Assim ou ...nem tanto. 101
Alegria
Depois de ter vivido o tempo do coelho, Otrom descansava como se fosse uma pedra. Ainda, leve, percebia a brisa e uma das suas partes sentia, nítida, a água a lamber-lhe o corpo. Um frio de arrepiar vinha ondulando ao sabor da vontade do rio e subia mais ou menos, com a pressa da corrente. O fresco aumentava depois de a água sair e o ir e vir da sensação também lhe dizia que o sol preparava os vermelhos para fechar o dia em beleza. Acabaria a tempo de ver Alegria chegar da venda? Começou a fazer força para acelerar o sangue mas nenhum calor chegara ainda à boca que continuava dormente, ausente, parada. Ela, a boca, sabia que precisava dizer a palavra mágica ou o sangue, agora habituado ao sono, tardaria a trabalhar. E, sem sangue, adeus regresso à vida. Que lhe importaria Alegria se ele, sangue, estava gelado para ser, como antes lhe pedira, pedra? Quando o sangue é frio o espírito corta perfeitamente qualquer emoção pelo meio, dissera o sábio sem que ninguém lhe perguntasse. Era verdade. Até certo ponto. Fazia, mentalmente, todas as contas, decidia bem apesar das lágrimas que houvesse nos casos que imaginava mas… não no que respeitasse a Alegria. Só o nome dito assim para dentro da pedra e já sacudia o sangue. Alegria, Alegria, Alegria dizia sem voz à pedra para acordar o sangue e, que bom, percebia já haver pés e mãos nos topos pétreos que o rio molhava. A seguir a boca pensou na palavra mágica mas já não a sabia. Felizmente o corpo todo, sangue, carne, pensamentos já sentia a palavra, já a dizia sem dizer, já a corria, cantava e amava por ser o seu nome: Alegria.