Passado e Presente
O ar parecia estar morto. Havia todo um odor mórbido inerente onde estavam. Há algum tempo a terra ao redor onde estavam havia tremido de uma forma que eles nunca haviam presenciado antes e, algum tempo depois, um raio gigante verde voou em direção aos céus, queimando todo o firmamento por horas sem fim.
Neirya estava retirando a sua espada do último arcon que ainda cambaleava a sua frente com a sua respiração entrecortada e em seus momentos finais. Groo colocara o seu machado de face dupla no chão, levantando um naco de poeira. Ashvtar com o seu arco acertada o último corvo de Balladur que fora enviado contra eles. Cravos curava os cortes de Demi que havia se jogado contra um grupo de Lobos do Norte.
O firmamento ainda estava enfraquecido, as cores entre azul, vermelho, verde e amarelo oscilavam e, assim, não era possível saber se era dia ou noite, quanto tempo havia passado desde que todos aqueles seres foram em direção a eles em um último momento de loucura.
- Todos vivos? – Perguntou Neirya que agora recuperava o fôlego. Todo o seu rosto e parte do braço direito estavam pintados de verde e azul, sangue derramado de seus inimigos. A sua espada sutil pulsava lúgubre ainda bebendo parte do sangue que lhe fora ofertado.
- Tirando Selena que ainda parece estar paralisada ali em cima, o resto de nós está bem. – Ashvtar, meio humano, meio outra coisa que não parecia daquele mundo tinha a sua pele alva, quase transparente tão limpa quanto do dia que saíram por aquela jornada afim de acabar com a legião de Balladur. – Groo está coletando a terra da região e Demi está...
- Eu posso falar por mim mesma. – Disse a moça dos cabelos verdes. – Eu sempre pude falar por mim mesma. Estou muito... ai, cuidado com essa magia. Ela arde.
- Se você parasse de se mexer. – Resmungou Cravos enquanto ainda aplicava a sua magia em Demi – não arderia tanto.
O bárbaro Groo agora seguia em direção em Selena que continuava em sua mesma posição como se tivesse se transformado numa estátua. Ao se aproximar dela pudera sentir a sua aura quente e amigável tocar a sua alma.
- Selena?
- Shhh.
- Mas...
- Shhhh...
Ele andou mais um pouco a frente e observara porque ela pedia silêncio, de uma forma rude, mas pedia. Há um pouco mais de 20 metros havia uma colisão entre um campo protetor que estava sendo projetado por Selena e que todo o vale onde estavam era completamente envolvido e a estranha energia que ainda parecia cair do firmamento.
- Não é apenas Balladur que estava atrás do Cetro de Nkangala. Havia mais alguém e esta pessoa usou uma fração do poder que o Cetro pode fazer no mundo normal. A força do Cetro é descomunal, nunca em meus 200 anos como Canalizadora senti algo parecido.
A guerreira havia conferido mais de perto Demi e Ashvtar e eles estavam bem, precisavam apenas recuperar os seus fôlegos após a longa batalha, agora estava ali do lado de Selena e Groo.
- O que a gente pode fazer?
- Torcer para que eu consiga invocar o Uhari Camar.
- Saúde... – Disse Groo num tom de brincadeira.
- E o que viria a ser esta coisa que você falou? – O semblante de Neirya era inquisitivo, mas Selena, com os seus olhos fechados, pouco prestava atenção. – Selena?
A Canalizadora afastou um pouco da posição onde estava e um estalido pudera ser ouvido por todos que estavam ali. Uma espécie de rachadura rasgou o local onde eles estavam no céu acima, como se um tecido estivesse realmente sendo rasgado.
Groo se aproximou da canalizadora e ela assentiu em ser ajudada.
- Uhari Camar é uma forma de locomoção. Precisamos sair daqui o quanto antes, antes, antes... – Ela estava com dificuldade de se concentrar e parecia começar a suar um pouco.
- Cravos diz que acabou com Demi e está vindo para ajudar Selena para...
- Não preciso da ajuda daquele velho calhorda.
- Para o que você está querendo fazer vai sim. São poucos os canalizadores que conseguem compreender as ondas místicas que compõem o Uhari Camar. Mesmo alguém tão experiente quanto você pode nos jogar em momentos não tão interessantes, sem contar que pode aquebrantar toda a tessitura daquilo que nos existimos.
- Mas que? – Groo não estava entendendo nada do que o velho estava dizendo ali. Era mais fácil quando apenas precisava resolver pequenas rimas nas ruínas de Marouk.
- A evocação de Uhari Camar lida com forças arcanas completamente enlaçadas com a própria existência. Muitos dos Canalizadores, Energéticos e Bruxos que tentaram conduzir o Camar erraram na forma correta de compor as ondas.
- E você sabe como fazer isto corretamente? – Neirya sempre soube que Cravos, o Curandeiro, tinha algum passado obscuro. Vira ele usar de ervas normais para crescer um braço. De falar uma língua estranha na Vila de Pillar e de entrar nos sonhos alheios, isto não era algo normal que um Curandeiro poderia fazer e ele nunca mexer o seu braço direito deixava tudo aquilo ainda mais peculiar.
- Já usei uma vez. – Disse Cravos. – Eu era mais bonito antes de fazer o encanto e bem, saiu satisfatório para o que eu queria fazer. Não tinha energia o bastante e nem disciplina para canalizar as ondas, mas com a Selena isto pode ser possível.
- Viram? Eu não preciso deste velho emprestável para evocar o Uhari Camar, se nem ele conseguiu fazer a coisa direito.
- Ah, para de reclamar. – E pela primeira vez ele havia retirado o seu braço direito que ele sempre escondia por debaixo daquela pesada roupa de curandeiro. Neirya nunca havia visto algo como aquilo antes. Na verdade nem ela, nem Groo e Ashvtar, mas Demi já vira algo em sua terra Natal.
- Tecnus! – Gritou ela apontando para o braço enegrecido do Curandeiro e que refletia as cores do escudo protetor que circundava o vale. – Ele é o um tecnomago. – Voltou a falar ela se lembrando que vira em Jihar, a cidade na qual nascera, um tecnomago, mas aquele que havia visto era apenas parte do seu rosto que era coberto por aquele metal negro. Os tecnomagos eram conhecidos como seres tão antigos quanto Taléria, o reino vizinho de Filgaia. Andarilhos por natureza, eles apareciam nas horas de maior necessidade. Agora ninguém sabia o porquê eles eram chamados daquela maneira. A magia que eles evocavam ia além de qualquer coisa que bruxos, magos e feiticeiros tinham noção para compreender por completo de como eles faziam aquilo que faziam.
- Silêncio criança. – Disse Cravos que agora se livrava de boa parte de sua indumentária de curandeiro e, aos poucos, ficara apenas com uma calça negra, uma camisa sem manga também negra e arrancara não se sabe donde um sobretudo este que cintilava em cores distintas daquelas que jaziam no firmamento. – Selena, o Uhari Camar não pode ser conclamado levianamente. Os poucos que tentaram da sua tribo nunca voltaram exatamente do jeito que realmente eram, pois viram coisas que não eram para ser vistas ou presenciadas até um dado momento no futuro e aqui funciona da mesma maneira. Sobrevivi a um Uhari Camar porque a minha mente já estava disciplinada o bastante para transpor as ondas que permeiam o encanto.
Ele se aproximou de Selena que tentou se afastar de Cravos e, sentindo esta ameaça vir do coração alarmado da sua amiga, Groo quis intervir, mas deixara o seu machado lá no vale. Os olhos de Cravos se encontraram com o do bárbaro e ele recuou, pois sabia que ali era uma luta que iria perder.
Ashvtar foi detido por Neirya que planejava avançar em direção a Cravos. – Não, - Disse a guerreira. – Não há mais nada que possamos fazer. – E apontou para o firmamento. Cada vez mais rasgos se tornavam perceptíveis. Ashvtar olhou para aquilo e depois para Nerya e em seguida para Cravos que agora tinha a sua mão metálica e negra no ombro de Selena. – Não. – repetiu Nerya.
- Selena, é aqui que sabemos porque os nossos caminhos se cruzaram. Não foi para deter Balladur de achar o Cetro. Apenas de propiciar que um outro assim o fizesse. Balladur era apenas uma marionete. E agora. – O olho direito de Cravos começou a piscar com uma luz branca e, em seguida, começou a brilhar tão intensamente quanto o choque da barreira de proteção levantada por Selena e o poder do Cetro. – Uhari Camar não é uma invocação per se, mas uma forma de abrir as ondas temporais. Veja. – Imagens de uma outra terra apareciam a frente deles dois. Bolhas começavam a flutuar na direção dos nobres combatentes.
Ali passado, presente e futuro pareciam se chocar. Nerya vira a sua vila antes dela ser amaldiçoada pelo ardiloso Firion, o Louco. Ashvtar pudera presenciar quando os seus pais sumiram pelas mãos de um Rei Esquecido. Groo finalmente ficara face a face com o seu amor que havia se tornado uma tirana de sua terra desde que vestira a Manopla de Albion e Demi apenas vira um tecnomago de braço metálico negro tirar ela mesma dos braços de suas mães, uma criança perdida e doada para a Guilda de Ladrões de Lepiros.
Cada um revivendo o seu passado, sentindo o seu presente e, talvez, indo parar num futuro que eles pouco queriam confrontar. Um local perdido e sem sentido e que, invariavelmente, se tornaria um lugar completamente vazio.
- É ali, agora que... – E uma faca fora estocada nas costas de Cravos. Lágrimas escorriam da face de Demi. – Foi você que... – E a faca fora estocada com mais força. – Você que... – Cravos pegou a mão de Demi, fazendo-a soltar a faca, dando chance de Selena sair de um quase transe que Cravos estava fazendo sob ela. – Exatamente como deveria ser. – Ele arrancou a faca de suas costas, sangue vermelho embebedou a lâmina que, em seguida, se tornara negra e, ali, ele proferiu. – Do sangue do futuro, o portal do tempo é aberto. Das infinitas combinações, o passado não pode ser desfeito. Um novo caminho precisa ser trilhado para que os pecados possam ser redimidos. – Por fim fincando a faca no chão e por meio de Selena o tecnomago canalizou as forças temporais do Uhari Camar. Um brilho esverdeado envolveu a todos e, em seguida, os que estavam ali sumiram do vale e a energia do Cetro tomara de conta do lugar.
(...)
O ar parecia diferente. Gotas de chuva caiam-lhe a face, mas ela não se lembrava que chovia. Todo o seu corpo doía e os seus pulmões pareciam estar completamente preenchidos com algo que ela não podia explicar.
- Selena. – Ouvira a voz de Neirya – Ela está aqui. – Selena pudera ouvir muitos passos. Ao abrir os olhos, vagarosamente, pudera ver a trupe ao seu redor. – Onde?
- De acordo com Cravos, aonde deveríamos estar... – respondeu Demi que não parecia estar com a mesma raiva que antes. – Selena pudera ouvir então os passos pesados de Cravos em sua direção. Ele estava vestido novamente como curandeiro. O que estava acontecendo?
- E aqui é onde nos separamos. Este reino está sob o domínio do Cetro e vocês tem um longo caminho para percorrer. Tenho esperança que tudo transcorrerá bem e o fim o poder abrirá o caminho necessário para o qual vocês devem chegar, mas não se atrasem, o tempo é essencial. Lá, há uns dez dias de viagem o Necromante deverá ser derrotado e o seu caminho para derrotar Balladur se iniciará. Vamos? – Andando para o norte.
- Como sabemos que devemos confiar em você? – Perguntou Groo.
- E por que deveriam? – Respondeu com uma pergunta.
A chuva que ali caia não era a resposta, mas uma indicação para seguir em frente, pois Cravos sempre lhes mostrou um caminho a seguir e nunca foram traídos por ele, porque agora seria diferente?
Ou será que agora tudo mudou?