Mel

A histeria paira sobre a casa da jovem Mel. Com medo ela corre e se tranca em seu quarto. Nervosa, a menina coloca uma música no computador na esperança de abafar a discussão entre seus pais que perdura há mais de um hora. Com a destreza de um felino, Mel se esgueira sem dificuldade até a porta destrancada. Atravessa o pequeno quintal indo na direção do portão. O portão fechado a impede de escapar. Ela encara o muro com o dobro da sua altura. E sem pestanejar, começa a escalar o enorme paredão. No topo, olha para a casa na esperança que seu pai ou sua mãe a vejam. Porque tem em si o receio de ir à rua sem rumo tarde da noite. Ouviu sua mãe dizer:

- Você não me ajuda em nada! Sempre no trabalho ou com os amigos. Não lembro quando foi a última vez que vi você conversar com sua filha. A garota pensa que o pai dela não se importar com ela.

-Não é somente dele que eu penso, mamãe. – e se joga.

Caminhando com passos apertados e movendo a cabeça em todas as direções na procura de algum vizinho fuxiqueiro. Mel percorre metade da rua Gilbert Simas. Ao chegar na esquina, fixa-se sob o halo de luz incandescente no cruzamento com a avenida Professor Costa Ribeiro. Com olhos aguçados, sonda o trecho final da avenida. A largura deste pedaço da avenida são três vezes maior que a rua onde reside.

- Nossa... há ninguém por aqui. – indagou-se.

Os pontos de ônibus vazios, os bares fechados, até o trailer de lanches que funciona do ocaso ao alvorecer encerrou o expediente mais cedo ou não abriu.

A maior parte do céu se encontra limpo. A menor parte continha extensas nuvens passageiras proveniente da leve chuva que banhara todo o bairro. Vez ou outra, a lua se esconde atrás das poucas nuvens.

Apreciando brilho sedutor da lua. Mel inicia uma corrida pela rua Professor Costa Ribeiro. Sabia a noção do perigo sobre si. Mas a coragem florescia como nunca antes. Sempre tivera um fascínio pela noite. Sentia que suas trevas insistiam em um convite a uma misteriosa liberdade.

Chuta os sacos de lixo, salta e bata na placa que indica a rua Conselheiro Meirelhes e toca as campainhas que surgem pelo caminho. E ria, como ria. Como se estivesse num parque de diversões.

Continuou por mais uns instantes. Então seus pensamentos foram para sua mãe. Um aperto angustiante no peito que nunca sentira a assaltou e a euforia a abandonou. As lágrimas deslizaram timidamente por sua face. Lembrando de todas as coisas que viu e escutou em casa. Sentou-se na calçada que ficava entre as ruas Pires Salgado e Monsenhor Castelo Branco. A baixou a cabeça. Fechou os olhos e deixou cair um rio de lágrimas dos seus olhos.

Um ínfimo ruído, foi captado por Mel que aumentando gradativamente, aproximava-se bem devagar. O som transformou-se em um ritmo que assemelhava as bandas de marcha. Mel levanta a cabeça e não ver nada de anormal. A música está ficando cada vez mais alta.

Na rua Monsenhor Castelo Branco, desponta um bufão fazendo malabares com cinco bolinhas rosa fluorescente.

- Só posso estar louca!

Dois palhaços montados em monociclos com as mãos direitas unidas. Vão na direção do primeiro. A união é desfeita, e de forma sincronizada, eles giram, giram e giram. Um arlequim usando perna de pau, surge dançado com maestria. A curiosidade foi tamanha que seguiu na direção dos palhaços.

Mais fantasiados vão surgindo. Aproximou dum adolescente envergando uniforme banda de marcha vermelha com detalhes em lilás tocando trombone. Próxima de perguntar o porquê da algazarra. Viu a multidão colorida que preenchia a última quadra da rua Castelo Branco. Na vanguarda, uma fileira de belas jovens fantasiadas de havaianas, dançam uma coreografia estranha e animada. Por de trás da massa, vem um grande carro alegórico colorido e luminoso. Com um numeroso contingente preenchendo os dois andares do carro. A música tocada fluía do topo do carro e por músicos marchando pela rua.

Mel é engolida pela multidão. Os jovens dançam pulam e gritam ao embalo da música. E deles, mel se esquivar, sendo em vão na maioria das tentativas. Sentia-se diferente entre eles. As festa que costumava ir continham bebidas alcoólicas, cigarros e drogas ilícitas. Com esse misterioso bando a ignição da felicidade é a alegria.

O grande carro alegórico locomovia devagar, quase se arrastando. Passando ao lado dela. Enquanto ela observa alguns dos jovens no segundo andar atirando pro ar serpentinas e confetes, outros, berram para as casas convidando a todos juntaram-se à folia.

Fascinada, seu olhos refletiam o brilho e a luz colorida que emanava do carro imponente. Quando de forma súbita, saiu do transe por uma menina que a sacudia.

- Hei guria, cadê a alegria?

Trajava uniforme de banda índigo com detalhes em verde e o chapéu verde com detalhes em índigo. Por baixo do chapéu havia um lindo rosto redondo, com grandes olhos azuis que assemelhavam a cristais. A pintura escura delineando seus olhos deixa explícito o contraste com a pele bem branca.

A menina abre um sorriso cativante, e diz:

- Oi, eu sou Alexandra, como vai você nesta noite esplêndida, Mel?

- Como você sabe meu nome?

- Eu? – solta uma gargalhada. – Todos nós de sabemos bastante ao seu respeito. Mas não serei eu quem lhe dará as respostas. Será o regente desta noite.

- É... e se eu não quiser ver esse seu regente. – disse sendo arrogante.

- Aqui ninguém é obrigado a nada. Ainda mais no seu estado. Se deseja ir para solidão da rua, vá.

- Como assim meu estado? – indagou Mel preocupada.

- Suba até o segundo andar. – aproximou o rosto do dela. – Você vai gostar. – Voltou sorrindo com a cabeça.

Alexandra afastou-se e continuou a foliar. Abrindo os braços para abraçar outro rapaz com uniforme rosa com detalhes em Laranja. O rapaz a agarra pela cintura e começa a girar. As cores do uniforme da estranha garota ia Oscilando. O verde se transformava em índigo e vice-versa. Ambos gritavam enquanto esbarram nos outros. Assim foram abrindo caminho e sumiram na multidão.

Mel anda até a traseira do grande carro alegórico. Onde havia uma escada. Subindo, passou pelo primeiro andar e tornou a subir ao último andar. Então uma mão enfiada numa luva branca surgiu. Mel tenta ver o rosto que pertencia aquela mão. No entanto, rosto se manteve ofuscado pelas intensas luzes que emanavam do carro. Um nimbo formado pelo forte brilho atrás dele, circundava a cabeça do sujeito fazendo-o parecer um ser celestial.

- Venha senhorita. – fluía do rosto um timbre doce e sereno.

Mel agarra a mão enluvada que a puxa para cima. No segundo andar, frente a frente com o dono da mão. Mel fica vermelha. Era o rapaz mais lindo que já vira. A pele clara e seus olhos e cabelo eram negros como a noite. As palavras sumiram de sua boca de tão encantada.

- Está tudo bem com você?

- Quem é você?

- Eu sou o líder durante esta noite.

- Líder de quê. Quem são vocês?

- Nós mel, somos o marcha esplendor da noite e nosso lema é alegria alegria.

- Eu nunca escutei nada sobre vocês. Quais são os motivos estarem fazendo isso neste horário. E as pessoas, moradoras das casas, não saem com todo esse barulho?

- Shiii... tudo há seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer. Nosso tempo agora é para se divertir. Vamos aumente a euforia e diminua a inibição dentro de você, pequena.

Seguindo os conselhos do jovens regente, Mel se lança na diversão junto com a marcha. Atravessando as ruas do bairro, sempre que avistava a casa de algum conhecido. Berrava pela tal pessoa, porém todo esforço não adiantava. Mais a frente, em outra rua por onde a passavam. Avistou um amigo vindo na direção da marcha pela calçada. Confusa com a tranquilidade do garoto, que distraído, digitava no celular. Quando o carro passou por ele, ela acenou e gritou:

- Pedro aqui, aqui!

- Ele não pode te ver ou te escutar. Desista. – disse o líder.

- Mas como isso é possível?

- Olhe novamente para o seu colega.

Torcendo o pescoço, a menina vê o garoto cortando a multidão sem sofre choque com os outros. Pedro cruza a rua e vara o carro. Mel dispara pro lado oposto. Debruça-se aflita sobre o guarda-corpo. Pedro reaparece e seguindo seu caminho desaparece.

- Ele ainda pertence ao outro lado. Ou como nós gostamos de proferir. Ele é um dos soprados.

- Meu amigo transpassou o veículos!?

- Você já sentiu um arrepio pelo corpo ou um frio na espinha de repente pela rua? Estas sensações são o que alguns sentem quando estão “dentro” do carro.

- O que são vocês, e o que eu estou fazendo aqui?

- Nós, sob o auspício do grande carro, estamos encarregados de buscar as almas dos jovens que morrerem.

- Então eu morri. Como isso aconteceu. Eu apenas sentei no chão. – falou desesperada.

- Você não morreu... Ainda. O seu caso é raro, muito raro. Nós vimos você dançando na rua. Sua felicidade tocou a todos nós. Foi maravilhoso ver você livre ao luar. Contudo, no apogeu da euforia a sua flor interna murchou. A tristeza foi tão intensa que senti seu desejo de morrer. Infelizmente não era a sua hora.

- Então como eu cheguei aqui?

- Eu pedi aos primordiais uma oportunidade de resgatar novamente a sua alegria. Você é uma pessoa muito especial porque essa dádiva é concedida a poucos.

- Você pediu? – disse desacreditada.

Mel novamente corada vira o rosto envergonhada. O líder leva sua mão enluvada até o queixo da menina. Conduz o rosto da menina até o dele. Mel o olha com as pupilas dilatadas. E o jovem rapaz a beija. Um beijo que faz ambos perderem a noção do tempo.

O grande carro alegórico dá uma parada brusca. E trás de volta o jovem casal à realidade. O líder olha ao redor e sorrir para ela, e diz:

- A alegria eterna chegará para alguém neste momento.

Todos os outros jovens param e batem palmas comemorando. Outros assobiam e dão urras. Mel olha ao redor procurando algo fora do normal.

- Nós estamos na praça central. Será que alguém vai morrer engasgado num desses trailers de sanduíches.

- Você acha que basta apenas morrer enquanto se é jovem para partilhar conosco a alegria eterna, doce Mel? Nós jovens lançamo-nos para as noites com o intuito de vivermos o máximo o momento. Porém, infelizmente fatos ruins acontecem. Acidentes, brigas, intoxicação por drogas e outras coisas acabam ceifando nossas vidas.

- como assim ceifando nossas vidas?

- Imagine-se ansiosa pelo seus dezoito anos. Faltam um mês, e você está contando os dias. Eis que chega o dia e todos seus pensamentos são para a noite. Quando anoitece, você e seus amigos compram meia-dúzia de bebidas. Pega o último ônibus que vai para o centro da cidade, rumo à felicidade. No ponto alto da sua noite. Tudo desmorona. Numa hora você está andando e cantado pela calçada junto dos amigos. Na outra, uma força te atinge por trás, que ausência de gravidade faz com que os giros não tenham fim. E em sua última hora você está deitada no asfalto frio tentando respirar. Contudo, cada vez que você tenta suas costelas fraturadas perfuram mais seus órgãos. A última coisa que me lembro é o gosto do sangue que fluía pela minha boca.

Primeiro veio o estrondo depois os gritos inundam o lugar.

- Foi uma batida de moto. – berrou uma mulher gorda que se encontrava sentada comendo sanduíche ao lado esquerdo do carro alegórico. – Meu deus. - Tornou a dizer.- O motoqueiro vinham a pela Georges Bizet. Eu vi o vulto dele passando a mil. Infelizmente vinha um carro pela Franz Liszt que no momento exato atravessava o cruzamento da farmácia.

Outra mulher que a acompanhava respondeu:

-Jesus tenha misericórdia dessa alma. – analisou a amiga por um momento, a olhou incrédula e tornou a falar. - Mas que visão mulher!

-Minha filha, eu sou a encarnação da fofoca. Agora levante esse rabo gordo daí é vamos vê o acidente. Quero ter o que dizer amanhã para aqueles adolescentes sem juízo na escola.

Muitos curiosos correm para ver. Formando um cinturão humano envolta do local do acidente. Mel observa um rapaz negro de cabelo raspado se afastando de dentro do cinturão. Ele vinha em direção ao grande carro alegórico. Era como se ele estivesse sob algum feitiço. Todos que seguiam a pé a marcha, se aproximam do rapaz. Aglomeraram-se envolta do jovem que desaparece. Instintivamente, Mel compreende quem era o rapaz.

- Mel – disse o líder. – Tenho que dá as boas-vindas ao novo integrante. - O líder vai com a Mel até a dianteira do carro. – Seja bem-vindo a marcha esplendor da noite, Gabriel. E seu lema agora é.

- Alegria alegria! – gritam os integrantes.

O cinturão se desfaz revelando o novo integrante. Este agora vestia novas roupas. Seu uniforme de cetim azul céu com detalhes alaranjado.

Do céu, chuvisca confetes. Mel sente o olhar profundo do novo integrante sobre si. Os jovens no grande carro e ao chão, perscrutam Mel como se ela fosse uma profunda caverna. Então, apavorada, ela diz:

- O que há de errado com eles. Por que estão me olhando assim. – pergunta ao regente. Quando se vira em direção ao líder ver que em sua face tem estampado o mesmo olhar analítico dos seus companheiros.

Seu momento conosco terminou. - Mel o abraça e diz:

- Eu não estou pronta para te deixar.

- Eu tampouco. Só que não é correto. Você não pertence a marcha. Eu... eu nunca tive alguém como você enquanto estive por lá.

- Eu... – Mel tenta dizer mas o regente a interrompe e a beija.

A doce menina se entrega ao último beijo. – O volume de confetes aumenta. – Ele a empurra.

Mel bate e rola por cima do guarda corpo em volto em tiras de led, Indo na direção do chão. Os confetes envolvem-na igual a uma placenta deixando-a na posição fetal.

Tocando o solo, a “placenta” se desfaz .No alto do carro, Erick perdido em seus pensamentos. Observa a miríade de pequeninos papeis coloridos espalhados pelo chão.

- Eu odeio quando ele nos trás para este bairro. Isso aqui é o purgatório. – disse Alexandra. – Vamos, Erick. Cadê a alegria. A noite ainda não terminou.

- Mel, Mel, Mel. Acorde menina!– dizia seu pai.

- Meu deus – disse sua mãe. – O que houve com essa garota para sentar na esquina sozinha a essa hora tão tarde.

- O que você acha. Ela fugiu por causa da nossa briga.

- Eu vou ligar para a SAMU.

Quinze minutos depois chega a ambulância. A paramédica pula da ambulância e pergunta o que aconteceu.

- Nós não sabemos. – dizem os pais.

A paramédica chega os sinal vitais da menina. E cheira sua boca.

- Ela está em coma. Mas o que acarretou esse coma, não sabemos. E esse é o perigo. Ela pode ter engolido ou tomado algum remédio com a intenção de tirar a própria vida. Não é normal sentar no portão alheio sozinha a essa hora da noite.

A paramédica volta para a viatura e o motorista diz:

- Os rapazes da “27” atenderam um acidente que ocorreu quase agora neste bairro.

- Deixa eu adivinhar. – disse a paramédica. – Moto, né?

- Acertou, o rapaz veio a óbito antes de chegarem. Eles estão voltando para o QG.

A paramédica pega o rádio para contatar a central e diz:

- Central, estou levando para o Getúlio Vargas uma adolescente caucasiana com idade 15 e 16 que foi encontrada pelos pais na rua sozinha desacordada. Câmbio.

- Ok 11. Vou avisa-los da sua chegada. Câmbio.

- Obrigada, central. Câmbio, desligo.

FIM

Ghostzin
Enviado por Ghostzin em 08/03/2018
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