Prosa Musical - O Rei do Silêncio ou Enjoy the Silence (Depeche Mode)
Que sons horríveis são esses?! Como ousa agredir meu mais perfeito silêncio com suas palavras brutais?! Quem é você?! O que veio fazer aqui?! Não, você não é bem-vindo. Não sei como chegou aqui, mas, por favor, fique quieto. Aqui os sons são proibidos, principalmente as falas humanas. Eu sou o Rei do Silêncio e esse é meu mundo. Aqui tudo é meu, inclusive sua voz. A única coisa que você pode fazer é ouvir, a mim e a tudo que ecoa do meu interior. Se não quiser, pode ir embora.
Aqui tudo tem o meu reflexo, a minha sombra, as minhas mãos. Esse é o reino que fiz só para mim. Você pode olhar, mas não pode tocar em nada. Veja, veja o tamanho de meu reino. Daqui do alto podemos ver tudo, todos os mares e montanhas, todos os vastos campos verdes ou cobertos com o branco da neve, todas as densas florestas, todas as escuras cavernas. Tudo fui eu que criei, tudo foi feito com minha vontade, para minha própria satisfação. Aqui sou o ser mais poderoso… também sou o único. Eu vivo sozinho, afundado em minha própria solidão. Não ligo, para mim está bom assim.
Em meus domínios, Sentir é a Lei. Não precisamos de palavras, as emoções demonstram tudo. Explicações são vagas e demoradas, os sentimentos são intensos e imediatos. Aqui, se sentir Ódio, não pronuncie palavras inúteis e dispersas, apenas cerre seus dentes, seus punhos e seu cenho, e mostre todo o vermelho do sangue quente que salta de seu coração acelerado. Se sentimos Melancolia, que adianta dizer tantas palavras que ninguém compreenderá de tão confusas que soarão em meio a nossa voz chorosa? Basta chorar lágrimas frias e azuladas, deixar que seu rosto pálido e inexpressivo reflita o cinza do entardecer nublado. Está Feliz? Se estiver eu saberei, pois você roubará o brilho branco do sol e ofuscará todas as sombras que te rodeiam, tudo a sua volta mostrará suas cores mais intensas, deixando os campos mais verdes, o céu mais azul, as águas mais límpidas, as ondas da praia mais agitadas.
Vê como as palavras são inúteis? Elas são desnecessárias, são nocivas. Elas só servem para mascarar o que nossas emoções não conseguem esconder. Palavras só servem para nos enganar! Aqui a Sinceridade reina sozinha, soberana, livre. Aqui os corpos e as mentes são transparentes, seus sentimentos transbordam independente de suas vontades. Aqui não há falsidade nem eufemismo, há apenas a verdade em toda a sua intensidade e clareza, mesmo que seus olhos queimem por não suportarem enxergá-la. Em meu mundo você não precisa procurar os sentimentos ocultos que as pessoas tentam esconder: aqui o Amor anda em todos os cantos, a Tristeza espreita em cada pedra, o Medo nos abraça a todo momento, a Ansiedade está sob nossos pés, a Esperança entre nossos dedos. Então, não tente explicá-los com suas palavras vãs. Já ouvi muito dessas desculpas de outros que vieram aqui.
Sim, você não é o primeiro a invadir meu mundo. Como você acha que consigo explicar tudo isso em palavras que você entenda? Muitas pessoas vieram, mas as expulsei logo. Outras mostrei parte de meu reino, como a você. Uma, apenas uma, eu deixei entrar… Eu não consegui impedir, na verdade, pois ela usava as palavras tão bem quanto as emoções. Quanto mais ela falava, mais seus sentimentos ficavam belos. Nunca tinha visto alguém falar tão bem. Quis aprender a falar, quis aprender com ela como explicar e expressar aos outros tudo isso que está a minha volta, todas essas sensações que até então não tinham nome, que eram apenas uma massa confusa que só eu entendia. Ela me ensinou. Consegui dizer-lhe tudo o que eu sentia, por ela e por tudo, cada sentimento com seu nome. Aprendi o que era Sinceridade: usar palavras e emoções juntas, ambas trabalhando em equilíbrio.
Mas, ela não era muito diferente de todas as outras, afinal. Ela também se escondia em suas palavras. Isso me confundia. Num certo momento sua voz passou a ser doce, mas seu toque amargo; suas palavras eram quentes, porém, seu peito estava frio; seu sussurro era próximo, diferente de seu olhar, tão negro e distante… Onde estava tudo aquilo que me disse? Todas aquelas sensações que me prometera? Onde estava o peso da verdade que suas palavras carregavam antes? Porque mentia para mim se sabia que enxergo através dos sons que saem de sua boca? E como, mesmo assim, eu me deixei enganar por eles? Tudo que ela me dizia não fazia mais sentido, era tudo uma mentira, e ainda não entendo o porquê dela não dizer logo o que sentia. Não me surpreendi quando ela se foi, pois não tinha mais o que fazer por aqui. Mesmo assim eu me entristeci e chorei em sua partida.
Em meus domínios todos os sentimentos são ampliados. Os prazeres são grandes, assim como as dores. Todos eles permanecem por toda a eternidade, como registros entalhados em pedras. Diferentes são as palavras: elas são insignificantes, são esquecíveis, desaparecem com o tempo, tão rápido quanto o vento movimenta a areia das praias. Não me lembro das palavras tristes, mas lembro do olhar mudo que aquela pessoa me lançou, com seus olhos negros carregados de uma escuridão fria e triste, como se a distância de uma noite inteira nos separasse. Lembro de nossa alegre troca de olhares, de sorrisos, de expressões… Mas o que nos dizíamos? Não importa. O que é dito se apaga, mas o que é sentido é marcado com fogo em nossa pele.
Não preciso lembrar das palavras dela… não quero lembrar. Palavras me ferem, rasgam-me por dentro como uma lança dentada; carregam promessas que não podem ser cumpridas, nunca! Mas que iludem os que ouvem. São como feitiços malignos que submetem minha vontade, pisoteiam minha alma. Já estou cansado de ser ludibriado por elas, sempre tentadoras e traiçoeiras... Não, eu quero esquecê-las! Quero esquecer todas as palavras que me foram pronunciadas! As suas também. Não quero lembrar dessa conversa sem sentido.
Já chega. Está na hora de você ir. Eu quero ficar sozinho, como sempre estive. Meus ouvidos estão doendo, minha cabeça está explodindo. Sua voz está desorientando a mim e ao meu reino. Agora eu tenho que subir no topo da montanha e sentar no meu trono para pôr tudo no lugar de novo. Vá! Deixe-me em paz. Não, eu não quero ir com você, não quero conhecer lugar algum, nem pessoa alguma. Eu quero ficar aqui, só. Aqui tenho tudo que sempre desejei, tudo que construí sozinho, sem a ajuda de ninguém. Aqui há tudo o que preciso… Que outro lugar eu conseguiria envolver por inteiro com meus braços? Nenhum, apenas esse, onde tudo é meu, onde tudo sou eu e nada pode fugir do meu controle. Só aqui onde não há palavras. Sim, apenas aqui, no Reino do Silêncio, meu mundo. Saia, você já sabe o caminho. E não diga mais nada.