O Brilho no Céu
Escrevo esta narrativa para ilustrar minha desventurada experiência, pois creio que esta merece um olhar alheio, porém tenho medo de divulgá-la abertamente. Medo pela humanidade. Medo pelo mundo. Devo dizer que do ocorrido até aqui eu cheguei a questionar minha sanidade. Mas nada podia eu fazer para refutar o que meus olhos viram, meus ouvidos escutaram e meu corpo provou.
Era terça-feira, 14 de agosto de 2007. O dia estava frio em Norilsk, o céu estava coberto de fumaça e neblina, amarelado pelo que ali chegava do sol, inteirando um frio seco e ofensivo a respiração. As fábricas trabalhavam intensamente, jogando no ar a poluição já característica da cidade.
Ora, um lugar tão contaminado por poluição não poderia ter descrição mais triste: não me lembro, em minha vida de agora 44 anos, de ter visto sequer uma árvore nesta minha terra natal, o solo infértil não permite que a vida se propague. Os moradores daqui são quase forçados a viverem aqui, visto que as casas pouco valem e os recursos de suas vendas não renderiam nova moradia em locais mais propícios à vida. Os que aqui vivem, o fazem para trabalhar, sejam trazidos por grandes empresas mineradoras e/ou siderúrgicas, sejam aqui nascidos, como eu.
Apesar de tal desolação e ausência de esperança, tive o desprazer de conhecer lugar pior, e de volta à esta terra sempre congelada, agradeço a Deus e a qualquer coisa que existe fora deste mundo e me permitiu a ele voltar.
Após o almoço daquele dia, um dos poucos em que eu me dera o luxo de comer em casa, caminhei para o Arctic Hotel, onde eu exercia função de garçom. Como eu vivia sozinho àquela altura, o emprego me satisfazia, eu sabia o que fazer e quando fazer, raramente me desagradava. Acontece que o prédio de três às vezes carecia de zelador, e nessas ocasiões era eu quem desempenhava seu papel, visando um extra no salário.
Naquele mesmo dia, dois rapazes chegaram ao hotel e solicitaram a Yulia, a recepcionista, um dos dois quartos de luxo. Eu sempre me perguntara qual era a vantagem de oferecer esse tipo de quarto numa cidade onde ninguém vai passar as férias e se divertir, onde quase só trabalhadores vivem. Aliás, era a primeira vez em tantos anos que eu via alguém pedindo um daqueles dois quartos, e justamente por isso eu fui chamado. Dessa vez não havia quem arrumasse para receber os dois hospedes, sabendo que eu não recusaria a missão, Yulia lá mandou-me.
Ao abrir a porta daquele quarto tive a visão que imaginava: todos os moveis cobertos poeira, sujeira de todos os tipos por todos lados, fungos sobre as roupas de cama e garrafas de alguma bebida jogadas pelo chão. Eu teria trabalho para todo um dia. O apartamento dispunha de uma sala, um lavabo e dois quartos, sendo um deles com banheiro. Todos os cômodos apresentavam os mesmos detalhes, esquecidos por muito tempo, livres de qualquer limpeza, inocupados.
No banheiro do quarto, surpreendi-me ao ver uma parte da parede atrás da porta significativamente mais limpa que todas as outras. Contudo, não dei atenção àquilo. Comecei a limpar pela sala.
Já no fim da tarde, e felizmente da limpeza também, cheguei no banheiro. Eu usava um pano molhado em água quente e sabão líquido para limpar os azulejos que um dia haviam sido brancos. Quando cheguei na parte da parede que estava mais limpa, continuei a passar o pano, buscando um visual uniforme para o cômodo. No entanto, entre movimentos de vai vem senti o pano se desfazer em minha mão, e quando notei, estava eu atritando minha palma contra os azulejos já perfeitamente limpos. Com pressa, alcancei a pia e lavei abundantemente as duas mãos, pensava ter entrado em contato com algum tipo de ácido ou coisa similar.
Devo confessor que aquilo me assustou e me fez perder uns 20 minutos, mas ainda assim voltei ao trabalho e tornei a esfregar as paredes do banheiro, a fim de terminar logo, pois em breve chegaria a noite e não só os hóspedes regressariam como eu teria que me dedicar a meu serviço original.
Nunca reclamei de coisa alguma, mas quando outro pano sumiu de minha mão naquela mesma região da parede, não pude evitar soltar alguns palavrões de revolta ao ar. Já com algum estresse, decidi averiguar descuidadamente o que estava causando aquilo. Primeiro, aproximei o nariz da parede misteriosa, não detectei nenhum cheiro além do que o sabão trazia. Em seguida, peguei uma caneta que trazia no bolso e toquei a parede. Por um momento eu pensei ter visto a ponta do objeto ser corroída pelo que ali havia, mas ao olhar direito, vi que estava completamente intacta. Estou delirando, disse para mim mesmo e repeti o ato. Não queria crer, mas vi exatamente a mesma coisa. Sem saber se algo estava errado comigo ou com os azulejos, fiz o mesmo movimento diversas vezes, até me pegar com uma careta de espanto e uma curiosidade que já me fazia esquecer do horário. Tratei de pegar algum objeto de metal mais rústico, encontrei um atiçador da lareira e com cautela encostei sua ponta na parede, e vi ela se desfazer ali, como se fosse algum tipo de ilusão de ótica. Como o atiçador era relativamente pesado, não me contive e acabei empurrando-o contra a parede, e com isso eu pude notar que os objetos não estava se desfazendo ali, estavam entrando na parede.
Puxei o ferro, larguei-o no chão e sem pensar duas vezes meti o dedo indicador naquela coisa. Estava tão eufórico que senti certo prazer na medida que meu dedo se afundava na parede, senti um ligeiro calor no outro lado, ou no interior. Voltei, examinei meu dedo, nada havia acontecido, então tratei de colocar a mão toda.
Meu coração quase parou, ou talvez tenha batido mais rápido, quando senti o agradável calor chegar a minha mão junto com uma brisa fresca. Será isso um tipo de porta? Perguntei em voz alta, para mim mesmo. Como não tinha ali câmera nem celular, arrisquei-me a olhar lá dentro com meus próprios olhos.
Devo confessar que eu já não tinha esperanças a partir do que houve em seguida. A expectativa de vida em Norilsk não é tão alta, aqueles que passam dos 50 anos aqui são sortudos, então, eu já com 34 não via o que perder, se minha vida findasse ali, ou uma década depois, pouca diferença faria, afinal a monotonia e a alienação aqui são tão cruéis que mesmo em dez eu dificilmente provaria novas experiências.
Quando encostei minha face na parede, e comecei a adentrá-la, senti aquela brisa, vi uma escuridão profunda me puxando com cada vez mais força, e, sem que eu notasse, estava meu corpo todo pairando nas trevas. Poucos segundos depois, a luz começou a se fazer. Ofuscante. Quente. Viva.
O sol brilhava como eu nunca tinha visto, o céu estava límpido, de um azul impecável. Aquele calor, aquele sol, aquela brisa, nem parecia Norilsk. Olhei ao redor, vi grama verde se estender por todos os lados, montanhas de picos nevados no horizonte distante; mais próximo, um paredão de árvores com toda gama de verde possível; à minha esquerda corria um riacho cristalino com um som hipnotizante; à direita começava o que parecia uma trilha de terra em meio a grama.
Meus olhos estavam arregalados. Meus nervos, à flor da pele. Minha boca não se fechava, meus olhos não acreditavam. Era, sem dúvida, a visão mais linda que eu já tivera em toda minha vida. Eu sequer podia imaginar que era possível existir lugar tão belo e tão vivo, minha reação era não ter reação. Creio que fiquei quase uma hora listando mentalmente os detalhes daquela magnífica paisagem.
Quando me conformei, não menos admirado, fechei os olhos e enchi os pulmões do ar que ali correi. Foi quando me recompus. Aquele ar. Algo estava errado no ar. Um pulso de medo lancinante correu pelo meu corpo, fazendo-me arrepiar da cabeça aos pés. Não havia ar tão limpo e puro em Norilsk, não podia haver tamanha pureza em nenhum lugar habitado pelo ser humano. Você que lê este relato pode se perguntar como posso afirmar uma coisa dessas, mas acredite, quando se prova a pureza e a naturalidade daquele lugar, qualquer um é capaz de saber que não é normal.
Não havia para onde ir, não havia o que fazer. Só havia aquela beleza solitária, quieta e amedrontadora, inocente e tenebrosa.
Comecei a me desesperar.
Andei até o início da trilha que via à minha direita, mas algo me dizia para não segui-la. Voltei, aproximei-me do riacho, vi que mais abaixo ele se abria num considerável lago cercado de vegetação de todo tipo. Caminhei pela margem, com alguma pressa, mas sem correr. O lago novamente tomou-me alguns minutos de admiração, mas então observei um detalhe ainda mais terrificante: onde estava a fauna daquele lugar?
Não havia nenhum vestígio de qualquer animal por ali. Rodeei o lago e penetrei alguns metros da floresta que ali começava, encontrei no chão o que conclui ser um pedaço de osso, mas não consegui distinguir do que era. Continuei avançando e encontrando mais pedaços de ossos, quase 30 minutos depois, eu já estava perdido, mas não pensava nisso naquele momento, me dei conta de que já não estava andando sobre um chão qualquer, eu estava pisando em um mar de ossos esmigalhados. Abaixei-me, mexi no que havia no solo, a ojerizava já me tirava o controle, os sentidos falhavam diante de tão incrível horror. Não demorou e encontrei o que parecia ser o crânio de um boi, mais adiante, outro crânio, só que de algo maior que um boi comum. Minha mente se esfarelou quando encontrei uma caveira humana.
Eu soluçava. Chorava. Meu corpo todo pulsou junto com o coração. Senti um tremor me tomar inteiro, não consegui me mover. Perdi as forças. Arrastei-me como pude e me sentei para encostar numa rocha gigantesca.
Hoje, que tenho forças suficientes para escrever tudo isso, posso afirmar que a mente humana não está nem perto de estar preparada para desvendar os mistérios que o universo agrega. Mesmo que consigamos, não posso deixar de te perguntar, como lidaremos com o que está por vir? A ganância é um mal demoníaco. E desde seu surgimento, o homem busca cada vez mais conhecimento, e usa de tudo que pode para manipular o universo e a natureza a seu favor. Agradeço a Deus, se é que o posso, por ter desfrutado por tanto tempo de magnífica ignorância. Digo isso porque o saber é um instrumento perigoso, e nós somos crianças manuseando-o, brincando, tentando quebrar um vidro sem se preocupar com o dano que os cacos podem causar.
O universo é habitado por mistérios ancestrais, anteriores à nossa espécie. Até hoje, tudo que descobrimos pode ser controlado, mas não será sempre assim, e este relato servirá para provar isso. Não somos os dominadores, não somos os mais inteligentes, sequer somos significantes.
Sentado naquele lugar tão belo e cruel, recobrei a consciência após um breve apagão e me reergui. Mas quando movi uma perna, um som esquisito de algo arrastando os ossos no chão ecoou, e antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa vi em minha frente uma espécie de crocodilo gigante.
A criatura se apoiava normalmente sobre quatro pernas curtas, porém sua altura ultrapassava a minha consideravelmente, e eu media cerca de 1,80 metros. Seus dentes tão longos quanto garrafas de vinho projetavam-se para fora da boca, manchados de sangue seco; seu corpo de escamas tão grossas que parecia pedra esverdeada se estendia no que eu me lembro como uns 15 metros até a ponta da cauda cheia de esporões.
Aquele monstro não se moveu. Ficou ali, estático, encarando-me com os mortíferos olhos reptilianos. Quando eu ameacei me mexer, o bicho deu um curto passo à frente, e eu decidi que devia ficar imóvel para que ele também o ficasse. Além disso, não havia nada em que eu conseguisse pensar naquele momento, minha cabeça estava frágil, não podia suportar tudo o que estava presenciando.
Vi minha loucura chegando quando não conseguia tirar da cabeça a questão: o que fazer agora? Eu me indagava repetidas vezes, gritava para mim mesmo, brigava com minha própria consciência.
Correndo os olhos para os lados, vi que podia subir a enorme rocha em frente da qual eu me encontrava. Será que posso ser mais rápido que essa coisa gigantesca? Se eu podia subir, o crocodilo que mais parecia pré-histórico também poderia, mas só penso nisso agora, pois naquela ocasião eu me disparei em frenética corrida e comecei a escalar a pedra com tanta facilidade que ainda hoje me pergunto como pude. O réptil, contudo, avançou dois ou três passos e parou como se receasse alguma coisa.
Senti o chão começar a tremer, o crocodilo recuou veloz e se enfiou na água do lago, de onde saltou em seguida, esticando toda sua extensão fora d’água. Mas antes de mergulhar novamente, tentáculos negros e de proporções ainda maiores envolveram o réptil no ar, e algo que só me lembrava os mitos do Kraken puxou-o a seu encontro. O crocodilo lutou, chicoteou e cortou uns tentáculos com sua cauda, em vão, pois o dobro de membros emergiu e envolveu-o com ainda mais força. Eu lembro do caliginoso som de ossos se quebrando que ouvi antes do cefalópode colossal puxar o corpo já sem vida do animal escamoso para o fundo do lago.
A água ficou tão calma como eu a encontrei, como se nada tivesse acontecido.
Meu espanto paralisante me impediu de notar que uma sombra se projetava sobre mim, tapando a luz do sol. Quando vi já era tarde – uma criatura ainda maior do que poderia ser o monstro do logo me encarava. Sua cabeça era tão grande quanto um ônibus, seus olhos pareciam cheios de fogo, dentes que pareciam estalactites afiadíssimas ornamentavam o exterior da boca. Chifres pontiagudos se lançavam para trás, o pescoço daquela besta se estendia até certo ponto entre as árvores. Seu corpo era coberto de escamas que pareciam impenetráveis, todas avermelhadas, com sinais de todo tipo de violência, como se já tivessem vivido fatos e tempos indizíveis. O resto do corpo daquele ser estava atrás de mim, então ele lançou a frente uma pata, que na verdade era o meio de uma asa de couro que fez o dia todo se escurecer quando por cima de meu passou. Suas garras eram tão mortais que eu sequer consigo descreve-las. A outra pata, o ser de aspecto também reptiliano pousou dentro do lago onde o polvo gigante acabara de mergulhar.
Agora, completamente de frente para mim, com talvez uns 80 metros de comprimento, estava um dragão vermelho. Percebi que ele podia soltar fogo pois depois que se fizera presente o calor aumentara de forma desmedida.
Ali, instintivamente, eu disse a mim mesmo que aquelas criaturas não podiam ser do mesmo tempo que eu. Eram criaturas antigas, de fato maravilhosas de tão terríveis. Eu sentia inconscientemente que aqueles seres tinham centenas de anos, que tinham mais conhecimento do que nós, humanos, jamais teremos. Por isso me tomei como mísera migalha no universo e desfiz-me do apego a vida.
Sem saber o que fazer, mais contente com a morte do que com mais um segundo naquele lugar assombroso, eu olhei para o céu anil e gritei com todas as forças que me restavam. O dragão encheu a boca de fogo, vi um brilho no céu descer contra mim... – e nunca soube do que se tratava tal brilho, talvez fosse minha salvação.
Acordei em Norilsk, deitado no sofá de minha casa com um par de cobertores sobre meu corpo.
Lembro-me de Yulia dizer que haviam me encontrado desmaiado no chão do banheiro que eu estava limpando. Haviam queimaduras pelo meu corpo, e todos diziam ter sido originadas de alguma combinação infeliz de produtos de limpeza. Fiquei cerca de um dia todo apagado devido aos medicamentos que havia recebido. Quando acordei, passei anos sem conseguir dizer uma só palavra, tamanho o choque que minha mente sofrera.
Felizmente, vejo minha saúde mais próxima do normal hoje. Somo 44 anos de idade, e sinto que não viverei até os 45. Não tenho para quem deixar este manuscrito, portanto andarei com uma cópia do mesmo sempre em meu bolso, para que aquele que encontre meu corpo sem vida encontre também os relatos de que não estamos sozinhos no universo.
Aqui se despede o homem que viu outro mundo, um mundo de sonhos e pesadelos.
Não tenho mais o que dizer, aí estão meus relatos e você, que teve a infeliz sorte de me encontrar sem vida, faça o que bem quiser com estas palavras, mas lembre-se: foram escritas com dificuldade, com uma dor espiritual incurável e com toda sinceridade possível a um ser humano.
Adeus.
Por Igor Avilov.