O ANEL DE NABUCODONOSOR

É certo que no mundo existem mistérios envolvendo todo o tipo de acontecido bizarro ou não explicado de forma natural e científica (da maneira como os homens enxergam o conceito de cientifico). Digo isso porque é importante que o leitor perceba que os acontecimentos que tomarão conhecimento a seguir não são invencionices de uma mente perturbada, embora seja o que irá parecer, mas sim verdadeiras revelações descobertas por mim e que me levaram além dos limites de qualquer comprovação racional e crível.

Eu cursava arqueologia na faculdade de Oxford quando fui mandado para o Iraque com uma equipe de renomados cientistas e arqueólogos para a escavação, catalogação e reconhecimento das ruínas de uma cidade do Império babilônico do século V ac. Manterei em segredo sua localização por motivos óbvios. Eu participaria de uma equipe de estagiários comandada pelo brilhante doutor PHD Howard Melville, reconhecido mundialmente pela expedição através do rio Amazonas em busca do ancestral mais antigo dos peixes de água doce de toda a bacia amazônica. A empolgação nos primeiros dias foi irrefreável. Era patético como tentava disfarçar o meu embaraço na frente do Doutor, por isso fui me distanciando dele e dos demais e me enveredando por caminhos os quais não tinha permissão de estar.

Meu trabalho era catalogar e não escavar ou mapear. Então não havia dúvidas quanto a arbitrariedade das minhas escapadas furtivas. Evidente que além do aprendizado e do peso que aquela expedição teria em meu currículo depois que terminasse a faculdade eu não via mais nada ali que pudesse ser interessante, diverso de tudo o que já foi visto e catalogado em expedições anteriores pela Ásia Menor. Lógico, sabia da importância de uma nova descoberta e não era ingênuo de menosprezar a menor daquelas peças, mas estava um tanto afoito por algo que ainda nem sabia o que era.

No terceiro dia das escavações houve um grande desabamento no qual morreram três pessoas. Toda a equipe imediatamente correu para ver o que tinha acontecido, menos eu. Estava em um outro sítio ao sul situado quinhentos metros de onde fora o desabamento. Abaixei-me esgueirando e espremendo meu corpo por um estreito túnel do qual afastei a circular e chata pedra que o bloqueava. Era longo e parecia se estreitar, minha roupa rasgava e começava a me arranhar e me cortar pra valer. Aquilo estava se tornando arriscado e difícil. No final, sobre a minha cabeça uma câmara se projetava em formato cúbico e era quase de ar tão rarefeito quanto o túnel. Depois que, com dificuldade consegui acessar a câmara, eu me sentei e respirei fundo. Estava muito mal, machucado e sentindo o ar rarefeito prejudicar meus pulmões. Ali senti medo e pensei pela primeira vez que morreria. Ainda prostrado pela fadiga não pude perceber logo o altar no meio da câmara. Dadas as dimensões restritas da câmara o altar deveria ter uns oitenta centímetros quadrados. Elevava-se do chão através de dois degraus apenas e seu piso era de tijolos de barro cozidos ligados por argila. Quatro postes arrematavam suas quinas e eram adornados nas cores azul amarelo e branco nas formas de retângulos longitudinais intercalados por flores brancas de miolos amarelos, contando-se exatamente de vinte a vinte retângulos como pude constatar num atento estudo dos detalhes da arte babilônica. Do meio uma estrutura como uma meia pirâmide sustentava em seu topo uma base qual um paralelepípedo e sobre ela uma almofada carmim com franjas douradas onde um anel feito do mais puro ouro que eu já vi refletia a tênue claridade que aquela câmara incidia sobre ele. O anel roubou minha atenção por mais tempo do que eu pude perceber. Ao olhar no relógio depois de voltar a mim passara-se vinte minutos. Era um anel simples, sem nenhuma inscrição, arte ou detalhe. Tentei puxar o anel e ele não saia do lugar. Parecia estar ligado à almofada de alguma forma, mas não, estava apenas sobre ela. Nisso percebi um poderoso enigma. Como um objeto como aquele anel mantinha aquela posição em pé sobre a almofada sem cair e além disso mantinha-se firme como se preso por alguma haste invisível? Tal qual a espada de Excalibur era impossível retirá-lo dali.

Na tentativa improvável de introduzir o dedo anelar da mão esquerda nele, eis que imediatamente o anel soltou-se aderindo ao apêndice da mão com perfeição. De posse do anel senti os pelos do corpo eriçarem-se e uma energia percorrer meu corpo como se as quedas do Iguaçu caíssem indômitas sobre mim e depois não me lembro de nada até acordar deitado sobre os tijolos frios da câmara secreta. Desorientado buscava nas lembranças os primeiros indícios de como fui parar naquele lugar e então não sei porque percebi que tinha que sair dali o quanto antes. Desci pelo cadafalso da câmara e rastejei pelo túnel apertado e sinuoso sem me preocupar com os ferimentos que voltaram a sangrar e arder como facas quentes deslizando suas lâminas na pele.

Enfim com a revigorante luz solar senti o ânimo voltar e ao olhar em volta não percebi nenhum sinal de escavação nem ao menos da equipe. Tudo estava muito diferente. Barreiras de madeira e entulhos formavam-se em volta dos sítios e um pandemônio agitava o lugar. Bombardeios, tiros, granadas, berros de desespero e dor, gritos de ordem e de ódio. Naquela breve mudança de direção do vento pude ouvir uma saraivada de uma Ak47 desviando-se em minha direção. Esquivei-me antes que a arma mortal começasse a cuspir suas balas devastadoras e voltei pra dentro.

Em pânico, sem saber o que pensar ou como agir segurei o anel com a outra mão. Tentei puxá-lo, arrancá-lo do dedo, mas ele não saia. Era impossível arrancá-lo e então sentei no chão e comecei a chorar e a pedir, como numa oração, desejando estar longe dali. O efeito disso foi tão absurdo e estranho, que se o leitor creu em tudo até aqui, duvido que continuará a levar a sério o que eu direi nas linhas e parágrafos que se seguem até o fim do meu relato. Fui transportado para um outro local do espaço/tempo. Tinha certeza que ali era o Marrocos, porque eu já estive ali em excursões escolares durante a faculdade e Marraquexe era uma dessas cidades tão singulares que você não poderia confundi-la com nenhuma outra no mundo. Embora muito erroneamente ouço dizerem que o oriente médio todo se assemelhe, afirmo que nada poderia ser mais equivocado. Perdido naquela imensa colcha de retalhos tecida por tendas, vendedores, turistas, cidadãos e mercadorias tão variadas quanto a paisagem. Tudo parecia caótico, os vendedores apregoando tão rusticamente como se te obrigassem a levar mais do que oferecer simplesmente. Os tapetes sendo batidos para se comprovar sua durabilidade. Os temperos e cereais sendo remexidos e os camelôs empilhados de produtos variados e pirateados.

Atordoado passei a observar a minha volta sem saber pra onde ir. Pessoas esbarravam, eu estava tonto e perdido no meio daquele alvoroço. Corri pra longe da multidão. Passei a andar entre os prédios, pelas ruas estreitas e entrei em um hotel. Não sabia se estava com dinheiro. Minha mochila com as coisas estava no Iraque e na hora me veio em mente conferir o bolso da calça para constatar se trazia a carteira, embora fosse certo que não a levava comigo quando me espremi pelo túnel pelo que me lembro, mesmo não confiando muito nas minhas recordações recentes, contesto que alguém consiga forçar passagem por aquela estreita galeria de minhocas sem perder o que quer que leve consigo. Estava ali, a carteira com o cartão de crédito. Pedi um quarto e subi apressado. Tomei um banho demorado e cai na cama nu pensando em toda aquela loucura. Quer dizer, o anel tinha me transportado para o Marrocos, mas por que? Não me lembro de ter querido estar aqui. Se é algum tipo de anel mágico que realiza desejos porque vim parar aqui? Conclui que teria de aprender a usar aquele objeto voluntarioso para controla-lo e não ser controlado por ele. Mas era curioso que o objeto me afastasse do local onde foi encontrado, sendo que agora minhas chances de obter pistas, inscrições ou mesmo um manuscrito com instruções sobre o anel, eram mínimas. Inquieto sai do hotel para ver o que podia descobrir. Entrei em um taxi e pedi em árabe marroquino ao taxista que me levasse a uma biblioteca. O homem, um senhor castigado pelo sol, com um pomposo bigode, que usava uma djellaba e tinha a cabeça coberta por um turbante branco, tagarelava tanto que me deixou com dor de cabeça. Só escutava, o que ia dizer? Falava do fulano que saiu do seu táxi e fedia mais que carniça e de cicrana que esqueceu o celular no banco de trás e de que como ele conseguiu lhe devolver o aparelho, enfim, fastidioso. Depois de uma viagem que parecia não ter fim o homem me deixou na biblioteca, paguei a corrida e agradeci. Uma longa subida de escadas me aguardava onde alguns indigentes e artistas de rua se revezavam para chamar a atenção dos transeuntes. Eu desviava de suas tentativas de abordagem.

Dentro da enorme biblioteca procurei as estantes dos livros sobre as civilizações mesopotâmicas e depois de mais de quatro horas de pesquisas sem resultados, finalmente foi num velho e judiado livro encadernado e amarrado em tiras de couro, como um diário de viagem, que encontrei o que buscava. Então verifiquei se tratar mesmo de um diário com anotações importantes sobre objetos e artefatos daquela civilização antiga. Desenhos com legendas detalhadas e benfeitas, tudo disposto de forma impecável e didática, facilitando a leitura e o entendimento. Só depois de folear dados técnicos, medidas, datas, funções de determinados artefatos e conceitos históricos, os quais a maioria já eram de meu conhecimento, pude vislumbrar espantado o desenho do anel exatamente como eu encontrei na câmara. No centro da folha foi dedicado um valioso espaço para o desenho do anel. Os sombreados e a forma como a luz foi trabalhava tornavam o realismo da figura impressionante e até assustador. O texto corrido do início ao final da folha, obliterando o espaço quadrado do desenho, que discorria sobre o anel por suposto, mencionava um mago babilônico chamada Ali Kazen, que fora banido do reino por Nabucodonosor devido a escândalos sexuais (motivo oficial) e práticas religiosas sombrias que o mesmo se negava a compartilhar (não revelado), forjou o anel na África 5 anos depois de seu exilio. Não se conhecia seu paradeiro enquanto errava pelo continente negro. O que se sabe é que quando voltou desafiadoramente, tendo cruzadas na garganta as lanças dos guardas do rei, ele tinha um poder tal qual podia ser sentido enquanto pisava seus pés no chão e que seu semblante era envolto em empáfia e invencibilidade e todos, inclusive aqueles guardas reais o temiam.

Buscando as pazes com o rei, o mago Ali Kazen o presenteou com o anel. O rei fascinado pelo artigo tão caro, do ouro africano de maior quilate que ele já viu e avaliou depois com seus conselheiros, abraçou o mago e lhe agradeceu, logo após oferecendo uma festa no reino que durou três dias. Mas com o passar do tempo o rei, dotado de uma invejável saúde e disposição, passou a definhar rapidamente sem que seus curandeiros e médicos nada pudessem fazer para sua reabilitação. Os médicos mais respeitados e notários dos reinos da terra foram chamados e não eram capazes de diagnosticar a sua moléstia que o consumia a cada dia. Em 40 dias depois de receber aquele anel o rei morreu e seguindo instruções do mago, que a essa altura usufruía as regalias de um dos ministros do reino, deu ordens de como proceder quanto a ocultação do anel e mandou construir a câmara secreta para depositá-lo.

Outra curiosidade que pude relatar no diário é que o anel, grande radiador de energia maligna e hipnótica, atraia para si a cobiça de todos que punham os olhos nele, mas nenhum que tentou foi capaz de tirá-lo do lugar onde foi estabelecido que ficasse, nem mesmo o último a tentar antes de mim, o que escreveu o diário, John Conrad Crawford, que datou aquele registro do anel de 17 de agosto de 1947. Conhecido o anel como o anel de Nabucodonosor, nebulou-se para sempre no tempo suas origens míticas e o seu verdadeiro criador, relegado somente à um velho mago e louco. Como eu estava de posse do anel achei curioso que depois de mais de 2 mil anos ninguém fosse capaz de usufruí-lo da maneira que se usufruem dos anéis e logo eu, um estagiário de faculdade tivesse esse privilégio. Surrupiei o diário e sai dali correndo sem olhar para trás. Passei os dias no hotel lendo o diário e enlouquecendo após absorver tantas informações que nunca deveriam ser reveladas a nenhum ser humano. Confesso que na biblioteca subestimei aquele diário ao passar os olhos por cima tratando logo do que queria saber e depois atônito sai a passear pelas ruas de Marraquexe para concatenar tudo aquilo.

Depois de girar o anel no meu dedo eu cai de uma ponte de onde admirava os raios dourados do sol poente refletindo nas águas e então sem entender porque e contra a minha vontade eu cai no rio lançando-me involuntariamente de maneira voluntária. Após 5 minutos mergulhando naquelas águas profundas onde a morte já deveria ter batido e me convidado a entrar, avistei um enorme peixe, de uma espécie que eu nunca vi antes, parecido com uma garoupa, mas em tamanho proporcional à baleia. O peixe entrou em uma fenda entre uma formação rochosa e eu o segui. Aquelas dimensões oceânicas no fundo de um rio não me chocaram mais do que o fato de ainda estar respirando e por isso não achei estranho seguir o peixe e lá fui. Dentro da gruta não havia peixe algum, apenas encarei catatônico um velho mago que formou prontamente na minha cabeça a figura desenhada por Conrad naquele diário, Ali Kazen, que com a mão espalmada e estendida me pedia o anel. Com medo de sofrer as consequências lhe entreguei logo o anel. Se um rei como Nabucodonosor pereceu diante dos sortilégios provenientes de sua vingança o que poderia acontecer com um coitado como eu?

Após lhe entregar o anel tudo se apagou inteiramente de forma súbita e só acordei ainda encharcado e com restos orgânicos do absurdo oceano fluvial presos ao meu corpo. Estava na câmara, creio eu, um pouco antes de colocar o anel no dedo, como se tivesse voltado no tempo. Presumi isso depois de tudo que aconteceu, o mais inconcebível dos sonhos. Mas não tinha anel nenhum. A almofada estava vazia e procurando em cada canto e por toda a parte não o achei. Voltei o caminho e pude perceber que tudo estava como antes. Os curiosos no desabamento e eu ali sozinho e completamente outra pessoa. Nunca mais seria o mesmo.

Anderson Roberto do Rosário
Enviado por Anderson Roberto do Rosário em 19/05/2018
Reeditado em 20/05/2018
Código do texto: T6341241
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