O servo do campo
O caos do dia acalmava-se, assim como o sangue nas veias de Tonav. Seu caminhar ia sempre a um ritmo musical, mas não se assemelhava a uma dança. Parecia fazer parte de uma batalha a ser travada contra tudo aquilo que estava a sua volta. Suas esperanças de encontrar algo naquele lugar inóspito seriam mais uma vez esmagadas e ele, tendo consciência disso, aproveitava o movimento, pois era a única coisa que não poderia ser tirada dele. Em contrapartida todo o resto havia sido arrancado de sua existência.
Na primavera de sua existência ele possuía uma religião, que reverenciava a cinco grandes divindades, mas ela havia sido derrubada de seu coração e no momento seguinte uma outra se manifestara frente a seus olhos. Esta acreditava em duas forças. A que colocava ordem e a que criava o caos. Ritos baseados nestas idéias lhe deram a sensação esplendorosa que ele sempre procurara, mas novamente algo surgiu contra isso. Ele decidiu que suspenderia seu juízo e não voltaria a pensar mais sobre deuses e poderes.
Um outro momento havia surgido em sua vida e nele Tonav decidiu preocupar-se apenas com o que lhe existia de concreto. Momentos bastante interessantes se seguiram a isso. Inclusive festas. E em uma delas houve outra de suas mais que bem-vindas desilusões. Não havia nenhum amor, nenhuma dor... Tudo era limpo. Simplesmente limpo. Vazio de qualquer coisa que lhe parecia ser concreta. Mas ele, muito astuto, mudou rapidamente de ângulo e decidiu que era a hora de voltar-se apenas para o que era, para ele, superficial. Na mesma noite ele se entregou a uma grande orgia, na qual ele, sete moças e seis rapazes celebraram a ancestrais deuses desconhecidos. Ao fim da noite, quando todos já estavam esgotados, ele descobriu que aquilo não havia sido o bastante. Sozinho em sua sala foi tomado pelo seguinte pensamento: “o que deveria ter sido apenas simples e prazeroso fora bastante significativo”. O inesperado nisso era que ele conseguira encontrar o esplendor religioso que esteve em busca.
O próprio esplendor havia se revelado posteriormente como falso. Agora havia outra busca, mas não era a busca pelo que havia sido perdido. A verdade mesmo é que surgiram duas buscas. A busca pelas divindades ancestrais e pela forma de ter um contato religioso com elas. Seu caminho havia sido árduo e ele decidiu que experimentaria novos ares em uma cidade pequena e afastada.
Seu andar um dia foi forte e decidido, mas com o passar dos anos e dos acontecimentos ele tornara-se aquela luta musical. Seus cabelos que haviam sido loiros, agora refletiam negros e suas roupas que antes eram sóbrias agora mais se assemelhavam as de um palhaço. Usava calças vermelhas que eram de um tempo muito anterior ao seu, elas eram firmes, mas lhe davam movimento. Vestia também uma camisa larga de algodão, esta pertencia a sua época, contudo parecia ser feita para alguém muito maior que ele, visto que as mangas chegavam até o meio de seus dedos. Suas botas pretas possuíam três fechos, e a esquerda possuía lugar para esconder uma pequena faca. Seu caminho era uma estrada, feita apenas para pedestres, que passava através de um grande campo. Nele havia apenas vegetação rasteira, mas num dado momento Tonav avistou uma árvore solitária. Esta possuía uma base bastante grande formada por raízes que pareciam estar presas ao solo a muitos anos, seu tronco também de larga espessura parecia ser forte e sustentava uma grande copa com folhas muito arredondadas e pequenas. Em algumas partes de seu relevo seus galhos cobriam toda a visão do tronco. E era esta a perspectiva de Tonav.
Ele caminhou em direção à aquela grande estrutura, a qual lhe dava a impressão de um grande monarca sentado em seu trono. O governante do campo, da estrada e da grama. Certamente todos que por ali passavam tinham que pagar uma forma de pedágio, e era exatamente o que ele fazia ao ir de encontro à majestade. Aquele homem se encontrava então em frente a árvore. Certamente defini-la desta forma seria um trabalho para uma mente simples. E nosso homem, por mais que parecesse, não era uma destas pessoas. Antes daquele momento ele já havia rido, chorado, dançado, acreditado, esquecido e até mesmo tido idéias próprias de um grande homem. Nada disso, porem, havia sido de alguma importância para ele... O vento começara a fazer movimentos estranhos, tocava nos galhos, no tronco, nas raízes e por último na grama. Esse movimento começara por uma brisa, mas se aproximava de uma aparência de tempestade. Deste mover de objetos começou a se originar um som, uma voz construída por cada ser da paisagem.
Tonav sentia frio e medo. Suas mãos estavam frias, mas essa sensação era muito mais pelo segundo sentimento. Seu peito queria explodir de forma que ele fosse lançado o mais longe possível daquele lugar, mas suas pernas tentaram correr sem ter força para isso. Caiu.
“Duas mariposas voavam, ambas pousaram sobre maçãs. A primeira sobre a intitulada entendimento. A segunda sobre uma simples maçã vermelha. A maça que é primeiro colhida é também a que primeiro apodrece.”
Estas foram as palavras da árvore. Para Tonav seria indubitável a sabedoria presente naquelas palavras, porem mais ainda era a indubitabilidade de seu medo. Por fim isso resultou em uma melhora brusca de sua condição física, que acabou sendo feita em frangalhos por sua corrida desesperada... A árvore riria, mas àrvores não riem...
Já não tinha mais fôlego e suas pernas adquiriram câimbras em partes delas que ninguém costuma perceber que existem. Ele caiu e se deitou próximo de uma pedra, talvez a falta de forças tirou qualquer medo de seu peito. Sem sombra de dúvida havia chances da pedra falar com ele, porem ela não o fez. Tonav dormiu algumas horas, pois não percebeu a quantidade de cansaço que estava depositado em seu corpo. Ao acordar viu o crepúsculo com seu céu cor de sangue. Levantou-se e recomeçou sua caminhada, mas logo teve que hesitar. À sua frente havia um bosque, nada muito grande, mas ainda sim um bosque com árvores. Elas possuíam o mesmo tipo de folhagem da grande, mas eram bem menores e muito menos magníficas. Seus pequenos troncos mostravam juventude e exatamente por isso uma falta de firmeza em suas raízes. Após um breve momento ele tomou coragem e correu através do bosque. Alguns caules invadiam o espaço de sua face e vez por outra o cortavam. Entretanto ele saíra de lá quase que ileso, apenas alguns pequenos cortes nas roupas e arranhões no rosto. Ao olhar a sua frente pôde ver a cidade pela qual ele havia procurado.
Luzes cintilavam acima de um pequeno muro, este tinha um portão de metal e atrás dele existia, para Tonav, o sonho de uma vida mais simples e árdua, mas também mais real e menos angustiante. Ele andou alguns passos e olhou para as pequenas casas com telhados de palha seca e escura. Cada trançar da palha parecia desfazer-lhe os nós da garganta e colocavam um pouco mais de paz em seu coração. O pensar dele divagava de tal forma que ele só conseguiria expressa-lo unindo-o a seu coração e chamando aquele lugar de lar.
Em fim ele alcançara o portão e ao lado dele havia um homem com uma lança. Aquele soldado que guardava o portão tinha uma história de vida bastante sofrida, mas provavelmente nunca havia falado com plantas. Deste modo ele havia vivido e sofrido de forma bastante corriqueira. Ele então gritou alto e com um ar de autoridade que apenas autoridades formais conseguem criar:
— Alto! Quem vêm?
De súbito Tonav percebeu a presença de outra pessoa, e então destilou por sobre o vento sua voz grave, que já havia perdido a vida e agora a recuperado:
— Venho da cidade e procuro abrigo para a noite...
— Então que seja bem vindo forasteiro... E que seja como dizem... Que aquele que se aproxima não seja mais forte do que aqueles que aqui estão... — Disse o soldado com um ar nem tão forte quanto antes, mas bastante solene.
Tonav fez uma referência e concluiu:
— Que assim seja!
O guarda abriu o portão e deu passagem para aquele que chegava. Logo após isso fechou o portão e disse:
— Siga a rua até o fim, e lá vai encontrar a pensão da cidade!
— Obrigado e até um próximo momento. — Disse Tonav encaminhando-se em direção ao local indicado.
Rápido e antes que ele se distanciasse o soldado disse, com seu irritante e “sábio” falar de autoridade:
— E tenha uma boa noite na cidade de Priasmo!
Ele seguiu pela cidade, que havia sido construída em um monte e possuía ruas estreitas de tijolos amarronzados. Caminhava por entre casas, que se assemelhavam a chalés. Avistou a pensão ao chegar ao ponto mais alto da rua, nesse ponto seu estômago já dava sinais de fome. Não comera nada desde o início da viagem. Desceu a rua apressadamente e chegou até a porta do lugar e como era costume fazer ao chegar durante a noite em hospedarias ele bateu três vezes na porta. Esperava alguém abrir a porta e observava a fachada do lugar. Era bastante velha e ao ser comparada ao resto da cidade, ele poderia dizer que havia sido um dos primeiros prédios a serem erguidos ali. Um fato que dava um ar de sabedoria à aquele local.
Algum tempo passado a porta se abriu, uma garota jovem de olhos castanhos e cabelo ruivo apareceu pela abertura. Sonolenta ela disse:
— Quem é e o que quer?
— Eu estou viajando e procuro um quarto para passar algumas noites. — Respondeu ele.
— Me acompanhe por favor... — Disse ela, e bocejando caminhou para dentro da hospedaria. Tonav a acompanhou até um balcão já carcomido que servia de recepção. Ela pegou uma chave e disse:
— É o quarto cinco, no fim das escadas. — Apontou o local dito. — São vinte e cinco Durons por dia. — Disse e bocejou.
— Obrigado — respondeu ele, fazendo uma reverencia e dirigindo-se em direção ao quarto mencionado. Ele pensava apenas em sua busca e que ela parecia ter terminado em uma pequena cidade, sem perspectiva alguma...
Neste ponto ele havia se enganado completamente, pois ainda haviam perspectivas. Uma delas apresentou-se de pronto a ele. Foi tomado por uma forte dor estomacal que mostrava o nível de imersão dele em seus pensamentos. Sua fome decidira tomar as rédeas, afinal seus avisos não aviam sidos levados em conta. Tonav voltou o mais rápido que pode até a recepção e por sorte (para quem nela crer) ainda encontrou a moça ruiva em frente ao balcão. Ele disse:
— Desculpe voltar a incomodá-la, mas eu viajei o dia inteiro e estou com muita fome... — Ela olhou para ele e bastante sonolenta prestou alguma atenção ao que ele dizia — Haveria algo que eu pudesse comer ?
— Vou dar uma olhada... Pode me esperar aqui mesmo... — Disse ela saindo na direção contrária à dos quartos.
Ele aguardava pela volta da moça com qualquer coisa que pudesse aplacar a dor que ele sentia pela fome. Andara aquele dia inteiro sem nenhuma parada para comer algo, havia algum tempo que ele também não tomava água. Durante o caminho tinha bebido um pouco de um riacho, mas o resto da tarde passara em total secura. O caso da alimentação se apresentava mais grave, já que a última comida que vira tinha sido na cidade. Comera pães e frutas e tomara leite de Leguu, um animal de difícil domesticação, o que encarecia bastante o preço de sua carne e leite. Após isso a única chance de alimentar-se surgira naquele momento e ele esperava.
O que para ele parecera-se com o tempo de dançar uma entediante valsa nos salões do império para a sonolenta garota havia sido uma curta canção de ninar. Ela trouxera para ele um copo de água com um pouco de leite e uma maçã. Tonav bebeu muito rapidamente a mistura e então pegou a fruta em suas mãos... Percebendo a quebra de formalidade que tinha executado disse meio sem graça:
— Desculpe a falta de modos...
— A esta hora da noite os modos são a minha menor preocupação. — Disse ela um pouco irritada e muito sonolenta.
— Boa noite... Senhorita?
— Boa noite. — Disse ela irritada e apontando a direção do quarto ao hóspede.
Ao chegar ao humilde cômodo ele sentou-se ao lado da cama, retirou suas botas e pegou de uma delas sua pequena faca. Levou-a em direção à fruta e a soltou no chão. Olhava fixamente para o objeto em sua mão e em sua mente ecoaram as palavras do Rei da planície: “Duas mariposas voavam, ambas pousaram sobre maçãs. A primeira sobre a intitulada entendimento. A segunda sobre uma simples maçã vermelha. A maçã que é primeiro colhida é também a que primeiro apodrece.” Naquele instante de sua existência tudo fazia sentido, tudo o que ele já passara apodrecera. E se apresentava a ele uma situação nova na qual havia apenas uma maçã vermelha... Uma situação simples...
Feliz na conclusão de sua epopéia ele retomou sua faca, para retomar o ritual de cortar aquela fruta... A fome não era mais o principal, mas sim o conhecimento! Ele cortou a maçã e então suas esperanças foram tomadas por uma podridão tão concreta quanto à da fruta a sua frente. Ele apagou a luz e dormiu.
* * *
No dia seguinte Tonav acordou mais bem disposto para observar o mundo a sua volta e tentar encontrar a religião ancestral. Ele caminhou durante algumas horas, e foi conhecendo a cidade. Este tempo foi suficiente para que ele conhecesse cada canto dela, entretanto algo nele mostrou que tal esforço não fez mais do que tirar aquela cidade do seu coração e torná-la sua nova velha cidade. Decidiu que passearia ao redor dela, passou pelo portão por onde havia entrado na noite anterior e em frente a ele não havia nenhum guarda. Olhou para o bosque que o amedrontara e teve a sensação de que podia deixar a cidade e ir para o bosque.
Após algum tempo de caminhada pelo bosque descobriu que ele não possuía nada demais e então decidiu ir a biblioteca da cidade e estudar. Leu alguns livros sobre religiões antigas, passou muito tempo fazendo isso e encontrou um que chamou muito sua atenção apesar de não ter relação alguma com o que procurava. Ele entendeu que esta contava a história de um homem que possuía uma fazenda, e que após anos trabalhando teve que colocá-la a venda. Ele sabia que passaria fome, porém ao vendê-la percebeu que perdia algo que ia muito além da posse ou do dinheiro. O autor não contava o que ele perdia, contudo Tonav sabia... O que o personagem perdera era o que ele estava em busca.
Quando ele saia da biblioteca a noite já baixava suas asas sobre sua cabeça e ele pensou que deveria voltar à hospedaria. Um pensamento voava por sua cabeça. Ele pensava em voltar ao lugar onde tinha falado com o Grande Rei e perguntar-lhe o que queria dizer com tudo aquilo. Esse pensamento crescia a caminho da estalagem e então tomou-se de um ímpeto e correu para fora da cidade...
Na travessia do bosque ele escorregou e caiu de costas no chão. Ao se levantar viu que na árvore a sua frente havia uma única maçã, mas ele não acreditava mais em símbolos. Todavia, mesmo que seu estômago também não acreditasse ele gostaria de comer aquela saborosa maçã. Ele pegou-a e mordeu, sentiu o suco entrar em contato com seu paladar e então tudo parou. Sua busca terminaria ali. Assim como o autor do livro que ele havia lido naquela tarde ele não poderia descrever ao certo o que encontrou... Sabia que certamente falava com o mundo nas línguas que os homens um dia decidiram esquecer.