Antiga e Nova Música(1)

Na escrivaninha os mesmos papéis de música ficavam por muito tempo. O papel pentagramado repleto de anotações rápidas, rabiscos, correções, era banhado pela fina luz do sol que entrava pela janela. O título no papel era escrito com cuidado, e as notas pequenas mostravam a inibição do artista.

Tudo no quarto respirava um ar agradável, limpo, belo, poético. A inspiração sentaria em qualquer lugar do quarto e chamaria o artista para se expressar.

A pessoa que habitava tal quarto era um rapaz de quase trinta anos. Chamava-se Olaf von Bildenburg. Estudava há quase dez anos piano e violino. Compunha desde os dezesseis anos e já publicara oito sonatas.

Olaf sentia que a música que escrevia lhe era familiar. As pessoas que ouviam suas sonatas citavam de Stradella a Starvinsky.Ele aceitava com parcelas, mas sentia que já havia escrito aquela música antes.Havia um ar de novidade a ele nessas composições.

Durante a primavera, ele se retirava para a sua casa no Alto Reno. Ficava em contato com a natureza, fazia caminhadas, tomava banho no lago, e compunha valsas e concertos.

Nos últimos dias havia comprado partituras de Scriabin, Debussy, Brahms e Verdi. Eram seus compositores preferidos, e enquanto estudava as partituras no café da manhã, notava muitos compassos, acordes, repetição, muito parecidos em sua obra. O mesmo tom lírico em uma frase, ou uma breve apojatura, um " maestoso" que era inserido em acordes quartenários. Olaf via muitas similaridades.

Uma vez dissera a um amigo violinista, que sentia já ter escrito as músicas que estudava. Seu amigo apenas disse que era tudo impressão e que todo artista, principalmente os músicos, sempre acham que deram um passo à frente de outros músicos. Mas como poderia ser assim? Ele estudava partituras de compositores que vieram ao mundo antes dele, se ele estudasse as obras dos compositores de sua própria época seu amigo estaria correto no que dizia.

Olaf começava a se inquietar com as semelhanças gritantes de sua obra com a de um músico italiano chamado Paisiello. A doçura da obra, a verve lírica, suave, os intensos motivos pessoais na escrita, tudo era muito parecido.

Viajou no inverno e aproveitou para acompanhar um evento que homenageava a música do século XVIII. Havia flautistas, violinistas e violoncelistas. Era um espetáculo pequeno em um teatro pouco conhecido, mas que o agradava muito. Assistiu comovido ao espetáculo. Depois do término, decidiu conversar com um dos músicos, que se chamava Bartolomeo Paccini. Conversaram sobre os gostos musicais, sobre os estilos, composição, e Olaf disse:

- Tenho estudado a obra de Paisiello, e tenho notado muitas semelhanças com as minhas composições. Sempre quis saber de onde vem essa semelhança.

Bartolomeo ficou tão interessado quanto Olaf, ele nunca conhecera um músico que tivesse semelhanças em compor no estilo de um compositor já falecido.

- Quando você percebeu as semelhanças na obra? Recentemente?

- Sim, antes eu não havia estudado nenhuma obra de Paisiello. Nem mesmo o conhecia.

- Você é a primeira pessoa que me conta que tem semelhança com a obra de um compositor conhecido, já falecido- disse Bartolomeo- Isso o perturba?

- Um pouco- respondeu Olaf preocupado- Afinal, não é apenas uma ou outra coincidência. A obra de Paisiello e a minha têm a mesma estrutura tonal, os mesmos acordes, as mesmas ligaduras de compasso e outros detalhes.

- Já pensou que você pode ser a reencarnação de Paisiello?

Olaf deu dois passos para trás. Sua boca ficou aberta, tomado de tal susto, não conseguia falar. Bartolomeo sorriu ao ver o susto do colega e disse calmamente:

- Eu acredito na reencarnação. Sei que ela é real. Essa capacidade que temos em tocar, e você em compor não é de agora. Você tem menos de trinta anos e já compõe como Paisiello. Não acha que tem uma explicação para isso?

Olaf ficou quase cinco minutos sem falar. Havia sido tomado de surpresa pela pergunta de seu colega músico. Se realmente era o músico Paisiello, isso explicava sua paixão pela Itália, pela própia ópera italiana. Disse com a voz trêmula:

- Eu, até este dia, jamais pensei em ter sido Paisiello. Nem mesmo em reencarnação acredito.

- Você deveria pensar mais à respeito. Não precisa me mostrar a sua partitura e a de Paisiello, o modo como fala com tanta sinceridade não me deixa nenhuma dúvida.

Olaf estava totalmente surpreso com o comentário de seu colega. Apesar de esperar na conversa uma resposta incomum, totalmente diferente do que já ouvira, ele não conseguia compreender como a ideia da reencarnação viera justamente naquele momento.

- A ideia da reencarnação me abala. Não sei dizer porquê. Para mim a vida sempre foi...

- Única?- perguntou sorridente.

- Sim, eu vejo tudo como uma grande chance, como se todo o mundo fosse uma teia, e quando é destruída...

- Você não está errado; mas nós já vivemos diversas vezes. O seu talento musical é prova disso. Eu espero não ter te assustado. Você pode ou não ter sido Paisiello, mas se realmente há trechos inteiros, a dúvida se torna certeza, meu caro amigo.

- Pensarei a respeito. Agradeço pela ajuda, senhor. Espero que nos encontremos uma outra hora.

- Sim, nos encontraremos.

Olaf se despediu e foi para um pequeno hotle onde estava hospedado. Decidiu fazer as malas e retornar à Alemanha. No caminho não pensava em nada além da conversa com o musicista: " Serei eu um músico do passado"? " É possível quea vida seja tão infinita quanto as estrelas do céu?" " Estarei predestinado a deixar meu nome na História?".

Ao chegar em casa ficou dois dias trancado no quarto. Uma pleiâde de pensamentos invadia a sua mente. Pegou algumas páginas de um concerto para violino e viola, intitulado " Vida Gloriosa", já havia escrito todo o primeiro movimento em Allegretto, o segundo seria em Allegro Moderato, e voltou a compor. Terminou de compor o concerto quase no raiar do dia. O sono e a exaustão tomavam conta de todo o seu corpo e foi dormir.

Quando acordou, lembrou-se de que precisava buscar uma partitura de Paisiello com um amigo. Arrumou-se, colocou suas partituras em uma pasta de couro e saiu. O caminho que trilhava tinha um vale que não era tão profundo, mas que podia matar qualquer descuidado em cair nele. Olaf ainda se sentia sonolento, caminhava lentamente e não percebia que caminhava para o fim da estrada e em direção ao vale, deu um passo e caiu batendo a cabeça e os ombros. Não tinha força nenhuma para levantar, as folhas estavam espalhadas ao redor e ele disse com voz fraca:

- Paisiello é a minha essência, meu eu anterior.- fechou os olhos e começava a anoitecer.

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