Cronicas das Nações - Capitulo 2 - A Criança
Os gemidos logo se transformaram em um estridente choro de um menino de poucos meses de vida e ambos se sentiram ao mesmo tempo aliviados e espantados.
– Sem dúvidas esse é um barco de pesca de Throrus, não se fabricam mais embarcações como essa em Oklai a mais de 100 anos. Ele nunca teria condições de chegar à costa de Avros inteiro, muito menos comandado por um bebê! – O chefe da guarda deu uma risada que logo foi repreendida pelo sacerdote:
– Não há motivos para piadas aqui – disse em voz ríspida – Tudo nesse barco é estranho. Essas velas não tem condições de velejar, o leme parece estar estragado, não existe outra forma desse barco ter chegado aqui a não ser pela boa vontade das correntes marítimas.
Os dois ficaram um tempo em silêncio tentando entender o que estava diante dos seus olhos: uma criança de poucos meses de vida chegando à costa em um barco que estava a deriva entre um continente e outro por pelo menos todo o seu tempo de vida, e ainda assim com aparência extremamente saudável.
Dentro de sua mente o sacerdote continuava com aquele sentimento de que tudo aquilo tinha uma importância que ele ainda não conseguia compreender. Ele ouvia como se estivesse com os ouvidos tampados o som abafado da voz de Antino:
– ...impossível uma criança sobreviver por tanto tempo – a voz do guarda ia ficando mais baixa -- ...provavelmente esse barco já estava a deriva quando a criança nasceu... – o sacerdote já quase não distinguia o som da voz de Antino do barulho das ondas na praia – ...o barco já estava próximo à costa quando colocaram a criança…
Por fim Malto só conseguia ouvir o mar. As ondas iam e vinham e era como se a arrebentação estivesse dentro de sua cabeça, o guarda parecia estar imóvel e falando muito devagar. Ele não compreendia direito o que estava acontecendo, mas sabia que algo do seu inconsciente estava tomando conta de sua mente e percebia aquele sentimento de mudança que estava na sua cabeça desde o amanhecer só aumentando e aos poucos dominando todos os seus pensamentos e todos os seus sentidos.
Um clarão de um raio cegou temporariamente seus olhos, o barulho das ondas foi diminuindo e um silêncio profundo tomou conta de seus pensamentos. Aos poucos a visão foi ficando menos turva e ele se viu sentado no chão do templo, em frente à imponente imagem de 10 metros de altura da deusa Mistir, que fica bem no centro da enorme cúpula do edifício. Ao seu redor as tochas do ritual do solstício ainda ardiam forte, como se ele tivesse voltado no tempo até a noite anterior, minutos antes do início da cerimônia.
Ele olhava ao seu redor e não via nenhum dos sacerdotes do templo por perto, apenas a imagem a sua frente e o silêncio. Ele via as tochas queimando, mas não conseguia ouvir o crepitar do fogo, seus ouvidos estavam completamente surdos ao mundo à sua volta. Apesar de saber que tudo não passava de uma visão projetada pelo seu inconsciente, ele não deixava de notar a estranheza do silêncio frente a clareza e a realidade que seus outros sentidos notavam. O chão frio de mármore onde estava sentado, o cheiro das flores que enfeitavam o templo, a incrível riqueza dos detalhes que seus olhos podiam ver, seus sentidos poderiam facilmente engana-lo e fazê-lo pensar que de fato ele estava dentro do templo, se não fosse o perturbador silêncio que incomodava seus ouvidos.
No meio de sua confusão mental, Malto começou a ouvir bem distante o som de uma voz suave chamando por seu nome. A voz parecia tão distante que não poderia ser ouvida se não fosse o silêncio do templo naquele momento.
– Malto… – a voz tinha um tom angelical, e parecia estar se aproximando.
– Malto… – o sacerdote agora conseguia perceber de onde o som vinha.
– Malto… – ele podia ouvir quase perfeitamente a voz que parecia sair da boca gigante imagem de pedra esculpida muitos séculos atrás.
– Escute com atenção minhas instruções...
Ele não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Todos os sacerdotes estudaram sobre isso durante sua formação, mas a maioria – inclusive ele – não acreditava nas antigas histórias dos sacerdotes de séculos atrás que contavam sobre como Mistir, a deusa paz orientava seus seguidores para que eles pudessem levar os povos no caminho da paz e da justiça. Faziam pelo menos 3 séculos que nenhuma ocorrência desse tipo fosse registrada, o que fez as gerações mais recentes de sacerdotes duvidar da veracidade dos fatos narrados nos livros antigos.
– A criança, cuide dela… – a voz vinha da imagem, mas ela continuava imóvel – ensine-a os caminhos da paz…
Nesse momento Malto teve a visão de um menino sentado no colo de Leomir, o soberano de Avros. Viu também o mesmo menino brincando com uma menina mais nova, dentro do palácio de cristal, a sede do governo de Avros. Sem compreender como, ele sabia que a menina era filha de Leomir, mas não entendia como isso poderia estar diante dos seus olhos se o jovem rei ainda não tinha filhos. A visão do palácio de cristal se esvaeceu e ele viu o menino já crescido treinando as artes milenares de defesa pessoal junto de vários outros jovens rapazes, seguindo a tradição que obrigava todo jovem de Avros a passar toda a adolescência se dedicando aos treinamentos.
Por fim ele se viu de frente a um rapaz, rodeado de livros. O sacerdote parecia estar ministrando uma aula enquanto o jovem atento tomava notas em um caderno. Essa imagem logo sumiu de sua mente e ele então viu o barco novamente, com a criança no convés enrolada em trapos, o barco estava em uma praia de areia vulcânica, escura como breu. Ao fundo uma montanha jorrava fogo e cinzas e o barco então partiu rumo ao alto mar. Então ele viu Antino, sentado em uma praia perto da cidade de Avros. À sua frente estava um barco completamente em chamas, e ao longe um homem com vestes de sacerdote carregava uma criança no colo, montado em seu cavalo marchando rumo a cidade. Depois disso ele não viu nem ouviu mais nada, tudo estava novamente em silêncio, seus olhos só enxergavam a escuridão. Todos os seus sentidos sumiram, apenas sentia a presença da imagem de Mistir a sua frente e ele sabia que sua mente tinha voltado ao templo. Por fim ele não sentia mais nada, apenas sua mente em fervorosa tentando processar todas as informações que tinha acabado de receber.
Quando conseguiu organizar seus pensamentos ele estava deitado na praia, com Antino desesperado tentando acorda-lo, e percebeu martelando em sua cabeça de forma ainda mais intensa aquela sensação de que tudo isso iria mudar completamente o mundo.