O OLHAR DA FERA (PARTE QUATRO)

Parte 04: Aprendendo o verdadeiro valor da amizade e da confiança

Partimos em direção ao sul, mas Eijavick dissera-nos que, antes, precisaríamos cavalgar até o nordeste; quando perguntei qual a razão para fazermos isso, Haraldson gargalhou dizendo: “A razão! A razão é Eijavick, meu amigo!”, todos os outros riram do comentário, apenas eu fiquei pasmo sem compreender o que, mais tarde eu aprenderia a duras penas. Em nossa primeira parada, junto a um monastério cristão, os guerreiros olharam para o símbolo da cruz e cuspiram no chão. Apenas Eijavick não o fez.

Eu não era cristão …, aliás, eu não era nada! Acreditava em Odin, que tudo via e tudo sabia, mas jamais dei muita atenção para isso; a vida de um camponês resume-se a cuidar da terra e dos animais e viver um dia após o outro. Todavia, o comportamento de Eijavick me deixou curioso, e enquanto cavalgávamos pelas terras do monastério, perguntei-lhe porque não cuspira no chão como fizeram os outros.

-Há muita coisa das quais não devemos duvidar, Axel – ele respondeu com o tom solene pouco usual – Aprendi muito cedo que toda a fé humana precisa ser respeitada …, mesmo que você não acredite, não significa que não possua seu valor …

-E em que você acredita? – perguntei, abusando da sorte.

-Eu acredito nela! – respondeu ele, enquanto segurava o cabo de “Esmaga Ossos”.

Não dissemos mais nada, pois, havíamos chegado ao portão do monastério; Eijavick saltou de Leika e caminhou até o portão de madeira carcomida; esmurrou-o algumas vezes, até que ele se abrisse, surgindo a figura de um monge. Era um velho franzino, usando túnica cinza com capuz; sua barba esbranquiçada denunciava sua idade avançada. Ele olhou para Eijavick sem temor, e com voz titubeante, perguntou o que queríamos.

-Queremos comida e pernoite – respondeu o guerreiro do norte, sacando um pequeno saco de couro, cujo tilintar revelava a natureza de seu conteúdo.

-Temos uma pequena estrebaria nos fundos – respondeu o monge, enquanto tomava o saco de couro com uma das mãos – Acho que temos leite, sopa de carne de carneiro e pão. Eijavick agradeceu e todos rumamos na direção apontada.

Alimentamos nossos cavalos enquanto aguardávamos a comida prometida pelo monge. Tive alguma dificuldade com minha montaria, e Haraldson veio em meu auxílio; ele acariciou o pescoço do cavalo e mirou seus olhos; ele imediatamente, se acalmou.

-Cavalos são ariscos, se você não mostrar quem manda! – ele me disse, conduzindo o cavalo até o cocho para beber água – E, afinal, qual é o nome dele?

-Nome? – perguntei, tomado de surpresa – Não sei o nome dele.

Nesse momento, Haraldson fixou seu olhar nos olhos do animal, e depois de alguns minutos ele se voltou para mim e disse: “Pode chamá-lo de Ventania!”. Haraldson observou meu olhar questionador, e depois de um risinho ele completou: “Chame-o de Ventania e ele te responderá!”. Olhei para os outros que também riram …, nesse momento um rapaz entrou na estrebaria, trazendo uma cesta e um jarro de barro. Era um garoto de feições finas e olhar perdido. Ele se ajoelhou perto de nós, depositando sua carga ao chão. Eijavick olhou para o garoto e assoviou. O menino fitou-o com o mesmo olhar perdido, enquanto o guerreiro fixava seu olhar prescrutando o interior daquele jovem à sua frente.

-Não, ele não é um guerreiro! – disse Eijavick finalmente, pegando um pedaço de pão.

Comemos a refeição e depois cada um foi para um canto, acomodando-se da melhor forma possível para descansar. Encontrei um monte de palha seca, onde joguei um pele de carneiro e aconcheguei-me; como o sono não vinha, já que eu estava agitado com tudo que acontecera em minha vida nos últimos dias, fiquei ali, com a luz da tocha criando imagens espectrais refletidas nas paredes de pedra. Olhei para cada um daqueles homens e pensei como foi que eles chegaram até ali? Porque escolheram aquela vida perigosa e errante, sem destino, sem lar? E, ao mesmo tempo, eu me perguntava porque estava ali? Ora, pensei, eu estava ali porque era minha sina …, meu destino!

-Cada um deles tem uma história – ouvi a voz de Eijavick quebrando o silêncio reinante e interrompendo meus pensamentos vadios, enquanto ele se desvencilhava dos braços de Edda – Quem sabe, um dia, eu lhe conte a história de cada um …, mas, o que importa realmente é que eles estão aqui, agora, fazendo aquilo para que foram destinados …

-Destinados? – questionei, interpelando Eijavick – Destinados por quem?

-Não por quem! – respondeu ele – Mas sim para que! Axel, cada um de nós nasce com um destino a ser cumprido …, e se não o fizermos, estaremos a desonrar a nós mesmos e a nossos ancestrais; esses homens têm um destino …, uma finalidade …, e isso é o que importa!

-Só isso? – tornei a questionar – Então, nossa vida é cumprir nosso destino?

-Se você acha pouco, meu amigo, está no lugar errado! – respondeu o guerreiro em tom irônico sem titubear – Nós estamos aqui para cumprir nossos destinos entrecruzados …, juntos …, a amizade e a confiança fazem de nós o que somos …, nem melhores, nem piores …

-Mas, o que você quer dizer com “cumprir destinos juntos” – retruquei intrigado.

-O tempo – ele respondeu pacientemente – Apenas o tempo, caro Axel, lhe trará todas as respostas …, agora, durma …, e cale a boca!

Mesmo inconformado, fechei os olhos e procurei dormir; não sei quanto tempo havia se passado, quando senti um cutucão em meu ombro; olhei para o lado e vi o rosto de Eijavick sinalizando que eu fizesse silêncio; ele tinha “Esmaga Ossos” na mão e quando olhei ao redor vi que todos também estavam acordados e de armas em punho. Acurando a audição pude ouvir o relinchar de cavalos que não eram os nossos, assim como pude ouvir, também, um vozerio que vinha do portão principal.

“São mercenários!”, sussurrou Eijavick, enquanto fazia sinais para que Ragnar se movesse; o arqueiro rastejou até uma fresta na parede de pedras, e esgueirando-se como uma cobra, conseguiu sair; tomei “Dente de Dragão” em punho e esperei pelas ordens de Eijavick. Haraldson ficou de pé, segurando seu machado “Pata de Urso” caminhando em direção da porta da estrebaria.

Atento, ele prestava atenção em tudo que se passava do lado de fora; os demais, inclusive eu, nos posicionamos atrás dele, esperando pelo sinal; Eijavick confiava na capacidade de Haraldson de ouvir aquilo que os outros não eram capazes de ouvir. “Eles estão vindo …, e trazem o monge consigo!”, ele sussurrou …, “Deixem a porta …, escondam-se na escuridão dos cantos”, ordenou Eijavick, comando que foi imediatamente obedecido. “São uns quinze homens”, disse Haraldson, enquanto observava Edda que, com a agilidade de um felino saltou por entre as colunas de madeira, chegando ao teto da estrebaria, e de lá aguardando o que estava por vir.

O vozerio crescia a aproximava-se da porta; Haraldson ergueu seu escudo em forma de gota, segurando “Pata de Urso” pronta para o ataque. “Porque ele não se esconde também?”, disse eu expressando um pensamento em voz alta.

-Há várias formas de morrer, Axel! – respondeu Haraldson com um sorriso no rosto – Apenas uma vale a pena …, aquela que vem da honra e da coragem!

-E se você prefere escolher como morrer – completou Eijavick, colocando sua mão sobre meu ombro – Saiba que esta é uma morte que não vale a pena! Portanto, meu amigo, lute até que o animal que dorme em seu interior acorde! Lute!

E todos gritaram “Lute!”, enquanto o vozerio revelava sua proximidade; e muito antes que qualquer um de nós esboçasse qualquer ação, ouviu-se o som de corpos caindo; era Ragnar fazendo aquilo que fazia de melhor; imediatamente, Haraldson avançou contra a porta, irrompendo para fora, urrando como um animal selvagem e deixando que seu machado cumprisse seu mister. Todos seguiram atrás dele …, exceto eu!

Por um momento, pensei que me tornaria um covarde, deixando que aqueles homens sem medo fizessem o que deveria ser feito …, todavia, de um momento para o outro, senti algo pulsar dentro de mim, e empunhando com firmeza o cabo de “Dente de Dragão”, levantei-me e corri para fora. Em meio a gritos, gemidos e o som de metal contra metal, eu avancei, atingindo um oponente que derrubei com um único golpe.

Minha visão e meus movimentos tornaram-se precisos e certeiros; esquivando-me de lanças e fintando contra os golpes de espada inimiga, neutralizei mais dois oponentes, e quando enterrei minha espada na barriga de um lanceiro que viera pelo meu flanco esquerdo, senti que a pulsação tornara-se mais intensa, e o medo dera lugar à fúria desmedida. O banho de sangue persistia e eu ainda golpeei mais dois oponentes, até que, notei uma cena que turvou minha mente.

O jovem que nos trouxera a refeição era refém de um guerreiro de peito desnudo que, segurando aquele menino pelos cabelos preparava-se para cortar-lhe a garganta; gritei para Bjorn que também desesperou-se, correndo em direção ao inimigo. Em um gesto impensado, atirei “Dente de Dragão”, esperando que ela pudesse impedir o sacrifício de um inocente …, e o resultado foi trágico!

O rapaz, em um gesto impensado, girou seu corpo, ficando de frente para minha espada que perfurou o lado esquerdo de seu peito; gritei para que ele não fizesse aquilo …, mas o rapaz sorriu para mim, e assim que “Dente de Dragão” o penetrou, ele segurou seu cabo, fazendo com que ela atravessasse seu corpo atingindo o peito de seu algoz. No mesmo instante Bjorn saltou sobre o inimigo, enterrando “Caninos Brancos” por sobre o ombro do sujeito que, imediatamente, soltou o rapaz …, e ambos foram ao chão …, no fim, restou a dor em meu peito e um grito de ódio que fui obrigado a conter para não perder ainda o pouco de racionalidade que existia em meu interior.

Mas foi a voz de Haraldson que ecoou com um grito primal ele despejou todo o seu ódio nos poucos oponentes que ainda restavam …, Eijavick, que havia protegido o monge e atracado-se com o líder daquele bando, soltou o braço com “Esmaga Ossos” pendendo e, com dificuldade, caminhou até onde jazia o corpo do menino, caindo de joelhos ao seu lado …, também me aproximei, ajoelhando-me sobre a poça de sangue em torno do corpo inerte do jovem que sacrificara sua vida por nós.

Todos os guerreiros se aproximaram, cercando o corpo do nosso pequeno valente; Haraldson foi o último a chegar …, coberto pelo sangue inimigo, ele chorava copiosamente, grunhindo lamentos em sua língua natal …, o monge pousou sua mão sobre o ombro do danês que mesmo não apreciando cristãos, não recusou o consolo provindo da mão de um monge.

Olhei para Edda cujos olhos marejados refletiam a dor de uma mulher e também de uma mãe, e eu compreendi o real valor da fraternidade, da confiança e da amizade. A madrugada gemia sob o comando do vento frio, Eijavick apenas balbuciou: “precisamos enterrá-lo!”.

Eu e Bjorn cavamos uma vala rasa, enquanto Haraldson e o monge reuniam algumas pedras; Edda incumbiu-se de lavar e envolver o corpo em panos, mas ela foi impedida por Eijavick que foi incisivo ao afirmar: “Ele não será enterrado! Ele merece a honra fúnebre!”. Edda correu a nos avisar da decisão de Eijavick. Olhei para Haraldson, esperando que ele se manifestasse …, mas o Danês quedou-se em silêncio. E todos nós compreendemos que a decisão estava tomada.

O monge, que se chamava Ruppert, embora não concordasse com a decisão do nosso líder, não ofereceu resistência. E a vala serviu para acomodar pedras, palha e madeira, sobre as quais o corpo do jovem fora depositado. Edda colocou uma flor entre as mãos do jovem – que depois descobrimos chamar-se Francis, e assim como eu, não conheceu seu pai e perdera a mãe muito cedo, sendo criado no monastério – e Haraldson afastou-a para colocar uma espada.

Fui incumbido de atear fogo e assim que o fiz, ajoelhei-me de cabeça baixa. Deixei-me levar apenas pelas palavras …

-Você estava errado, meu amigo! – disse Haraldson com tom solene.

-Eu sei, meu irmão! – respondeu Eijavick, cujo tom era triste – Esse menino era um guerreiro, o maior que já conheci …

-Ele sacrificou a própria vida, para nos salvar! – completou Ragnar, com voz embargada.

-Não! – gritou Eijavick, olhando para todos – Ele não se sacrificou! Ele lutou! Lutou por nós, pelos monges …, ele não deu sua vida em vão …, ele deu, matando o inimigo que nos ameaçava. Depois dele eu compreendo melhor o significado de palavras como amigo, irmão, companheiro …

O silêncio voltou a reinar, enquanto a única coisa que o rompia era o crepitar das chamas, engolindo o corpo do jovem Francis …, o melhor guerreiro que já havíamos conhecido. E ao olhar para Eijavick, compreendi que nada mais seria como sempre fora …, algo havia mudado …, e apenas o tempo mostraria se essa mudança fora melhor ou pior. Quando a cerimônia terminou, Ragnar recolheu as cinzas do morto e as depositou em um pequeno vaso de barro que guardou consigo.

Quando o brilho acanhado do sol ousou penetrar a cortina branca de nuvens geladas, Haraldson veio até nós trazendo presos por cordas, dois mercenários que haviam sobrevivido à carnificina da noite anterior. Eijavick estava afiando a lâmina de “Esmaga Ossos”, e preferiu não olhar para os prisioneiros. Haraldson estancou seu caminhar ao lado do nosso líder e perguntou o que devia ser feito com aqueles homens. Olhei para eles e senti pena: um deles, o menor, tinha um olhar sem brilho e seu corpo trazia os diversos ferimentos que sofrera durante o ataque; já o outro, maior e mais corpulento tinha um olhar arrogante e ousado, não demonstrando qualquer temor.

-Corte a mão direita de cada um! – disse Eijavick em tom soturno sem interromper seu trabalho.

-E depois? – quis saber Haraldson – O que faço com eles?

-Deixe-os ir – respondeu o guerreiro sem hesitar – Eles não servirão para mais nada e deixarão de ser uma ameaça …

-Deixá-los ir? – exclamou o danês, incapaz de esconder seu inconformismo.

-Sim, meu amigo! – respondeu Eijavick com um tom cansado – Matá-los não trará o jovem de volta …, deixe-os ir …

Haraldson deu de costas levando os prisioneiros, e resmungando algo em sua língua.

Enquanto nos preparávamos para partir, eu me aproximei de Eijavick e pedi-lhe a palavra; o guerreiro olhou para mim sorriu e acenou com a cabeça.

-Me sinto culpado pela morte do garoto – disse a ele, sem esconder meu desconforto – Meu gesto impensado foi inoportuno e impensado.

-Meu amigo Axel, isso não é verdade! – respondeu ele, enquanto pousava sua mão sobre o meu ombro – Você foi fiel ao princípio do guerreiro que faz de tudo para evitar o pior …, foi o jovem que tomou a iniciativa de fazer com que seu golpe fosse bem-sucedido …, ele mostrou que era digno e agiu para o bem de todos …, foi sua mão que lançou a espada, mas foi o gesto dele que concretizou a ação …

Fiquei pensando sobre as palavras de Eijavick, mas meu coração ainda doía ao pensar no que acontecera …, Eijavick me sacudiu, e eu olhei novamente para ele. Em seguida, ele deu um sorriso fraterno, apertando-me pelos ombros.

-Escute, Axel, o corajoso! – ele começou a falar pausadamente – Você fez o que era certo naquele momento …, mostrou sua coragem e a vontade de proteger a todos nós …, isso é o valor que nos une …, o jovem Francis também queria fazer o que era certo …, ele se tornou nosso irmão …, assim como você …, agora, sigamos em frente, porque erros não podem ser consertados e se pudessem não seriam erros.

Enquanto via Eijavick afastar-se levando Leika ao seu lado, senti meu coração ficar pequeno e apertado …, foi quando senti o peso da mão de Haraldson sobre meu ombro. Olhei para ele e pela primeira vez vi um olhar diferente …, era um olhar doce e fraterno. “Não se lamente, Axel …, coisas ruins acontecem na vida …, não deixe que elas tomem conta do seu coração”, ele sussurrou aproximando seus lábios do meu ouvido.

-Mas, se disser a alguém que eu disse isso, “Pata de Urso” sentirá o sabor da sua carne! – ele continuou em voz alta, afastando-se de mim.

Finalmente, quando estávamos prontos para partir, o monge Ruppert veio até nós, trazendo alguma comida e um pouco de água. “Vão em paz, guerreiros, e que Deus os abençoe e lhes dê um bom caminho!”, ele disse acenando para todos nós.

-O dia em que encontrar seu deus, monge, pergunte a ele porque Francis precisou morrer! – interpelou Haraldson com seu jeito sarcástico – E seja o que for que ele lhe diga …, responda que eu, Haraldson, o Danês, não acreditei!

Eijavick sorriu discretamente e chutou a barriga de Leika. E assim retomamos nossa caminhada, deixando para trás um pouco de tristeza, um pouco de agonia e muito da sensação de fazer parte de alguma coisa maior …, Edda cavalgava ao meu lado sem dizer uma palavra, até que decidiu quebrar o silêncio.

-Você agiu certo, Axel – ela disse sem olhar para mim – Você agiu certo …

Compreendendo o valor da fraternidade, do companheirismo e da coragem senti-me mais próximo da vida como ela realmente era, assim como aprendi sobre a dor e sobre a perda. Eijavick não fazia ideia de como estar ao seu lado estava me transformando e mudando minha forma de ver o mundo.