Cronicas das nações - Capitulo 3 - O treinamento

O general Othir observava com atenção os lutadores praticando no pátio. Cento e cinquenta jovens rapazes entre 14 e 17 anos com olhares fixos no horizonte concentrados apenas nos imponentes movimentos das artes milenares que vinham aprendendo desde bebês, a partir do momento em que suas pernas se firmaram para dar os primeiros passos. Como general dos exércitos de Throrus, fazia parte da rotina de Othir supervisionar o treinamento dos novos soldados, e se mostrar presente no dia a dia deles para enaltecer sua autoridade e exercitar a lealdade de seus comandados.

O quartel ficava no lado sul da Ilha do Fogo, a mais próxima do continente de Flamus que podia ser habitada. Da varanda da torre de comando, de onde Othir acompanhava a turma em treinamento, era possível ver a terra em chamas do continente. Altas montanhas vulcânicas, onde a neve só cedia espaço para os rios de lava que desciam montanha abaixo. A mais alta delas, a Montanha de Zefro, explodia em nuvens de cinzas e rios de lava a cada lua cheia, fortalecendo a crença de que Zefro, o Deus do Fogo habitava a montanha.

Segundo a lenda, as erupções do vulcão eram a forma com que Zefro impedia a lua de crescer mais, e a fazia encolher de novo até sumir, para logo em seguida começar a ganhar força novamente e chegar em sua forma completa, quando Zefro novamente explodiria a montanha em em chamas a fim de afugentar a lua, e não permitir que ela destruisse o mundo.

Não era possível ver a base dos vulcões, pois a névoa dos vapores emanados do encontro da lava com o mar formavam uma cortina densa e constante, que mesmo nos ventos das maiores tempestades não descobriam as terras baixas do continente. À noite a névoa tinha um tom alaranjado, colorida pela rocha derretida que escorria a caminho do mar. Na crença popular, o alaranjado da névoa era formado pelas luzes da Cidade de Fogo, que ficava no pé da Montanha de Zefro e era a morada dos Flemesis, seres mágicos que podiam controlar o fogo.

Enquanto os soldados acendiam as tochas que iluminariam o pátio do quartel durante a noite, Othir dividia sua atenção entre o vislumbre do horizonte alaranjado de Flamus e o treinamento dos jovens rapazes no pátio. As sequências de movimentos eram repetidas incansavelmente seguindo as ordens do mestre de luta. Primeiro, usando apenas os braços e as pernas, depois com cada uma das armas, como a tradição mandava. Uma nova arma era incluída na sequência de movimentos a cada dois ou três anos de treinamento, variando de acordo com o desempenho de cada um. No final do ciclo de cada arma cada soldado poderia decidir encerrar seu treinamento ou prosseguir com o mesmo, sendo que a exigência física e emocional a cada fase aumentava consideravelmente. Iniciar o treinamento em uma nova arma sempre significava muita dor e sofrimento durante os treinamentos, por outro lado, concluir o treinamento em uma nova arma era uma enorme honra e garantia mais prestígio perante toda a sociedade.

Homens e mulheres eram permitidos nos treinamentos e o tratamento não era diferenciado entre eles, entretanto a tradição não encorajava mulheres a pegar em armas, sendo mais comum elas praticarem apenas técnicas corporais para auto-defesa. Os treinamentos se iniciavam já nos primeiros passos de cada criança, ainda com os pais, que brincavam com seus filhos já os incentivando a acostumar seus corpos com os movimentos da luta corporal. Aos seis anos de idade as crianças era entregues aos mestres de luta que assumiam os treinamentos. Aos doze anos todos se mudavam para o quartel da ilha do fogo, onde se dedicavam dia e noite aos ensinamentos dos mestres e à prática das artes das armas. A rotina de treinos ia se intensificando a cada nova arma, e os mestres de luta se encarregaram de fazer com que cada jovem desse o máximo de si mesmo. Ao final do ciclo de cada arma, os que decidissem encerrar seu treinamento eram enviados de volta para a sua família com toda as honras. Já os que desistissem no meio do ciclo voltavam envergonhados.

A espada curva era a última das 6 armas do treinamento, poucos soldados tinham a coragem de começar, pois sabiam que teriam seu corpo e mente levados ao limite extremo e não era raro que isso os levasse a loucura, ou mesmo a morte. A maioria dos que começavam desistiam no meio do caminho o que era considerado mais vergonhoso do que decidir não começar, pois conhecer o próprio corpo e a própria mente era sinal de sabedoria e não conhecer os próprios limites um enorme sinal de fraqueza.

Todos os cento e cinquenta jovens rapazes que estavam treinando no pátio tinham acabado de concluir o treinamento com a lança de duas pontas, a última arma antes da espada curva. O treinamento do dia era uma espécie de cerimônia, onde os mais corajosos iriam pegar suas espadas curvas para iniciar o último ciclo de treinamento.

Ao terminar a última sequência de movimentos com a lança de duas pontas, eles ficaram perfilados de frente para a torre de comando de onde Othir deu a ordem para que trouxessem as espadas curvas. Apenas dez espadas foram colocadas diantes deles, pois esse foi o tamanho da maior turma da historia a escolher fazer a última etapa do treinamento. Othir se levantou e falou alto o suficiente para que todos pudessem ouvir com clareza:

– Aquele que se julgar forte o suficiente para derrubar essas muralhas com as próprias mãos, aquele que se julgar resistente o suficiente para nadar até a Cidade do Fogo e escalar a Montanha de Zefro, aquele que se julgar corajoso o suficiente para encarar de frente a fúria em chamas que afugenta a lua, aquele que se julgar rápido o suficiente para fazer tudo isso e voltar antes do amanhecer, aquele que se julgar digno o suficiente para empunhar uma espada curva, diante de você está o seu destino. Apanhe sua espada e prepare seu coração.

Os rapazes permaneceram imóveis, pois sabiam que decidir pegar a espada poderia ser sua glória ou sua ruína. Ao primeiro comando do general a maioria deu um passo para trás, indicando que já estavam decididos a desistir antes mesmo da cerimônia começar. Quatro permaneceram indecisos, encarando as espadas a sua frente. Ao segundo comando do general dois deles recuaram. A tradição era o general dar três comandos e todos que ficassem imóveis após isso poderiam pegar suas espadas. No terceiro comando apenas um permaneceu à frente dos demais e caminhou até as espadas para escolher a sua.

– Qual o seu nome meu rapaz? – perguntou o General.

– Não sou um rapaz, senhor! – disse com rispidez uma voz feminina.

Todos os presentes ficaram abismados. Quase nenhuma mulher tinha conseguido até então terminar o treinamento com a lança de duas pontas, pouquíssimas tinham treinado com armas e era espantoso para eles uma mulher iniciar o treinamento com a espada curva.

– Me chamo Thesa, sou de uma família de pescadores, todos guerreiros de espada leve – a espada leve era a quarta arma, anterior à lança de duas pontas – espero orgulhar meus pais e meus irmãos me tornando a primeira guerreira de espada curva em todas as gerações da minha família.

Othir sentiu pena da garota, sabia exatamente o que esperava por ela. Lembrou-se de quando era apenas um rapaz da idade dela e estava tomando a mesma decisão. Olhou para sua espada curva dentro da bainha e reviveu todo o sofrimento que passou para merecer o direito de usá-la.

– Você fez a sua escolha, sabe o que vai acontecer pelos próximos 3 anos. Não te desejo boa sorte, pois a sorte não vai te ajudar. Te desejo apenas coragem, pois é ela que vai te fazer levantar todos os dias para dominar a última das 6 armas. Coragem!! – Gritou com todas as forças – Coragem!!

– Coragem!! – todos gritavam em coro – Coragem!!

A garota se ajoelhou em frente ao general com sua espada nova no colo. Ficou olhando-a fixamente com os olhos marejados enquanto todos gritavam a sua volta.

– Pobre garota – pensou o general – não faz ideia do que os mestres são capazes para evitar que seja permitido a uma mulher a honra de terminar o treinamento com a espada curva… Pobre garota...

Gabriel Antonio Diniz
Enviado por Gabriel Antonio Diniz em 02/01/2018
Código do texto: T6214974
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