Um espírito

Escrivaninha. Primeiras linhas de um roteiro.

Dolores está arrumando o cenário. Holofote. Ação: Dolores e ducha, Dolores (encontrei teu nome num caderno), corte. Que nome bonito “Do-lo-res” pensou o Diretor. Havia nela alguma coisa. O seu rosto? Dolores vivia gratificando o ego do mundo de modo irresistível. "Ah que céu noturno! Ah que noite às cegas!" Fingindo gravidade metia lembranças de amores em qualquer assunto. Com a interrupção da gravação Dolores contemplava o café sem açúcar na entrada do hotel. Mal sabia o que fazer com o diploma de pergaminho. No intervalo perguntou para Mila se devia cair na prostituição. Conhecia garotas que cursavam faculdade e ganhavam o suficiente com a beleza para conquistar um diploma. Ser atriz era tudo o que queria. Focar uma imagem de si. Ela era uma estrela e seguiria buscando remédio para desgraças financeiras. No fundo sabia o quanto conquistar o ser humano consistia em gratificar o ego com semelhanças. Insistiu com Mila se queria o diploma de pergaminho para ela. Mila para Dolores: Não quero! Dolores você é liliputiana, protestou. Não seja boba, respondeu. Está reduzindo sua vida... Por acaso estudou para ficar num buraco pequeno e sem aventuras? Da janela do hotel dava para ver a baixa pluviosidade na secura do clima. Do hotel saiu pela plataforma em direção à rampa derramando scotch. E reclamou dizendo que a mesinha era inadequada, “mesa liliputiana”, fazia com as mãos o gesto de caso encerrado. Dolores: (sensual para o padrão das fotos) poderia ter esbarrado na mesinha, podia ter morrido. Quando a camareira saiu repetiu mil vezes para o uísque: “ninguém é insubstituível!”. E ligou: "Alô, concierge! O uísque será substituído?" Era a cena ideal que o Diretor estava procurando. Não fosse o tempo inventar cápsulas e tirar cápsulas das intenções e necessidades, tudo sairia bem. Uma rápida pausa e gritaram pelo Diretor na ilha de edição. A cápsula de azar estava chegando. Dava para ver uma mulher de trinta anos entre muitas garotas nervosas e impacientes apontando para o Diretor como se ele fosse perfeito. Vestida de coelhinha para a cena sensual Márcia recebe a incumbência de lhe meter café preto nas mãos. Aquilo interrompia tudo. Vestida de coelhinha Márcia continuava áspera e direta: Diretor, estamos num impasse! Ou o senhor continua a gravação ou vai para casa cuidar da sua vida. Pausa, aumento do tom dramático. Momento bombástico. Alguém veio com a notícia. Um espírito baixou em Dolores! Comerciais e entrevistas poderiam entrar nesta parte. Sinopse: Dolores recebe um espírito, corta, interrompendo tudo. Quando Dolores começava o espírito sofria em seguida de dor de cabeça e a ciência explica: “bitucas” que fumava escondida de si mesma. Bitucas da alma. A familia rejeitava completamente essa suposição. Dolores sem espetáculo estava dispensada para viver a liberdade do campo por algumas horas. Andar sozinha lhe dava um certo prazer lascivo. Quando passava na rua os homens famintos olhavam desfeitos como se ela fosse receita de cura para todo o mal. Tripla, múltipla. Dublada haviam colocado outra voz feminina nela, coisa que nunca digeriu bem. A colagem havia ficado imperfeita, uma tragédia. Queria brilhar na película para ser desejada em todas as quatro estações.

Gravações canceladas. Só era possível fumar charuto lendo o jornal. Todos ficaram sabendo do caso. A notícia correu do estúdio para a produtora como alegria de final de ano num lugar onde quase nada acontece. Ele estava ficando velho e a assistente com espíritos entre assados de ano novo, terlintas, farândulas, bobagens, chistes, plantão de orações e central de férias sobre o problema. Temiam um espírito majoritário em meio a perguntas imbecis. Os refletores permaneceram acesos durante a noite. Tratava-se desta vez de avantesma menor. Pobre moça! O filme praticamente havia acabado com a inesperada ocorrência. Não surtia o efeito plástico desejado. Um espírito de 1800. Ectoplasma com cintilações elétricas desencaixando o passado redivivo por quarenta e oito horas. Até que agosto tinha sido um bom mês sem almas. Em outubro abrolhou Pasteur, para surpresa geral, mas foi visita rápida de médico. Nos últimos três meses estranhavam ausência de alguma condessinha do tempo “era uma vez uma princesa do palácio”. Histórias que eram verdadeiras contramanobras da loucura. Seu Gastão falava sozinho, mas era com o Conde d Eu. Havia um quê de lírico.

Nos dias de espírito ela ficava sentada de pernas abertas e cabeça pendendo para os lados. Como se o espírito bronco ficasse um pouco do lado dela. Esta gente é sempre boa quando chega, disse Onofre, tentando acalmar alguém que não estava nervoso.

- Vai Anisete, vai passar... O espírito se sentia homenageado. Poltronas para o lado e a alma do outro mundo passeava pela casa fantasmal em busca da culinária, porque saco vazio não se mantém em pé. Era-lhe difícil caminhar pela rua carregando espíritos, comentou entre um acesso de invasão e uma folga. Disseram que flutuava regando o capim.

O homem à procura do caminho procura liberdade autêntica e as almas os canais expressivos! discursou o vereador Serenino na tribuna, querendo empregar a moça na estação pública cósmica, inexistente, e criada por ele, para facilitar novas ocorrências. Filmando o Diretor apontava para o plano geral em Barbas, posto de gazolina, novamente Barbas. Agora vamos dar as mãos e dobrar o desvão da memória. Som. Haverá escada.... uma porta... um gato... um elevador.. um guarda. Vamos subir até o patamar da histeria e abrir o baú da memória. Soltar. Ouçamos isto: O homem à procura do caminho procura liberdade autêntica e só mesmo por isso Dolores inventou o neologismo “consolange” muito apreciado: “consolange” - para dizer prazer e suavidade que o espírito de uma tal Solange transportava grátis. Em busca da liberdade autêntica.

Quanto ao Gastão e a comunhão com o Conde d Eu... o que “ele” gostava nele “mesmo” era que sabia como ninguém conversar à toa, despreocupado. Virava italiano della stazione na porta do hotel vendo o filme passar”.

Leu o roteiro inteiro calado e murmurou: coitada. Dolores.