CAMPO DE MORANGOS

Era uma bela terra. Era um vale paradisíaco. Era um vento brando. Era uma casa de tijolos e cimento e barro. Dentro dela uma cozinha, uma sala e dois quartos. Um fogão a lenha, várias gaiolas, passarinhos gotejando cânticos; no quintal dois jumentos, duas vacas, magote de galinhas, duas cabras de leite muito, era uma pintura de Van Gogh. E havia o pai, a mãe e ela. Era um mundo por sobre este mundo, estética disforme. Moça endoidecia o espelho, o rosto era córrego em que pássaros bicavam o néctar das delícias, corpo era mó de engenho entontecendo o moedor. De nunca frequentar escola alguma. Aprendera a ler e as quatro operações com os pais, rudes campestres que prezavam a pureza e descontaminação da alma. Crescera rápido, de nunca pisar numa cidade: alvoroço urbano de muitos carros e prédios e gente com máscaras kabukis de teatro urbano. Primeiro livro que lera e relera foi As Aventuras de Tom Sawyer, sua infância na pele de um menino presepeiro.

Na primeira vez em que aquele guapo rapaz a viu, endoideceu. Ela, inocência de semente de abacate, apenas seguia seu carrossel de menina de campo: pés descalços, um sorriso eterno nos lábios de açúcar demerara, saltitando por sobre pedras, espinhos, urtigas. Ele fora entregar a correspondência deles e conheceu a doidice da paixão. Ele que levou Tom Sawyer a ela. E depois levou Machado, Graciliano, Lima Barreto, José Cândido de Carvalho, tanto cabra bom. Dez quilômetros da cidade mais próxima para seu sítio. Quinze em quinze dias ele aportava. Qualquer desculpa. Numa motocicleta chinfrim, ele aportava. E ela lendo e beliscando a vida. Mordendo a pele da vida. Cutucando o cocuruto das ideias num cafuné de acumular bibliotecas. Nascera campesina, morreria sem peias. Disse isso ao guapo admirador, olhando a alma dele, enfeitiçando a sobriedade dele. Tonteou e foi embora. De nunca mais voltar. Soube depois que desaparecera da cidade, foi pra capital, diziam. Perdeu o tino. Falou que iria ser padre, que a vida era curral de boi brabo, que mulher nunca mais, essas coisas.

Surgiu novo pároco lá na cidade. Cabra novo, de estrutura de talisca, de gestos calmos e futucador de libido do mulherio. Confessionário vivia cheio de viúvas e moçoilas e senhoras carolas. Pai solicitou presença dele lá no sítio, pra dar orientação espiritual pra filha avoaceira, menina tá muito solta, mulher. Precisa de rédeas. Dizem que esse padre é muito bom em aconselhagem. Lá se foi o vareta, no carro da diocese. Sem batina, à paisana, gentileza em pessoa, cumprimentou os pais e bateu os olhos nela. E num tirou os olhos dela, da morena de pés modelados por descrição de Ivan Búnin. Pediu permissão aos pais, gostaria de ficar a sós com a menina, por favor. E tascou-lhe conselhos enviesados, e falava e tirava a roupa dela com os olhos, e bebia as palavras adocicadas da boca dela, e modelava os seios dela com suspiros de moribundo. Saiu e pediu permissão pra voltar mais vezes. Voltou e num aguentou e se declarou a ela, a tortura pela qual estou passando, não te tiro da cabeça, dividido entre a fé e a libido, teu corpo e teu rosto são minha hóstia, que faço? Fizesse nada, não. Apenas tomasse vergonha na cara e deixasse de ser padre e fosse viver nas masmorras putrefatas da luxúria e no inferno da hipocrisia. Pároco nem se despediu dos pais, desabençoou-os e teve surto de gente amalucada, com a diocese mandando-o internar lá na capital.

Pai e mãe voltaram à rotina, ela continuou sendo amante do campo e tomando banho naquele riacho límpido. Lá ela era Eva, banhando-se e cantando, deixando-se enxugar pelo vento. Pudesse se casaria com o vento. Emprenharia dele várias vezes, rebentos afoitos, parto natural, e seu campo de morangos sendo a despensa dos seus desejos e seus sonhos de uma noite de verão que tinha razão.

Matuto Versejador
Enviado por Matuto Versejador em 01/04/2018
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