A AFOGADA
Levaria quase meia hora para Carolina percorrer a praia e meditar. Quais os erros e acertos do ano de 1975? O ano terminaria no dia seguinte. Ela queria saber. Foi um tempo proveitoso?
Emagrecera oito quilos em nove meses. Oito quilos. A dieta exigiu força de vontade. Pouco açúcar, nada de frituras, habituar-se a caminhar pelas ruas do bairro. Sua grande meta sempre lhe beliscou: não seria mais o principal alvo das gozações dos meninos. Não mais a chamariam de baleia, de porca assassina...
Foi nessa mesma praia. Aqui começara a planejar a mudança, o contra-ataque à indelicadeza dos meninos.
Tornara-se cansativo vê-los no comando. Jogarem bola sobre a areia quente, rolarem nos cantos como gatos quando se coçam, empinarem os músculos para as meninas.
Carolina nem precisava ir muito longe para provar a escassez mental dos homens. A conversa de cinco alunos da 8a série. Listaram as vantagens do sexo masculino. Garantiram que, na próxima reencarnação, nasceriam homens novamente. Homens não engravidam, não são menstruados, são mais fortes, envelhecem depois. Podem urinar em qualquer lugar. “Olha aqui o ‘V’ de vitória desenhado no ‘mijo’!”
Ah, sempre percebera que o início do contra-ataque estava na beleza de uma mulher magra. Ela anula a reencarnação dos homens. Eles apenas abrem a boca quando a vitoriosa passa. E Carolina passaria.
Continuou sua avaliação sobre o ano. Desviou-se das cadeiras de praia. Espantou pombos, endureceu as pernas quando as ondas bateram.
A festa na casa do avô em junho... também foi decisiva para o sentido da sua missão. Perder os quilos de baleia.
Naquele dia, os homens preparavam a carne para o churrasco. Por que no começo do mundo alguém impôs ser responsabilidade dos machos o manuseio do cru, do sangrento e das fogueiras? Por que as mulheres arrumavam as mesas e obrigavam as crianças a engolir gordura de bisão?
No churrasco, não soube onde se postaria. Ficou na ala das crianças. Respirava ali entre os pivetes, até o tio entregar-lhe o espeto de madeira. “O que são estas bolinhas furadas?” “Coração de galinha!” Alguém respondeu usando um singular impróprio. “Não! Aquilo era algo aterrador e plural”.
Enfileirados, atravessados, contavam-se centenas de minúsculos corações. Miseráveis corações de galinhas... “Não estavam ali as fêmeas do mundo? Por que não espetavam as cristas dos galos? Eles só nasceram para brigar em rinhas cheias de homens. Pobres galinhas... homens não sentem culpa”.
Durante estes últimos meses, Carolina decidiu de forma categórica que acentuaria as diferenças entre os sexos. A superação do mundo masculino seria questão de sobrevivência. Antes precisava emagrecer, e emagrecera. Eles notaram.
Magra. Carolina sentiu-se triunfante, balançou a cabeça. Eles rogariam por sua atenção. Ela diria: “Vocês são seres deploráveis”.
Pisou mais forte na areia. Ela venceria a canalhice dos machos. Pensou na vitória. Levantou o queixo sobre os guarda-sóis abertos no fim da tarde. Linda estava a tarde.
Linda e uma bola resvalou em sua perna. Dois homens vieram correndo, entraram no mar.
Outra partida de futebol! Homens e moleques, na disputa por uma bola. Mergulham, pulam ondas. Avançam o limite desse ridículo esporte. Apenas canelas se batendo.
Um terceiro homem também correu. A bola sobrou. Os “jogadores” entraram longe no mar, para lá da arrebentação. Alguém gritou, juntou gente.
Os três homens nadaram até um troço coisa flutuante. Carolina acreditou ser uma boia. Trouxeram a boia. A menina se aproximou. Viu o sujeito gordo que se afogara.
Cinco homens precisaram carregá-lo até o centro da praia. O afogado foi colocado de bruços. O calção arriado, as nádegas apareciam. O salva-vidas gritou algo sobre os pulmões. Homens e mulheres chegaram para ver a bunda do gordo.
Carolina sentiu pena do homem, dos seus olhos esbugalhados, o aspecto de baleia encalhada. Faltava apenas o espeto. Uma mulher berrou, era a esposa. Urrou forte e mais alto do que a sirene da ambulância. Pediram para abrir, levaram o “baleia”.
O corpo do gordo formou uma imensa cratera na areia. As paralelas dos pneus da ambulância rodopiaram a cavidade e sumiram atrás das barracas.
Carolina não acreditou no afogamento. Os homens, mesmo os grandes obesos, pareciam caminhar sobre as águas. As mulheres, não. Elas eram as afogadas, as pedras.
Na verdade, a morte não distingue homens e mulheres. Acertaria algumas referências para o ano de 1976. Quais referências?
Sentou-se na areia, puxou pela memória alguma atitude cordial vinda do sexo oposto. Um sorveteiro passou. “Vai sorvete, freguesa?” Ela ainda abriu o isopor, depois recusou. Buscava qualquer atitude cordial vinda do universo masculino. O quê? A memória nunca foi muito boa. Um picolé de nada.
Tinha o Marcos, colega da escola. Em março ela foi à sua casa com duas amigas para o trabalho bimestral de Ciências. O menino almoçava e veio recebê-las após escovar os dentes. O hálito de hortelã do menino, a boca lavada, pareceu-lhe uma atitude tão preocupada. Ela até quis beijá-lo, mas julgou o hálito do colega perigoso para meninas gordas. Não sabia o porquê. Talvez os dentes lustrados de Marcos estivessem prontos para morder.
Carolina lembrou-se então... naquele dia o seu desejo de emagrecer tornou-se muito, muito mais intenso. Ali não desejou vencer os homens... Na verdade, pensando melhor, o que ela sempre quis...Puxa! O que ela sempre procurou foi superar as mulheres. Atrapalhara-se no alvo, talvez não pudesse admitir o óbvio. Como pôde esquecer o episódio?
A menina coçou o rosto. Estúpida. Você quis emagrecer para beijar o Marcos e agora vem com essas ideias de vencer o sexo oposto quando o sexo oposto é o seu próprio sexo.
Mas o projeto para os homens também tinha alguma importância. Os homens precisam respeitar as gorduras do mundo. Meu Deus quantos desafios...
Pensou em uma saída que conciliasse os dois desejos. Nem todos os homens eram iguais.
Acho que há um prazer que somente a mulher magra pode conceder. Ouvi-la afirmar: “Eu gosto de hortelã, querido. Pode chupar...Antes de acabar passe a balinha pra minha boca ”.
Do meu livro: As crianças do general Médici
E-mail do autor: phcfontenelle@gmail.com