ASSOMBRADOS

Eu sempre desconfiei que algo, ou alguém, por trás daquelas cortinas pesadonas e mal cheirosas, nos observava sem que déssemos conta.

Meus primos diziam que era cisma, invenção minha, que não tinha nada, que eu era medroso demais.

Por que eles nunca viam nada?

Por que somente eu sentia aquele frio na nuca quando passava pelo corredor?

Por que só eu ouvia os lamentos vindos do porão?

A casa do lado direito da Rua Barão de São Borja quase esquina com a Rua Visconde de Goiana, pertencia à família de minha mãe desde sempre, muitas gerações nasceram, cresceram, casaram, tiveram filhos, envelheceram e morreram dentro daquelas paredes que ano após ano eram caiadas sem que se raspassem as pinturas antigas. Certa vez estávamos brincando com o carrinho de rolimã e quando batemos num dos cantos, caiu parte do reboco e conseguimos contar oito cores diferentes sobrepostas em camadas grossas como se tivessem sido feitas com a massa que se usa atualmente para corrigir imperfeições das paredes.

A casa foi construída para abrigar família numerosa porque além das demais dependências tem dezesseis quartos, porão e sótão.

A sala de visitas é separada da biblioteca por um portal de madeira trabalhada com altos relevos e porta com vidros esmerilhados vindos da Boêmia.

A maioria dos livros, inacessíveis para nossas mãos irresponsáveis, têm capa de couro com letras douradas sempre brilhantes pela pureza do metal apesar da passagem dos anos.

Muitos deles, eu acredito que nunca foram lidos e, somente uma vez por ano, são todos eles retirados das prateleiras para remoção da poeira e recolocados nos mesmos lugares. Tudo organizado conforme as fichas catalográficas, preenchidas à mão com tinta nanquim, presas no varão de ferro dentro da gaveta menor no lado esquerdo da escrivaninha.

Contrastando com a madeira escura das estantes, os vidros das portas são decorados com cores vibrantes que brilham ao serem iluminadas pelos reflexos dos raios do sol ou pela luz intensa das lâmpadas colocadas acima dos pingentes de cristal do enorme lustre pendente do meio da rosa dos ventos estampada no teto.

Esse quase santuário era permitido para os maiores de quinze anos, antes disso, somente aos intrépidos aventureiros que, ao serem flagrados, se expusessem à possibilidade de levar uma dúzia de bolos da palmatória pendurada numa das garras do cabide de porcelana da sala de visitas.

O cadeirão de couro estofado que pertencera ao bisavô do bisavô do avô, da minha mãe, a exemplo de peças semelhantes em museus, está isolado por fita presa entre os braços com a etiqueta ameaçadora – não sentar.

Eu sempre tive a impressão de ver um rosto nos olhando por trás daqueles vidros. Em momentos o rosto era magro, olhos fundos e ameaçadores, cabeça coberta por chale que deixava à mostra parte da cabeleira branca, noutras vezes o rosto era gordo, bochechas muito pálidas apesar do ar brincalhão, mas eu sentia o mesmo medo dos dois.

Numa noite fria do mês de julho, depois de chuva grossa, quando até os sapos estavam calados, estávamos na sala de visitas jogando pôquer. Meus primos gêmeos Tibério e Tagore, a prima Anamélia e eu. Ainda nem se passara uma semana da festa em que nós havíamos comemorado nossos aniversários.

É isso, nós quatro nascemos no mesmo dia 16 de julho catorze anos antes e como todas as festas se realizavam no casarão, nossas famílias vieram para o encontro anual em nossa homenagem.

Acabem com essa jogatina para irem dormir. Não pensem porque acabaram de fazer catorze anos vocês já estão autorizados a dormir fora de hora, disse tia Gracita. Tia chata, mandona, que descontava nos sobrinhos a vergonha de não ter autoridade para os seus dois filhos, nossos primos Marco Aurélio e Antonia, bem mais novos que nós e que, para desgosto da mãe, só obedeciam a vovô e assim mesmo quando eram ameaçados pelo cinturão largo de couro trabalhado e cheio de ilhoses de metal.

Apesar das ameaças, pelo menos eu nunca soube que alguém tivesse levado a tal surra “de criar bicho” que ele prometia quando estávamos fazendo bagunça por dentro de casa.

Acordei sendo sacudido pelo ombro por Anamélia.

Os gêmeos, abraçados como de costume, estavam sentados na cama ao meu lado.

Tem alguém debaixo da minha cama, disse Anamélia com a voz embargada pelo medo.

Eu perguntei, e esses dois valentões por que não foram lá para verificar?

Só pode ser ladrão. Os três responderam em coro.

Fomos os quatro, pé ante pé, pegar o ladrão, mas o que vimos nos provocou arrepio de pavor percorrendo por todo o corpo e semi paralisados.

Deitado numa das camas do quarto em que Anamélia estivera deitada sem conseguir dormir, estavam o homem da cara gorda que eu via na vidraça e junto à cama a velha do chale, com um prato na mão, como se estivesse levando algo para o gordão comer. Haviam luz difusa e névoa no quarto...

Gritamos apavorados e corremos para a sala onde os adultos ainda estavam conversando como sempre faziam depois do jantar.

Apesar da algazarra conseguimos nos fazer entender e foi tia Mercês quem esclareceu, exibindo as fotografias de um álbum retirado da biblioteca.

Nós tínhamos visto as almas do tio Conrado, irmão caçula do nosso bisavô que tinha morrido de uma doença misteriosa que deixou ele todo inchado e a mulher magra era Vó Isaura, a mãe dele.

Eram fantasmas antigos, conhecidos por todos da família e por sugestão dos adultos, no dia seguinte, nós fomos à capela do Colégio Salesiano do Sagrado Coração, na Rua Dom Bosco, assistir à missa em intenção das almas deles.

Não os vimos mais, porém cada vez que vou à biblioteca do cassarão, continuo com a mesma incômoda sensação de que estou sendo observado.