GOTAS MÁGICAS

Eram tempos difíceis para quem tentava sobreviver a tantas doenças e pragas que aconteciam no povoado de Sapezeiro, último lugar habitado antes da Floresta Kartel e das Montanhas Rochosas de Junidia que seguiam ao sul com sua impecável cobertura de neve eterna.

Cerca de vinte pessoas entre crianças e adultos haviam morrido em menos de um mês. Famílias inteiras dizimadas por algo que não sabiam controlar.

Com medo, as pessoas já não saíam de suas casas, grupos foram formados para que cuidassem dos alimentos e bebidas, do corte de lenha para cozinhar e manter as lareiras acesas. Além de haver uma escala, onde revezavam para cuidar das plantações sendo que era proibido qualquer um que não fosse do grupo intrometer-se a ajudar.

Forasteiros nunca eram bem recebidos e naquele momento seria pior, porém, um vendedor ambulante geralmente sempre tinha algo de útil a oferecer. E foi deste jeito que o sortudo povoado de Sapezeiro conheceu o Sr. Decovides.

Era um senhor magrinho e baixinho, de barba longa branca, chapéu preto, paletó cinza e calça preta. Andava meio arqueado, mas era de nascença. Isso não o atrapalhava a cruzar todas as cidades vendendo ervas para todos os fins e sementes, além de raízes estranhas que tinham vida própria.

Quem o recebeu para surpresa dele foi Madame Salúnia. Era uma cliente antiga, uma curandeira muito famosa em toda redondeza, e naquele momento estava muito dedicada tentando a todo custo, criar uma poção para curar os habitantes. Além disso, moradores de outras terras vinham ser curados por ela. E quando ele ficou sabendo dos últimos acontecimentos ficou perplexo não ter sido ao alcance dela curar seus conterrâneos.

- Também não consigo compreender Decovides, usei todo meu estoque de ervas e raízes e nada resolveu. – explicou ela entristecida. Sua voz era macia e calma ao contrário de suas mãos trêmulas. Pálida e de cabelos longos negros, um vestido roxo desbotado, e um olhar oblíquo que ao mesmo tempo transmitia sabedoria.

- O que a trouxe até este povoado Salúnia? Vejo que os trata como se fosse mãe deles. – questionou o vendedor.

- Fui recebida da mesma maneira que você, com cordialidade. Não eram pragas ou doenças e sim uma infestação de escorpiões que foram trazidas através de uma de nós que resolveu pular para o lado mal. E claro que eu pessoalmente a cacei, prendi e a destruí. A cidade inteira veio me agradecer, em seguida arrumaram casa, móveis e acabei me instalando por aqui. – contou ela e de fato, era uma casa simples e pequena com poucos móveis de madeira, mas o local preferido de uma curandeira é a cozinha e bastava um caldeirão, um tacho, uma mesa redonda e um fogão a lenha.

- Então veremos no que posso ser útil, uma vez que suas escolhas acabaram por me trazer aqui. – disse o velhinho, se preparando para ir pra fora buscar suas mercadorias.

- Você e sua insistência de que o destino não nos deixa escapar dele. – disse ela acompanhando-o.

- Um dia Salúnia, você entenderá essa minha teimosia sobre destino. Aliás, estou me segurando para não lhe contar a última que eu soube. Afinal, você não faz questão desse assunto.

- Se for importante saber... Mesmo que eu não acredite, a responsabilidade passa a ser minha. – disse a sábia curandeira.

- Numa das cidades que passei ouvi dizer que o destino se materializou e anda causando bagunça na vida das pessoas.

- Sabe o que penso sobre isso, mas caso seja verdade, então todos nós estamos sujeitos a ter uma chance de mudar o destino, creio eu.

- Não acredito que o destino seja tão bonzinho – advertiu ele – mas caso tenha a oportunidade de estar frente a frente com ele, tente evitar as mortes repentinas de tantas pessoas queridas – sugeriu.

- Seria uma ótima ideia. Vejamos o que você tem de novo?

Sua carroça era indiscutivelmente organizada por caixas grandes, pequenas e médias, raízes de um lado, ervas em pó de outro e no meio frascos de vidro vazio, de diversos tamanhos.

- Seus frascos são estranhos e pequenos. Não vejo nada de interessante. – disse ela.

- E por acaso eu a decepcionei alguma vez? – disse ele sério enquanto abria uma caixa de onde retirou uma raiz que se movia sozinha.

- Curioso, o que seria?

- Fui levado a um passeio por uma floresta muito perigosa e estranha, de onde acabei fazendo amigos por lá e me presentearam na despedida com essa raiz, seu nome é Sira. Ela é plantada e alguns meses depois quando começa a aparecer brotos no chão, na verdade já tomou todo o subterrâneo tendo dimensões incalculáveis, ela se move e obedece quem a plantou. Desprendem-se finos e médios cipós de suas raízes maiores que se espalham pelos arredores e se torna a guardiã do local, protegendo com a vida se for necessário. – explicou o velhinho mercador.

- Vejo que está melhorando a oferta de suas especiarias. Mas uma erva para curar doenças e pragas inexplicáveis seria de grande valia para o momento. – confessou ela.

- Posso ajudá-la talvez, mas primeiro precisamos avaliar a situação. Preciso saber como começou, e quem foram as primeiras vítimas. E enfim, trazer a tona este mal escondido. – contou ele.

- Espero que saiba o que esteja fazendo... – disse ela – vou te levar na casa das pessoas que foram as primeiras a perderem parentes e assim por diante. – e saíram juntos.

Salúnia apresentou aquele velhinho curioso para todos que conseguiu. E visitaram as casas onde houvera vítimas fazendo uma lista pela ordem das pessoas que foram morrendo. E também Decovides conheceu mais dez pessoas debilitadas pela doença estranha que os deixava fracos e cheios de feridas pelo corpo. Entre prantos e conversas todos receberam o vendedor arqueado com gentileza e ofereceram-lhe alimentos e até pequenos presentes como um tapete feito a mão, pão caseiro e um pote de barro. Passaram o dia todo nesta tarefa difícil e a noite enquanto tomavam chá de ervas especiais preparada por Salúnia, o velhinho explicou:

- Ainda falta o principal – começou ele – eu preciso coletar algo de cada cadáver...

- Não me diga, Decovides...

- Agora que tenho que avaliar o que a doença causou e a velocidade com que espalhara. Tenho a erva que nos mostra isso – garantiu ele.

- Por aqui eles são muito tradicionais em relação aos mortos, jamais reabrem túmulos e ainda mais retirar partes do mesmo. – contou ela, aflita.

- É a única maneira de conseguir parar o que quer que seja... – insistiu ele.

- Eu confio em você Decovides, vamos agora então. São vinte túmulos. E se falharmos teremos mais dez pessoas morrendo. – advertiu a curandeira.

Apressados no caminho até o pequeno cemitério, munidos de castiçais de velas, pás e enxadas, um nevoeiro cobria a parte baixa, separando o cemitério que ficava no alto da serra de qualquer visão pelo resto do vilarejo.

- É realmente nossa noite de sorte... – referiu o velhinho sobre a ajuda do nevoeiro.

- Com muitos túmulos para cavar eu não diria sorte, mas vamos ao trabalho. – disse ela.

Cada um ficou responsável por cavar dez túmulos e retirar de cada caixão uma lasca de unha ou um fio de cabelo. Quando terminaram de recolocar a terra e deixar os túmulos como encontraram vieram rapidamente embora, pois o nevoeiro sumira e o sol já começara a iluminar a cidade.

Já na casa de Salúnia, reuniram os ingredientes e os jogou no caldeirão com algumas gotas das ervas que Decovides trazia consigo, não demorou muito e o caldeirão começou a expelir uma fumaça roxa e depois vermelha, que saiu do caldeirão e formou um círculo no chão perto de Salúnia.

- Curioso. Essas doenças são provenientes de magia negra. A fumaça vermelha deixa claro isso.

- Só podia ser. Mas quem teria conjurado algo tão poderoso?

- Provavelmente alguém interessado em atingir uma pessoa importante daqui. A questão é por que teria interesse em matar as pessoas de Sapezeiro? Essa missão eu deixo para você descobrir. – respondeu ele – primeiro vamos salvar as pessoas que estão doentes.

- E como faremos isso? – perguntou ela curiosa.

- Agora que sabemos como se originou, vamos usar um quebra males. – saiu e voltou com um frasco pequeno de vidro que continha uma tampa feita de palha de milho, único exemplar que havia. – sabe, este acabou parando em minha mão por acaso. Foi praticamente um presente.

- E a poção como funciona? – questionou ela.

- Veja por si mesma. – respondeu ele que pegou o caldeirão novamente, jogou algumas pitadas de uma flor em pó que trazia em seu estoque, pediu que Salúnia colocasse uma lágrima sua dentro dele e jogou três copos de água pura e aguardou ferver. Uma poção amarela estava pronta para o uso – agora aguardamos esfriar e sairemos colocando três gotas na boca de cada pessoa doente e o mal será encurralado e não terá outra alternativa senão abandonar o corpo e cair por terra . – afirmou ele.

- Se você diz, conheço sua qualidade de vendedor, mas de curandeiro não sabia que entendia disso.

- Foi viajando e conhecendo pessoas como você que me tornei um. – confessou ele, satisfeito.

Depois de aguardar a solução esfriar, eles colocaram no frasco e saíram distribuindo as gotas para as dez pessoas que apresentavam o sintoma e por segurança para seus familiares. Assim que tomavam, uma fumaça negra saía de seus corpos levando as feridas, as dores e a fraqueza embora. Tamanha era a felicidade de todos que não sabiam como agradecer à Salúnia e Decovides.

- O mérito é todo dele pessoal. – garantiu ela.

- Foi um trabalho em equipe Salúnia, não adianta tirar o corpo fora. Bom, creio que minha tarefa por aqui acabou. Hora de prosseguir.

As crianças que foram curadas logo o abraçaram e queriam ajudá-lo a empurrar sua carroça até a saída da cidade para poupá-lo de fazer força.

- É o mínimo que podemos fazer senhor. – disse um garoto magrinho de olhos arregalados.

- Fiquem tranquilos, sabem que Salúnia é a pessoa ideal para auxiliá-los. – concluiu ele, indo em direção a sua carroça – a propósito, quero que fique com o frasco Salúnia, por segurança. Sapezeiro precisa mais dele do que eu, e garantimos nosso sucesso.

- Agradeço pela confiança Decovides... – ele assentiu e foi se retirando.

Não demorou muito e um carcará sobrevoou o pequeno povoado. O vendedor o reconheceu rapidamente. Crianças que o avistaram primeiro já queriam pegar estilingues e apedrejá-lo.

- Não o matem! – disse o velhinho adiantando-se – ele me procura...

A ave finalmente encontrou segurança para descer e pousou sobre um pequeno toco de árvore que havia ali perto, em sua garra direita amarrado havia um pergaminho.

- Não espante, este carcará tem me guiado por vários lugares, alguém sempre manda correspondências explicando onde precisam de minha ajuda.

Ele foi até a ave e pegou cuidadosamente abrindo o pergaminho e leu, expressando surpresa em seu rosto enquanto a curiosidade brilhava nos olhos de Salúnia.

- Espero que não seja algo ruim. – tentou ela.

- Na verdade não sei. Ando recebendo cada trabalho diferente do habitual. Terei que entrar num portal que me conduzirá a uma cidade onde um barão está resistindo a se mudar de sua casa onde atrapalha a construção de um viaduto. Temos algo em comum. Ele tem uma plantação de chás. Próxima parada: “Vale do Anhangabaú.” Aqui diz que é de extrema urgência. Tenha um bom dia e até mais.

- Boa sorte amigo, espero que tenha sucesso... Já ouvi falar desse “Vale do Anhangabaú”...

- Se eu não tiver sorte, nada que algumas picaretas não resolvam... – disse ele, sorridente e foi embora acompanhado pelas crianças que puxaram sua carroça em direção à saída da cidade, recebendo adeus de todos os que foram curados pelas gotas mágicas daquele incrível frasco de vidro...

FIM

BETHO RAGUSA