ALMA DE PRINCESA
Alma de princesa
O bater de cascos de um cavalo branco como a neve, anunciava a volta do fidalgo ao suntuoso castelo. O grande portão entre as colunas altas se abria para a lua que espalhava uma luz de pérola, refletida nos batentes da grande porta almofadada com a mais nobre madeira da floresta do principado.
O rei retornava, depois de muitas andanças. Participara de torneios masculinos e de batalhas sangrentas e demoradas. Tempo que a princesa solitária preenchia, contando as estrelas que brilhavam no céu do velho castelo. Acostumada à clausura, nem percebeu a chegada do esposo, que sem saudade, sentou-se a ponta da comprida mesa rodeada de cadeiras de veludo e serviu-se do mais refinado vinho da adega. Na taça de cristal comprida e frágil, degustou o líquido vermelho como o sangue que encharcava o chão das aldeias por onde havia guerreado. Mudo e só em seus pensamentos, o príncipe rememorava as viagens feitas, e planejava outras tantas que viriam. O peso da armadura, o tilintar das espadas em combate, os pescoços tenros dos inimigos. Na cabeça do príncipe guerreiro não cabiam mais do que batalhas e vitórias. Sentado à mesa da varanda, cochilava e sonhava com terras desconhecidas e distantes, ainda não conquistadas.
Enquanto o rei bebia o sangue do inimigo imaginário, a princesa solitária conversava com as estrelas cintilantes, que nas noites claras iluminavam as altas torres. Nas noites de lua grande, conversas e promessas varavam as madrugadas sem fim entre a princesa e suas fiéis companheiras.
Havia, porém, uma estrela brilhante, prometido à princesa, levá-la ao reino das flores, muito além da estrada encantada, onde um riacho cristalino murmurava canções de espuma, jorrando vida e outros viventes.
Um certo dia, o cavalo branco ganhou ferraduras novas e reluzentes, para levar o príncipe e sua espada por novas andanças. Naquela madrugada sem fim, o fidalgo, com sede de sangue, bebeu todo o vinho da adega e com a língua trôpega adormeceu à cabeceira da grande mesa. Pé ante pé, a princesa desceu a grande escadaria do castelo, e com cuidado atravessou a alta porta. O cavalo acostumado a tantas viagens, colocou-se de pronto em frente ao portão. O guarda real sonolento imaginou que seu amo viajaria para novas aventuras, abrindo o portão da muralha, como sempre o fazia. Mas, montada no puro sangue, estava a princesa.
No céu, a estrela brilhante pulsava no compasso do bater de cascos do belo animal que trazia sobre si uma princesa e sua alma.
Antes do crepúsculo, quando a lua de pérola se escondeu outra vez no fundo mar, e a estrela piscou pela última vez, a princesa transformou-se na mais bela pomba, batendo asas e juntando-se a um bando em revoada.
Dizem que de tempos em tempos, a pomba retorna ao castelo em suas paragens, pousa sobre a mais alta torre, e segue viagem com seu bando pela estrada azul e infinita.
Conta-se no principado, que o fidalgo, desde então, está sentado à ponta da mesa comprida, bebendo na taça de fino cristal, e lutando em batalhas invisíveis.