A BAILARINA E EU
A peça estreou na quinta, mas eu só fui assistir a uma sessão no domingo. Não gosto de estreias. Por melhor que seja a equipe, sempre há algo a ajustar e as coisas não fluem da maneira mais perfeita no primeiro dia. Na temporada, prevista para durar três meses, as sessões ocorreriam de quinta a domingo.
No primeiro dia (e, diga-se de passagem, eu não costumo assistir mais de uma vez a uma mesma montagem), prestei atenção ao todo do espetáculo, sem me deter em nada especificamente. Era um musical com elenco de dez bailarinos: seis mulheres e quatro homens. Não havia fala nem canto. Apenas uns vocalizes esparsos. Sob o som do instrumental, o elenco materializava - com os corpos - ritmo, melodia e harmonia. A trama ficava por conta da imaginação de cada espectador. Não havia livreto. A proposta era a pura fruição.
Terminada a sessão, saí pensativo. Algo havia naquela montagem que me intrigava. Não sabia ainda o que era. Talvez precisasse voltar na quinta-feira...
E voltei. Cheguei cedo ao teatro, para conseguir ingresso entre os melhores lugares. Fiquei na fila do gargarejo. Com apenas dez minutos de espetáculo, descobri o que me intrigava. Era ela! Aquela bailarina franzina que, em sua evolução, chegava, às vezes, à transcendência! Num trabalho de elenco, sem espaço para solos, e em que tudo fluía magnificamente, era incrível como ela se destacava de maneira absolutamente natural e despretensiosa! Leveza, primor e discrição, até a transcendência. Era quase um contraponto a atravessar a pauta, mas sem comprometer o brilho do espetáculo. Saí da sessão fascinado. E prometi a mim mesmo algo que jamais fizera antes: voltar na sexta-feira.
No estacionamento, vi que parte do elenco usava uma van para se deslocar. Alguns atores, porém, usavam seus próprios carros. Eu não conhecia mais que três componentes do elenco e, por isso, nem sabia o nome da bailarina que se destacou. Não a vi no estacionamento. Talvez já tivesse ido embora. Ou entrado na van.
No dia seguinte, sentei novamente no gargarejo, numa posição frontal ao centro do palco. À medida que o espetáculo se desenrolava, mais e mais eu me deixava envolver pela performance da minha bailarina preferida. Ela percebeu meu arrebatamento e reagiu assim: ao passar em frente ao lugar em que me encontrava, juntou as mãos, fazendo uma canoa, e me mandou um monte de beijos de uma só vez. Quase não me contive. Vontade de subir ao palco e ajoelhar-me aos seus pés, adorando-a.
Em outra volta, ainda repetiu o gesto, com pequena variação. Finda a sessão, fui para o estacionamento, entrei no carro e fiquei esperando os atores saírem. Desejava vê-la fora do teatro, perguntar seu nome, elogiar-lhe o talento. Demorou uns quinze minutos, e lá vinha um primeiro grupo deles, uns cinco, entre os quais, ela. Saí do carro e fingi checar os pneus, dando-lhes chutinhos. Ela me viu, desviou-se do grupo e se aproximou de mim:
- Boa noite! Gostou do espetáculo?
- Gostar é pouco. Adorei! E especialmente a sua atuação.
- Nossa! Me saí tão bem assim?
- Claro! E é por apreciá-la que vim pela terceira vez a essa montagem. Acho que nunca fiz isso antes.
- Virá outras vezes?
- Penso em voltar domingo.
- Conto com sua presença. Agora vou, porque já estão todos na van e eu hoje não vim de carro.
- Se não se importar, posso oferecer-lhe carona.
- Aceito. Mas para domingo. Hoje já prometi ir com eles. Vamos jantar todos juntos.
- Ok. Domingo, então?
- Domingo!
Domingo ela pareceu estar ainda melhor no palco. Mas eu ansiava pelo fim do espetáculo, quando, então, ficaria pertinho dela, levando-a de carona no meu carro, sabendo seu nome e outras coisas sobre ela.
Fecha-se a cortina, encerra-se o espetáculo e eu saio em direção ao estacionamento. Espero por volta de vinte e cinco minutos e ela aparece:
- Demorei?
- Não. Mas predispunha-me a esperar o quanto fosse necessário.
- Vamos?
- Quer jantar, antes que a leve para casa?
- Se não se importa, contento-me com um lanche rápido. Algo natural. Desejo mesmo é dançar.
- Ainda? Depois de uma hora e meia de espetáculo?
- Dançar com você. Dança de salão. Conheço uma boate aqui perto, onde a pista é ótima!
Lanchamos e fomos para a boate. Ambiente simples e acolhedor, gente simpática, música boa. E a pista? Quase nem a notei. Meu par tinha a habilidade de conduzir por entre as estrelas. Quando me dei conta, haviam-se passado duas horas. Eram quase duas da manhã. A gente voltou à Terra e ela me perguntou se podíamos ir embora.
- Podemos. Você mora onde?
- Na Bela Vista. Posso ir de táxi.
- Imagina! Te levo lá.
Rodamos poucos quarteirões e chegamos à rua dela. Convidou-me para entrar. Mas tive que deixar o carro na rua, porque seu apartamento de um quarto dispunha de uma única vaga na garagem.
O apartamento, pequeno, era decorado com esmerado bom gosto e singeleza. Em nossa conversa, que durou até às cinco horas, revelou-se uma mulher liberta e de pensamento libertário. Trinta e um anos, divorciada há quatro, depois de dois anos de um casamento turbulento com um diretor de teatro. Leitora de Nietzsche e dos psicanalistas, louca por Dostoiévski, procurava viver de acordo com suas convicções. E você, quem é e o que faz?
- Chamo-me Luís, quarenta e três anos, divorciado há seis. Sou consultor de RH e ocorreu-me que tenho que estar no trabalho em menos de três horas.
- A gente nem dormiu ainda! Como é que se trabalha sem algumas horas de sono? Tenho uma única cama, mas cabemos nós dois.
Desisti do trabalho naquele dia. Tomei uma ducha e fui para o quarto. Ela entrou no banho quando eu saí. Ao voltar, usava um baby doll de seda. Só então a vi como mulher. Até ali, eu só notara a diva, a artista maravilhosa que era. Pude ver que tinha pernas lindas e perfeitas, apesar da aparência franzina. Deitamo-nos, mas eu não vou contar aqui o que aconteceu, porque este conto teria que ser publicado com restrição de faixa etária.
Levantei-me às onze. Perguntei se podia usar a cozinha. Podia. Encontrei o suficiente e preparei um desjejum para dois. Levei para o quarto, onde o tomamos. Aí eu disse que precisava ir-me, que a minha angorá estava sozinha, desde a véspera, e precisava de cuidados.
- Vai ao teatro na quinta? - ela quis saber.
- Acho que não tenho escolha!
- Então, até quinta!
Levou-me até a porta, abriu-a e deu-me um beijo. Encaminhei-me para o elevador. Ao sair à rua, notei que o dia estava lindo! A Bela Vista, quem diria, tinha glamour. Coisa que só agora eu via. Peguei o carro e toquei para uma florista no Largo do Arouche. Orientei a composição de um arranjo de flores e mandei entregar no endereço dela.
Eu não sabia o que aconteceria a partir de agora. Se ela me convidaria ainda para dançar, para ir à sua casa, se me ignoraria... Mas isso não tinha importância. Eu poderia continuar a vê-la no teatro. Ademais, estava absolutamente convencido: eu fora o único mortal no planeta a dormir esta noite com uma deusa!