Pequenas histórias 206 a 212

Andréia.

Estava cansada dos mesmos gestos. Sempre os mesmos não mudavam. Desde que se conhecia como adulta, como gente, vinha fazendo sempre os gestos de sempre, repetitivos. E não tinha como comprovar se eram verdadeiros ou apenas gestos de outra pessoa. Aterrorizava-se com esses pensamentos. Se fossem verdadeiros não tinha o porquê ficar apavorada, o que a surpreendia terrivelmente é que não podia comprovar se eram verdadeiros ou não. Em sua opinião achava que não eram verdadeiros, que representava num grande teatro. Mas nesse caso, quem lhe dera esse imenso script que não tem fim? Quem era o diretor dessa parafernália bufa? Talvez estivesse até dentro de uma imensa televisão, como Truman* vivendo sem saber uma vida fictícia. Ou quem sabe fosse Hilde** ou Sofia?** Vivendo uma grande história presa num livro levando-a a se sentir palhaça das palavras? Impossível!

Nisso deparou com seu vulto refletido ao passar em frente da vitrine. Parou alucinada, o coração batia mais acelerado. Era ela? Ela refletida na vitrine? Não podia ser! O que via era uma figura completamente diferente do que sentia. Tudo parecia ser idêntica, mas lá, em algum lugar dentro de si dizia que não. Como pode ser uma coisa dessas? De mais a mais, a imagem refletida parecia ser do sexo masculino. Que coisa arrepiante, disse virando-se a esquerda e tomando seu caminho costumeiro. Tudo nela era costumeiro, nada era diferente.

Andréia seguiu na sombra da dúvida se esparramando pela calçada. Parou no farol. Precisava atravessar a rua. Lembrou que tinha que sacar dinheiro. Ela que precisava de dinheiro ou seria outra pessoa? E quem seria essa pessoa que não era ela? Que coisa absurda pensar nisso, sacudiu a cabeça como dissesse estar pouco ligando para tudo isso. Como poderia uma pessoa viver dentro dos seus princípios morais, religiosos tendo uma confusão dessas na mente? Estaria enlouquecendo? Não, claro que não. Senti-se mais lúcida do que nunca, apenas é que na vida surgem perguntas que, a primeira vista, não podemos responder. E essa confusão de ser ela ou não, ou ser uma personagem fictícia, - lembrou da imagem refletida na vitrine - ou ser masculino a aterrorizava. Segundo os filósofos, o ser tem dentro de si o masculino e o feminino. Será que nela está aflorando o seu lado masculino? Credo! Que coisa horrível de se pensar.

Atravessou a rua assim que o sinal abriu. Quando criança tinha a mania de brincar de mocinho e bandido com a molecada da rua e, invariavelmente, era designada para ser o xerife na brincadeira. Não dava importância ao fato de fazer um papel masculino, sabia que era só uma brincadeira. Na brincadeira é que está o reflexo do que somos não é o que diz o ditado popular? Quer dizer, já na infância demonstrava tendência masculina. Nunca se sentira masculinizada e não se sentia masculinizada ao pisar a calçada do outro lado da rua. O masculino a atraia sexualmente, alimentava até essa atração não deixando morrer. Então porque esse tormento? O que isso queria lhe dizer? Que realmente possuía dois lados? Um lado feminino que se escandalizava ao descobrir seu lado masculino e, um lado masculino que parecia querer se sobrepujar ao feminino? Não, não deixaria isso acontecer. Não era um monstro, não era doente. Tinha aversão por pessoas que era uma coisa e queriam ser outra. Fugia de homens afeminados e de mulheres masculinizadas. Via como desvio de personalidades, não aceitação do corpo chegando a ponto de transformá-lo no que não eram. Tornavam-se bichos, um ser bizarro que não tinham espaço dentro da sociedade, fugia deles, se pudesse não os veria em lugar nenhum. Preconceito? Até fosse, mas era um preconceito nada pejorativo, era mais uma não aceitação dos fatos.

Entrou na padaria. O caso é que isso tudo ia além do que ela imaginava. Muito além. Não era só uma simples transformação de sexo físico, não era. O que lhe dava a impressão que ela, Andréa não existia, que ela poderia ser outra pessoa que não fosse ela mesma. Que a Andréa era apenas uma imagem formada pela mente, que o pão que no momento estava comprando, não era pão no sentido concreto do objeto. Não deixava de ser pão, mas era um pão inexistente, apenas imaginário. Credo! Baboseira, como pode pensar nessas coisas absurdas e surrealistas! Constatou que devia parar com as leituras. Estava sendo influenciada. Por outro lado achava que não deveria, elas estavam abrindo a mente, mostrando um mundo diferente, obrigando-a pensar. E era do que precisava para sentir-se viva.

Saindo da padaria recebeu o sol no rosto revelando uma cena aterrorizante. Ao ouvir a freada do carro, seguida de um baque surdo, viu sua atenção despertada para o inusitado. A pessoa que a sua frente tomou a iniciativa em atravessar a rua, assim dificultando-a, retardou que fosse atropelada. O que mais a surpreendeu é que a mulher tinha comprado as mesmas coisas que ela. O que só descobriu ao ver a mercadoria esparramada no meio da rua. Em seguida, numa intuição feminina, olhou para o corpo da mulher estendida debaixo das rodas do carro. Soltou um grito. Era ela que estava ali, deitada, olhando para ela. Rapidamente deu as costas e seguiu seu caminho.

Ao fechar a porta do apartamento, suspirou aliviada. Sofria de alucinação, não podia ser. Na cozinha bebeu um gole de água. Acalmou-se. Voltou para sala. Pegou as sacolas e erguendo a cabeça deparou com sua imagem refletida no espelho. Ali estava ela, Andréa e não aquela que fora atropelada. Jogou as sacolas com as mercadorias em cima da mesa da cozinha e dirigiu-se ao quarto. Abriu a porta do guarda-roupa. Queria ver-se inteira no grande espelho interno. Não, não era eu debaixo daquele carro, disse aliviada. Essa que está aqui no espelho reflete o que eu sou. A Andréa, morena de estatura baixa, cabelos lisos pretos, que se parece com a atriz Irène Jacob***, não posso ser outra, se convenceu finalmente.

Passou o resto do dia com a sensação de que não vivia onde estava. Que seu mundo estava ao contrário, que havia outra vivendo o que ela vivia. Foi com muito custo que a noite conseguiu pegar no sono.

Lentamente surgia no horizonte, uma pequena luz. Os olhos doíam. Precisou firmar os olhos até que se acostumasse com a luz. Ouvia vozes, não muito nítidas, pareciam sussurradas:

-Ele está acordando.

-Calma, minha senhora.

- Como posso ficar calma...

- Eu sei. Ele não corre mais perigo.

O que? Não corre mais perigo? O que me aconteceu, perguntou sem conseguir mover os lábios.

- Calma, meu bem. Você sofreu um terrível acidente e agora está bem.

Acidente? Como? O que faço aqui? Estou num hospital? Como se lesse a sua mente, a mulher se debruçou por cima dela e disse:

- Calma, meu filho. Você foi atropelado, mas nada de grave. Está no hospital há um mês em coma.

Coma! Hospital! Filho! O que essa louca está dizendo? Ela não compreendia nada o que se passava. Queria sair dali. O corpo inteiro doía. Seu braço estava preso pelo tubo do soro, não podia se mexer. Ergueu o corpo, precisava ficar sentada.

-Enfermeira, me ajude aqui, gritou o médico.

Aplicaram uma injeção que a fez dormir novamente.

-Escute, vamos conversar calmamente.

-Calmamente! Como se não sei o que vocês fizeram comigo.

-Não fizemos nada, apenas o curamos das feridas e machucados.

- Merda! O que realmente aconteceu e, por favor, pede para essa louca parar de chamar de filho. Não sou filho de ninguém, aliás nem mãe tenho.

-Tudo bem. Enfermeira leve-a daqui

-Mas Doutor, é meu filho.

-Eu sei, depois falo com a senhora.

Saíram ela e a enfermeira.

- E outra coisa, se acalme, pare de falar palavrão que não resolve nada, senão vou ser obrigado a interná-lo.

-Está bem, doutor.

-Isso assim está melhor.

-Explique o que aconteceu realmente, doutor.

- Não há o que explicar. Você chegou aqui todo ferido por causa do atropelamento e, entrou em coma por mais de um mês.

-Mais de um mês?

-Sim, mais de um mês...

-Mas não é isso que quero saber.

-O que você quer saber, me diga.

-Doutor, não sou homem, sou mulher, como estou transformada desse jeito?

- Não sei do que está falando. Foram feito vários exames em você e foi constado tudo normal, não há nada em você de anormal.

- Anormalidade não está nos olhos de quem vê, mas nos olhos de quem sente.

-O que foi que disse?

-Nada não, estava pensando alto.

- Você entrou em estado de choque e não pudemos reverter o teu estado.

-Grande médico que você é...

-Escuta uma coisa, fizemos de tudo para salvá-lo, conseguimos e agora não venha com ironia pra cima de mim não, está certo?

-Desculpe, doutor, é que não estou entendo nada.

- O que não está entendo.

- É que um dia sou mulher, vou dormir, e quando acordo sou homem, que raios são isso, doutor?

- Não sei do que está falando. Você entrou aqui como homem e como homem vai sair. Se há algo misterioso nisso tudo, recomendo procurar um psiquiatra.

- Psiquiatra é para louco.

- E se você não se acalmar e procurar entender o que lhe acontece é isso que vão taxar você: louco. E sabe para onde será levado.

- Manicômio.

- Isso mesmo, trate de se acalmar e pense naquela pobre senhora que está lá fora te esperando. Ela passou todas as noites ao seu lado segurando sua mão.

- Mas aí que está doutor. Não sei quem é ela, nunca a vi nem mais magra e muito menos mais gorda. Não tenho mãe, não tenho ninguém, vivo sozinha.

- Pelo menos agora você tem alguém que vai cuidar de você.

- Mas, doutor... Ela vai me tratar como filho dela, e não sou homem, sou mulher e, por falar nisso, onde está meus seios, minha vagina...

- É, acho bom você procurar um psiquiatra.

Procurar um psiquiatra, disse o doutor. O sol passando pelo vidro da janela do quarto do hospital lambia seus pés enfiados num chinelo masculino. Vestia um pijama de seda com bolinhas pretas. Não se sentia bem dentro do pijama, preferia mais uma camisola. Que droga! O que lhe tinha acontecido? Não se lembrava de nada.

Em pé olhava para o descampado que vinha logo depois do jardim. O dia estava ensolarado, convidativo para um passeio. No entanto não quis sair do quarto. Já estava a muito tempo apático sem vontade de se mexer. O médico, as enfermeiras, sua mãe aconselhavam que saísse que procurasse algo para se entreter, sair da depressão que se encontrava desde que acordara do pequeno coma que tivera.

É! Como sair dessa apatia quando se descobre que não é mais a mesma pessoa? Como não se sentir deprimida quando se sabe que não é mais a Andréa que sempre fora e, que agora era outra Andréa. Não, ela nunca deixará de ser feminina. Via sua imagem refletida no vidro da janela e não conseguia entender, compreender, imaginar como e o que lhe acontecera.

Foi ao banheiro. Deixou o roupão cair lentamente aos seus pés em frente ao espelho. Olhou para o seu rosto. Era o mesmo, nada mudara, mas... Crispou a mão e passou a unha arranhando aquele peito que não era mais o seu. Cadê os meus seios, duros e firmes, prontos a ser saboreado por lábios gulosos, onde está ele? O que via agora era um peito masculino... Devagar abaixou os olhos, cadê aquela barriga com penugem suave e bonita, que deixava os homens embriagados, cadê? Onde estava a vagina com lábios carnudos escondendo a fenda do prazer, onde estava? Agora no sei lugar via um pênis horrível, que ela sentia vontade em arrancá-lo a unha. E as coxas roliças? O que via era umas coxas peludas, fortes, de homem. Ficou de perfil. O mesmo acontecera com as nádegas, se afinaram... Como não ficar deprimida se ela não era mais a bela Andréa? Agora era ele, o belo Andréa. Sentindo se estourar por dentro, se jogou na cama soluçando desesperadamente. Nisso bateram na porta.

- Entre, gritou.

Era a enfermeira com um embrulho que depositou em cima da cama dizendo:

- Aqui estão suas roupas, seus documentos, terá alta hoje.

- Está bem, obrigado.

Assim que a enfermeira saiu fechando a porta, Andréa abriu o pacote. Camisa, calça jeans, tênis, a carteira com os documentos... Abriu a carteira... Olhou a identidade: Andréa Figueirada Melam, sexo: masculino. Não pode ser, pensou jogando a carteira em cima da cama. O que lhe tinha acontecido?!!!!!

Andréa sentou ao lado da mulher que se dizia mãe dela. Não sabia o que dizer. Ficou por instantes em silêncio olhando para aquela mulher que ela não sabia quem era.

- Escuta meu filho...

- Por favor, não me chame de filho, não sou seu filho.

- Está bem, disse a mulher engatando a marcha e pondo o carro em movimento.

- Olha, se eu topei sair do hospital foi porque estou confusa, não sei o que aconteceu, não tenho para onde ir, estou sozinha e, até que eu consiga lembrar o que me aconteceu, aceito sua ajuda, mas, por favor, não me chame de filho.

- Entendo que esteja confuso, mas não acha que me é difícil não chamá-lo de filho?

- Não sei e nem quero saber.

- Obrigada pela sinceridade.

- Desculpe, é que está sendo duro para mim.

- E para mim não está?

- Não foi você que foi dormir como mulher e acorda no outro dia como homem.

- Não sei do que está falando.

- É pouco lhe importa o sofrimento dos outros.

- Realmente, não me importo com o sofrimento dos outros, só me importo com o sofrimento do meu filho.

- Mas não sou seu filho já lhe disse, gritou Andréa.

Numa freada brusca levantando fumaça e cheiro de pneu queimado, ela desesperada parou o carro no meio da rodovia.

- Até agora você falou isso e aquilo. Espere, agora é minha vez me deixe falar. Será que não acha que não estou sofrendo? Também não entendo o que está acontecendo e muito menos o que está acontecendo com você. Apenas sei que meu filho saiu não sei para fazer o que e, dali a pouco alguém vem me avisar que ele foi atropelado. Fico com ele mais de um mês no hospital entre a vida e a morte, e quando ele volta do coma, berra as quatro estações que não é meu filho, que é outra pessoa, que é uma mulher, vá à merda. To cansada. Se quiser ficar deixe-o tratá-lo como filho, se não quiser saia do carro.

Andréa, confusa não esperava a enxurrada de palavras da mulher que se dizia sua mãe. Espantada ao ver que ela chorava em silêncio, segurando a dor que brotava do peito. Sentiu vontade de abraçar aquela figura miúda, cabelos grisalhos, esticou a mão e, indecisa não completou o gesto.

- Olha... Mãe... Quer dizer... Senhora?

- Ivone.

- Dona Ivone, me abrace, acho que estamos precisando do apoio uma da outra.

E abraçadas ficaram por um tempo sem se preocuparem com mais nada.

Ao entrar no quarto, teve a impressão de já ter estado ali e ao mesmo tempo de algo desconhecido, de algo que ela já tivesse passado, mas não como Andréa homem, e sim, como Andréa mulher. A vida é cheia de duplicidades que não conhecemos, tinha lido em algum lugar.

- Andréa, o seu quarto ficou como estava ao ser hospitalizado, disse Ivone.

Andréa, assim que sua suposta mãe fechou a porta, pensou em cair na cama e dormir por quanto tempo fosse necessário. No entanto, a sensação que sentia despertou sua mente deixando-a excitada. Num relancear de cento e oitenta graus, constatou: realmente que o quarto era de homem. Não havia nada ali que demonstrasse a mão feminina. O quarto em si não estava desarrumado. Havia sim, algumas peças jogadas aqui e ali, na maioria o quarto estava impecável. Viam-se nas paredes pôster de várias procedências, livros na estante, no chão, CDs empilhados em cima do aparelho de som. Leu algumas lombadas de alguns livros, nada de interessante, o que chamou sua atenção foi o livro que estava aberto em cima do criado mudo: O Mundo de Sofia. Não podia ficar num lugar que não era seu lugar. Todas as coisas desde a mais ínfima até a maior têm seu lugar na vida, disse ao sentar-se na cama.

Já não havia nela mais nenhum sentimento de revolta, de repugnância ao que lhe acontecera, nem do corpo que não era o seu. Parecia que tinha desabado por cima dela um balde de água fria, deixando-a leve, pouco se importando com tudo. Levantou-se, foi até a janela. O sol continuava sendo pisados por pés despreocupados da sua intensidade. Reparou que uns iam e outros vinham.

De repente, algo chamou sua atenção. Viu saindo da padaria uma moça, quase da sua idade, carregando um embrulho pardo, talvez tivesse comprado pão. Pão... Lembrava de algo. Nesse momento seu pensamento foi desviado por uma freada e um grito. O veículo parou quase em cima da moça que, assustada deixou cair o embrulho esparramando todo o conteúdo no asfalto. Sim, foi isso o que aconteceu! Saiu correndo.

- Andréa, o que foi? Aonde você vai?

Não deu atenção. Abriu a porta da rua e reviu toda cena. Tinha ido comprar pão e, ao sair da padaria, uma pessoa passou por ela, quase a derrubando, Reparou que antes de ser atropelada, virou o rosto e olhou bem para ela. Horrorizada constatou: Eu não sou o que sou, eu sou projeção do que sou. Compreendeu. O que estava vendo era uma cena falsa, isto é, tudo era falso, até ela, nada era o que parecia ser. Nada, disse para si mesmo. Cabisbaixa, entrou em casa. Ao subir as escadas deparou com Ivone.

- O que vai fazer?

- Não tem nada para ser feito. O que feito está não há como desfazer ou, o que é pior, refazer.

Entrou no quarto. Abriu o livro que estava no criado mudo, escolheu uma página ao acaso e leu: nem tudo o que vemos, é o que os olhos veem, nem tudo é concreto. Nunca acredite no que vê, lê ou ouve, pois sua mente poderá lhe enganar.

Fechou o livro. Fechou a vida, a sua história.

pastorelli

*Truman - personagem do filme: O show de Truman.

**Hilde e Sofia - personagem do livro O Mundo de Sofia.

***Irène Jacob – personagem do filme, A dupla vida de Veronika.

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 01/06/2018
Código do texto: T6352636
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