravura e, como todos do reino animal, é puro e inocente.
– Não entendo mesmo e nunca vou entender. Só estou fazendo isso porque é a única maneira de recuperar os meus filhos.
– Você vai recuperá-los! Agora vá dormir um pouco, vocês ainda têm muito que fazer.
Ele tentou dormir, mas pesadelos horríveis de Cristiana pedindo socorro enquanto os soldados mistos abusavam dela, suas facas pontiagudas rasgando a pele muito alva e macia, seus olhos castanhos implorando misericórdia enquanto mãos asquerosas apalpavam, arranhavam e dilaceravam o seu corpo. Seu sangue se espalhando, sua vida se esvaindo.
“Na frente dos meus filhos não!”
Acordava sobressaltado, com essas palavras ainda ecoando em sua mente, aterrorizado. Era sempre assim. Sabia que se adormecesse novamente, sonharia com seus filhos sendo torturados no Entremundos. Seus gritos de dor e agonia, suas vozes gritando “papai, socorro!” o assombrariam pelo resto do dia. Decidiu que não dormiria mais. Olhou para o Javali que estava dormindo profundamente, o sono dos justos. ”Como ele consegue?”
Procurou Amaranta pela cabana, mas não encontrou, viu que ainda faltava muito tempo para o por do sol. Resolveu sair e procurar sua irmã, ela não deveria andar sozinha no mundo das criaturas, era perigoso demais, os humanos eram vistos com desconfiança porque podiam abrir as fendas e transitar entre os mundos. Assim que saiu da cabana, viu Amaranta colhendo algumas ervas.
– O que está fazendo aqui fora sozinha?
– Não é óbvio? – Disse ela fazendo um gesto teatral apontando para as ervas.
– E as criaturas? – Disse olhando, desconfiado, em redor.
– Não se preocupe com elas, sabem o que viemos fazer aqui.
– Viemos? Nada disso. Você não vai, de jeito nenhum.
– Claro que vou! Quem você acha que vai abrir a fenda? Você não pode mais abrir fendas, desde que se envolveu com aquela mista, não se lembra?
Ele não se lembrava. Aquela mista havia destruído a sua vida, se pudesse voltar no tempo… Mas ele não podia, e agora nem podia mais abrir fendas. “Maldita mista!”
– Você deveria estar dormindo.
– Não posso.
– Os pesadelos… Já sei! Vamos, vou preparar um chá que te fará dormir.
Assim que tomou o chá, dormiu um sono sem sonhos. Acordou com o Javali sacudindo os seus ombros, estava na hora.
Os três se prepararam, Halden com sua mala, Amaranta com sua adaga de bronze e o Javali com sua determinação. Saíram ao por do sol e caminharam por uma trilha quase escondida no meio da mata, logo chegaram a uma clareira que servia de portal para o Entremundos, um lugar onde antes era desabitado, só um espaço vazio entre os mundos, agora era habitado pelos mistos, seres provenientes de duas espécies distintas.
Amaranta passeou pela clareira até sentir o local exato da fenda, pegou sua adaga e cravou aparentemente no ar, mas logo uma fenda se formou, rasgando a matéria que impermeabilizava os mundos e expondo o Entremundos.
Halden abriu a mala e tirou de lá uma pedra de mármore, uma adaga comprida e afiada e uma vasilha de prata. Colocou a pedra em frente à fenda e disse ao Javali:
– Tem certeza que você vai fazer isso?
– Seus filhos devem estar muito assustados, querendo desesperadamente ver o pai e voltar para a casa. Como posso ignorar isso, sabendo que tenho o poder de trazê-los de volta?
Amaranta abraçou o Javali e disse:
– Obrigada por trazer meus sobrinhos de volta, são tudo o que tenho na vida. Jamais me esquecerei de você.
O Javali deitou com calma e tranquilidade sobre a pedra e disse:
– Façam valer à pena… – Então ele fechou os olhos e esperou.
Halden pegou a adaga com as mãos tremulas, levantou e…
– Eu não posso fazer isso. Você não tem culpa nenhuma, eu é que deveria estar no seu lugar, fui eu quem destruiu minha família. Como eu posso fazer isso com você? Não é justo!
– Não se trata de justiça. Não adiantaria nada se você estivesse no meu lugar, só o sangue de um inocente pode fazer o resgate, você não entende?
– Não entendo porque você vai fazer isso…
– Você não precisa entender, só aceitar. Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro. Estou salvando três mundos, afinal. Quer seus filhos de volta? Então faça isso agora!
Enquanto Amaranta olhava de longe, Halden se posicionou, fechou os olhos e cravou a adaga no coração do Javali. Retirou a adaga com cuidado e o sangue começou a jorrar na vasilha.
Amaranta chegou perto de Halden e colocou a mão em seu ombro.
– Você ainda precisa dizer…
Com a voz rouca de emoção ele grita:
– Com o poder desse sangue inocente eu reivindico a vida dos meus filhos!
A pedra, o Javali, a vasilha e todo o sangue foram desaparecendo aos poucos, perdendo a consistência até sobrar só pontos de luz, que foram se transformando lentamente, ganhando forma, se materializando nas três crianças de Halden.
Logo que perceberam onde estavam, as crianças pularam sobre Halden e Amaranta, com abraços e beijos e lágrimas de alívio e felicidade.
– Eu prometo crianças, que nunca mais vou deixar vocês sozinhos, vou protegê-los de qualquer perigo, custe o que custar. A tia Amaranta e eu vamos levar vocês para casa agora.
–Vamos crianças, temos um longo caminho até acharmos a fenda para o nosso mundo, enquanto isso, vou contar para vocês a história de um Javali muito valente, e de como o pai de vocês percorreu todo o mundo das criaturas até achar alguém que pudesse ajudá-lo a trazer vocês de volta.
Todos de mãos dadas foram caminhando pela mata, só com a luz da lua para guiá-los. Passariam a noite na cabana e pela manhã começariam a jornada para casa.