A SEREIA E O TIGRE

Floresta de Sigúrnia, há 200km de Mascarus, 1960

Era uma manhã tranquila para a Mãe D'agua, que descansava silenciosamente no Rio Amazonas ao lado de uma vitória régia. Mas foi interrompida por um assovio que ia ficando cada vez mais alto. A linda sereia morena de olhos cor de amêndoas olhou para ambos os lados e afundou sua cabeça na água por um momento acreditando que a paz e o silêncio voltariam a reinar, mas foi em vão. Então emergiu novamente e decidida resolveu aguardar o dono do assovio aparecer.

Era um guardião das florestas que necessitava de sua ajuda com urgência. Quando se aproximou dela, apesar do incômodo do seu assovio, ela abriu um sorriso gentil:

- Toriba, já disse que seu assovio foi feito para desorientar caçadores e não atrapalhar o descanso das sereias. - disse ela.

- Sabe como é preciso chegar do meu jeitinho. – explicou, enquanto se aprumava em cima da vitória régia com seus cabelos vermelhos esvoaçantes - é uma excelente manhã para uma aventura, Iara. E trouxe dessa vez uma especial para você. Vindo lá de cima – contou ele.

- E vindo deles, suponho que preciso usar minhas pernas com magia novamente. – questionou ela.

- Você está ficando experiente nisso. Precisamos de alguém que consiga estar presente nas aguas e na terra. Você irá para um lugar onde uma espécie ameaçada de extinção precisa de nossa ajuda. E em troca precisamos de protetores para o portal entre este mundo e o outro. Mais explicações, aqui dentro – explicou o guardião entregando-lhe um saquinho feito com fios de cipó.

- Sei, diga que a tarefa já pode ser considerada feita. – reagiu ela.

- Eu duvido muito. Levando em consideração o local e o animal que desejam. Mas boa sorte. – finalizou ele se retirando sorrateiro.

A sereia abriu a pequena pedra que estava presa a um colar em seu pescoço e retirou uma raíz pequena engolindo-a em seguida. Rapidamente mergulhou e desapareceu.

Alguns minutos depois surgiu no Rio Amur, importante rio da Sibéria. Ao sair das aguas suas caudas desapareceram dando lugar a pernas. Apressou-se a sair do rio. Caminhou por uma floresta onde carvalhos, abetos, pinheiros, salgueiros e sorvas ocupavam o território. Naqueles dias havia nascido quatro tigres no local. E a sereia Iara vasculhou o saquinho deixado por seu amigo à procura de mais informações para a localização da toca. Lembrara que o guardião havia dito que não seria fácil ela cumprir essa missão peculiar. Encontrar e convencer amigavelmente tigres a mudarem seu lar seria outra história.

Felizmente após andar e seguir rastros sentiu cheiros e percebeu que estava sendo caçada por um animal de porte grande. Ficou de prontidão em caso de um ataque eminente, mas descobriu algum momento depois que na verdade um caçador estava dividindo a floresta com ela à procura de tigres. E viu sua chance surgir. Quando o caçador estava com a mira para acertar um dos tigres ela o surpreendeu rapidamente. O tigre que seria caçado rugiu vendo a cena com um ar surpreso. O caçador em seguida foi encantado por Iara que lhe cantou uma música com sua voz bela levando-o a se retirar dali e nunca mais ter sequer o pensamento em caçar qualquer animal.

“Era isso ou a morte” – pensou ela.

Quando ela se virou haviam mais dois tigres observando-a, estavam serenos e não pareciam agressivos. Eles se viraram e olharam para trás como se pedissem para ela os acompanhar. Ela seguiu-os até uma pequena caverna numa rocha. Chegando lá presenciou uma linda cena. A mãe tigresa dando banho em seus quatro filhotes.

Iara se ajoelhou abriu o saquinho e retirou uma caixinha de madeira. Respirou fundo e disse:

- O Homem está destruindo a sua espécie. Deixe-nos protegê-los levando-os para um local seguro onde por muitos anos poderão se multiplicar e ao mesmo tempo proteger um importante portal que não pode ser descoberto por pessoas com más intenções. Nem usado para o mal.

A mãe tigre percebeu que a mulher não era dali e que falava sério, sua voz era firme dando segurança. Tudo o que uma tigresa precisa após o nascimento de seus filhotes é de proteção para ela e seus nascidos.

Ela continuou sua tarefa enquanto Iara observava e resolveu procurar mais formas de ajuda. Quando viu algo escrito na caixinha de madeira e leu em voz alta:

- Padmini.

A Tigresa parou o que estava fazendo e rosnou levemente, saindo de onde estava e veio até ela, algo tinha mudado. Havia um ar singelo no ambiente. Ela se esfregou na sereia como um gato e voltou a se deitar aninhando os filhotes.

Não demorou muito e o tigre macho apareceu após uma patrulha em seu território.

Observou toda a cena até fitar os olhos na mulher diferente que se encontrava em seu local mais sagrado no momento. Iara não se precipitou nem se sentiu acuada, ao invés disso com movimentos sutis, virou a caixinha de madeira e viu que outro nome estava entalhado.

- Jaipur. – disse ela, mais firme dessa vez.

O tigre rugiu não tão alto para assustar os filhotes e não tão baixo para demonstrar que esse era seu nome. Em seguida foi até a tigresa, acariciou-a e retornou, sentando ali perto de todos.

Iara mais uma vez disse o que era preciso sacrificar para o bem de todos e complementou:

- Já percebi que não é um tigre comum. Por isso me entende e sabe da necessidade e da urgência disso que falei, preciso que tomem essa decisão agora. – disse a sereia.

Os tigres se reuniram e Iara aproveitou para se recompor após esta primeira experiência com um felino tão imponente.

Não demorou muito e Padmini e Jaipur vieram ao seu encontro e balançaram a cabeça afirmativamente. Iara foi até a caixinha e a destrancou liberando uma luz azul clara que sugou o casal de tigres e seus filhotes. Ao final, a caixinha se trancou sozinha novamente. E a sereia saindo dali retornou para o Rio Amur.

Durante seu retorno, Iara viu que quase toda a missão havia sido cumprida. Faltava deixar os animais no local onde o aviso recebido informara. Era um vale imenso cercado por um grande rio ao norte e por muitas terras e rochedos ao sul. Este vale como havia sido dito pelo guardião das florestas continha um portal que conduzia os viajantes para outra terra.

Quando retornou e emergiu das aguas, seu amigo Toriba já a aguardava nas margens do Rio onde se encontraram horas antes. Era impossível não ver seu sorriso de satisfação.

- Como sempre impecável. Imagino que conseguiu traze-los. – adiantou ele.

- Sabe me dizer por que eles escolheram tigres? – questionou a sereia.

- Eles disseram apenas as palavras: “certeiro, rápido, silencioso e mortal como uma flecha.” – respondeu Toriba.

-Isso basta não é mesmo? Na prática é muito pior, fique sabendo. – concluiu ela.

-Agora vamos para o Vale dos Tigres. – informou o guardião.

- Agora o vale tem nome?

- Era só Vale. Temos uma família bem grande de tigres mudando para lá. É certo que se chame “Vale dos Tigres” ou “Tiamenassu” que quer dizer a mesma coisa.

E seguiram juntos com destino ao misterioso vale.

Viajaram a noite toda e chegaram de manhã na encosta de uma colina com montes escarpados. A visão era de encher os olhos de contentamento. Cachoeiras e lagos e muito verde e uma brisa da manhã de sol que já acordara como testemunha do que aconteceria em breve.

-É hora de libertar os novos moradores. – falou Iara animada.

- Ainda não, há uma toca especial para eles em algum lugar, deve ser naquele rochedo. É quase certo que uma toca de tigres esteja preparada lá. – explicou Toriba.

Andaram mais cerca de meia hora passando por um bosque iluminado pelos raios de sol e depois uma densa floresta.

- Chegamos! – avisou o guardião – é melhor levar eles lá dentro.

Iara entrou caverna adentro e quando viu um local apropriado colocou a caixinha no chão, ela se destrancou e os animais ressurgiram intactos. A tigresa já se colocou em posição para dar banho nos filhotes.

-Obrigada pela confiança Jaipur. – De hoje em diante, multipliquem-se, dominem, marquem seu território. Este será seu lar desde hoje até os dias em que seja necessário dar a vida se for preciso. Quero que conheçam Toriba, ele é guardião das florestas e protetor das matas. Também é conhecido como Curupira entre os homens. Em breve deixarei se acomodarem.

Toriba assistia a cena de longe e Iara o chamou para conhecer os novos donos do vale. Com ele a amizade e confiança nasceu rapidamente. Jaipur e Padmini entendia perfeitamente o que Toriba dizia por ele falar a língua dos animais o que para Iara não foi muita surpresa e só então resolveu questionar Toriba sobre um assunto.

- Você sabe falar a língua deles, poderia me dizer por que eu que tive de ir busca-los?

- Seus princípios. Sua linda voz. Seu caráter. Sua sensibilidade. Eu não teria me comportado igualmente. Imagine, cantar para um caçador, tinha que ser coisa de sereia... – disse ele entre risos.

Iara presenciou Toriba apresentando os filhotes aos pais. Jaipur escolheu os nomes de cada um sendo: Pandarah e Tara para as fêmeas e Genguis e Trinil para os filhotes machos. Também explicou que haveria animais de pequeno porte para suas caçadas entre outros detalhes da nova morada.

Toriba presenteou a sereia lhe dando um colar de cipós com um tigre de ouro e concluiu:

- Era para caso tivesse sucesso na missão, mas eu deveria ter lhe dado antes, já que sabia que seria cumprida sem falhas.

- Agradeço, vou guardar com carinho. Provavelmente isso será usado futuramente em uma missão – disse a sereia colocando o colar em seu pescoço.

- Podemos nos retirar agora. Foi uma honra estar acompanhado em Tiamenassu nessa aventura. – afirmou Toriba.

- Que os tigres povoem e protejam esta floresta da maldade dos homens e do mal em toda forma... – desejou Iara.

E foram embora dali juntos contentes.

Daquele dia em diante o Vale foi colocado no mapa como um lugar importante e devia ser chamado pelo nome que lhe fora dado, Tiamenassu. O Vale dos Tigres.

#ohomemqueplantavamedos