Prólogo

Os túneis da caverna eram extremamente escuros. A única luz que iluminava o local emanava das mãos do mago. Parecia pastosa e intangível, de um branco pálido, que escorria de seus tecidos e se derramava no ar, desaparecendo aos poucos. Caminhava cautelosamente, mas com a confiança inabalável de um jovem, com as barras da túnica esbarrando nos calcanhares a cada passo. O ar ali dentro parecia não acompanhar o mundo exterior, era bastante úmido e cheio de energia natural. Enormes estalactites desciam do teto e musgos infestavam o chão. A medida que ia avançando em seu percurso os musgos iam mudando de cor, de verde claro para escuro, amarelava um pouco e então o azul predominava. Soube que estava no caminho certo. Calculou que já havia percorrido algumas centenas de metros desde que entrará pela abertura em cima da montanha e que lá fora a lua já estaria bem alta. Não demorou muito para chegar ao salão onde ficava a rocha. Seria apenas uma comum, se não fosse a enorme quantidade de musgo azul que crescia ao por toda parte no salão, claramente por causa da magia, além das inscrições em sua base.

Não sabia o significado delas, provavelmente eram escrituras na língua dos druidas, mais antiga que qualquer língua humana. Merda, o cetro não está mais aqui. A raiva formigava no fundo do seu estômago. Continuou andando. Aquilo costumava ser um templo. Não acreditava que alguma coisa poderia profanar aquele local sagrado. Há milhares de anos Setur kramund havia sido um druida extremamente poderoso, governava as terras antigas em paz e, por acreditar na vida acima de tudo, evitava conflitos com as forças malignas, mantendo-as isoladas em seu território, sem nunca negar curas a quem o procurasse, mesmo que fossem seus inimigos, e por isso era respeitado pelos dois lados. As lendas diziam que seu cajado podia invocar e controlar os ventos. Além de curar as mais terríveis doenças.

Continuou andando por onde o musgo havia sido parcialmente removido, procurando qualquer rastro que o levasse ao cajado. A trilha ia minguando até um ponto onde os musgos estavam intactos, e uma fraca luz penetrava por fissuras entre as rochas da parede. Era possível ouvir um som distante naquela direção. Repousou a mão sobre a rocha por alguns segundos, fechou os olhos, se concentrou e a parede desmontou-se, como se fosse feita por pecinhas de montar. Seguiu pelo buraco por outro comprido túnel, que ia se iluminando mais a cada passo até desembocar no alto de uma enorme galeria, onde finos rios de lava escoriam pelo chão. O alaranjado característico da lava iluminava tudo e o calor preenchia o ar de tal maneira que teve que esperar alguns segundos para ajustar sua respiração à súbita mudança de ambiente. Enormes fornalhas estavam espalhas por toda parte e o som do martelo de ferreiro batendo era insuportável. Milhares deles subindo e descendo a cada segundo. Era como se alguém estivesse se preparando para uma batalha. Ou uma guerra. Entre as fornalhas circulavam incontáveis formas humanoides, carregando metais e armas de um lado para o outro. O mago esgueirou-se por entre as fornalhas, seguindo um grupo de... Orcs? Não pôde ter certeza, estavam cobertos com mantas escuras que cobriam quase todo os seus corpos, mas continuo seguindo-os. Chegaram a um local plano e mais elevado, bastante afastado das fornalhas, onde se estendia uma grande cadeira de pedra, na qual um homem alto e magricela se sentava. Ao seu lado estava o cajado. Era de madeira entrelaçada, extraída da melhor Árvore-Ancestral. Na ponta brilhava uma pedra verde, emitindo luz própria, não mais brilhante que o suportável. Chegou perto o suficiente para reconhecer o raptor do cajado. Não era um homem. Ao seu lado postava-se um enorme minotauro, com mais de dois metros e meio de altura, com um machado de batalha do tamanho de um homem.

A visão daquele artefato sagrado perto daquela figura o enfureceu. Não conseguiu se conter. Revelou-se aos berros:

- Ora, mas que inesperado. Um elfo aliado aos orcs? - abriu um delicado sorriso - Nunca pensei que você desceria a esse nível, Serguei. Mesmo um patife como você deveria seguir um código.

O espanto repentino era nítido no rosto do elfo, mas não por mais de um instante. A gargalhada que se seguiu, alta e sonora, encheu o ambiente.

- Hoje deve ser meu dia de sorte. O cajado e um mago. Quanto vale a cabeça de um mago? Alias, já nos conhecemos antes? Bem, não importa, renda-se sem lutar e eu...

- Cale a boca! - irrompeu em fúria o mago - Você está preso elfo, será julgado pelo Alto Tribunal. Me devolva o cajado. Quantos anos um traficante como você passaria numa masmorra?

- Há. Tolo. Magos não têm mais jurisdição há uma centena de anos. Você não pode me prender. Ah, e esses não são orcs. Na verdade eu não sei bem o que são - deu de ombros - Peguem logo ele.

- Bem, magos não podem prender ninguém mesmo - os humanoides se aproximavam, três deles vinham com espadas à mão - mas príncipes podem.

Teve tempo para ver o medo percorrer o elfo antes de uma espada descer em sua direção. Desviou facilmente do golpe, abaixou para sair de outro e moveu-se levemente para o lado, saindo da terceira espada. O primeiro guerreiro já desferia outro golpe. Lento demais. O príncipe desviava com graça de um. Girou-se em seus pés e deu uma cotovelada em um, saiu de outra espada e emendou um chute no queijo de outro, que desmaiou no chão. Uma flecha silvou em seu ouvido, virou-se rapidamente e viu um arqueiro disparando uma segunda. Os dois guerreiros preparavam uma investida, mas rapidamente ele rolou para sair das flechas, levantou-se com extrema agilidade e desferiu um soco no espadachim, esquivou-se da estocada e com uma rasteira o derrubou. Pegou sua espada e aparou um outro golpe e com o cabo nocauteou-o o último. O corpo nem atingirá o chão e as flechas já viajavam em sua direção. Com a espada bloqueou-as. Os dois arqueiros, confusos, se entreolharam e não perceberam o príncipe caindo sobre eles.

- Tauruf, seu paspalho, o que cê tá fazendo parado aí? Mata ele - o tom desesperado era nítido na voz do elfo. Ele se levantou da cadeira para correr, mas a espada do mago voou e cravou-se na rocha, perto o suficiente para um filete de sangue escorrer de sua orelha pontuda.

O enorme minotauro bufou e caminhou lentamente para ele. Minotauros são criaturas de extrema força física, mas não rápidas. Porém, tauruf era um guerreiro nato. O enorme machado descreveu um arco de cima para baixo numa velocidade tamanha que seria impossível para um homem normal desviar. O mago se afastou centímetros da lâmina e imediatamente pulou sobre o machado, dando um chute no focinho do minotauro, e quando aterrissou mal teve tempo de se equilibrar e o machado já caia sobre ele novamente. O homem-touro atacava incessamente. O mago tomou distância e gritou um feitiço, que arremessou Tauruf de costas no chão, rapidamente conjurou uma proteção para envolver seu corpo, que ganhou um tênue contorno avermelhado. A raiva explodiu no minotauro, que levantou-se e esbravejou:

- MOLEQUE INSOLENTE. Como ousa usar magia em uma luta? - sua voz parecia trovoadas dentro da caverna - lute como homem.

Serguei berrava ordens e criaturas começavam a chegar à galeria. O príncipe sentia o perigo aumentando a cada segundo. Precisava fugir dali. Outra machadada passou perto da sua cabeça. Viu Serguei pegando o cajado e mais homúnculos se aproximando. Deslizou para perto de Serguei e o cabo do machado o atingiu nas têmporas. Teria desmaiado se não fosse a magia protetora. Cambaleou, lutando para se manter em pé. Estava cercado por todos os lados.

- Há. Quanto vale um príncipe? Um mago príncipe! Ficarei rico, certamente. Tauruf, não o mate. - balançava o cajado de uma mão para outra - Eu ainda não consegui fazer essa belezinha aqui funcionar. Deve tá quebrada, depois de tanto tempo. Dizem que se chamava Aeologmus. Bom, não deve mais servir pra nada.

- O cajado apenas funciona se você tem poderes mágicos, seu idiota - retrucou o príncipe, ainda tentando manter-se em pé - Além do mais, as lendas dizem que ele só pode ser usado por quem realmente precisa dele.

- Hmmmm, justo. Bem, acho que não vamos descobrir hoje. A que reino devo pedir o resgate?

- Ah, eu acho que eles não lhe darão chance de resgate. - Precisava pensar em algo urgentemente. Sentia uma estranha brisa morna agitar seus cabelos loiros-pálidos. - Mas acho que alguns trocados podem te garantir uma ultima refeição, pelo menos.

- Tá me fazendo de idiota? - indagou calmamente - Bem, que seja. Tenho assuntos mais importante agora. Até logo.

A brisa parecia aumentar e se tornar um pouco mais quente, quase aconchegante. Serguei também parecia sentir que algo estava errado. Os pelos do minotauro se eriçaram. Gritos eram ouvidos de onde as fornalhas ficavam.

- Fala aí elfo, vai ser pato ou carneiro? - se esforçou ao máximo para deixar Serguei mais irritado. Pensou sentir um leve tremor sob seus pés. Serguei rosnou:

- Tá legal mago, que porra cê tá fazendo? Não deveria ventar aqui... - E algo urrou no fundo da montanha. Uma estalactite se espatifou a poucos metros de Taruf, esmagando umas criaturas. Uma explosão de lava jorrou há metros deles. A confusão começava entre os humanoides, Uma rajada súbita de ar jogou Serguei ao chão e Aeologmus rolou de suas mãos. O mago correu para pega-lo. O cajado estava morno como ar, e a pedra agora brilhava intensamente. O teto começava a desabar e o príncipe disparou entre o buraco causado pela queda da estalactite. Tauruf tentou impedi-lo mas o chão começou a tremer ainda mais, desequilibrando-o. Era como se a montanha tentasse expulsar seus parasitas.

Tentou não pensar nisso e procurou desesperadamente uma saída. A galeria já estava insuportavelmente quente e os ventos aumentavam. De repente não conseguia mais se segurar ao chão. O vento o levou voando sobre rochas incandescentes. Se agarrou ainda mais ao cajado. Não havia percebido uma fenda enorme que rasgava a montanha, à meia centena de metros atrás da cadeira de pedra em que Serguei estava sentado. A luz do dia já penetrava por ela. O vento na caverna parecia cessar. Levantou e correu o máximo que pode. Viu de relance Tauruf disparar atrás dele. Serguei o seguia, juntamente com dezenas se soldados. Um colossal urro invadiu seus ouvidos. Um arrepio subiu por sua espinha. Tentou correr mais rápido, mas seu corpo já não aguentava. Sentiu uma pressão em suas costas. Seus pés já não tocavam o chão. A fenda se aproximava mais rápido. Mais brilhante. Mais perto. A brisa externa que invadia a caverna, mais fria, apalpou seu rosto. E então desmaiou.