E NO MEIO DO CAMPEONATO
A dor surgiu durante a brincadeira. André chutava a bola no portão. Na pancada da esfera, o portão tremia, a bola voltava. O boleiro chutava novamente, a pelota ia e retornava.
O menino pensava: “Corinthians campeão!”. Chutava. A redonda partia, o portão de ferro vibrava. Uma hora, o portão e o abdômen da criança vibraram na mesma frequência. A bola voltou. Ficou a pontada perto do umbigo. Procurou a mãe.
– É uma dor fraquinha, mãe, aqui no umbigo.
– Daqui a pouco passa.
Não passou. Mas estabilizou-se, ficou no imperceptível, até o fim do Santos x Corinthians. .
O Corinthians empatou por um a um. Bola ciscada dentro da área, por isso o Santos marcou.
– O gol do Vaguinho foi de placa... Que choque besta é esse. Parece coçar dentro da gente.
O menino pensou no mundo dos intestinos que, quando vazam, derrubam o órgão vizinho. O futebol americano também é assim. Só derrubada. Nem existe bola.
Não quis mais pensar em quedas, faltas. “Cama de gato” é a falta mais estranha do mundo.
Resolveu se deitar.
– Dói tudo aqui em volta.
A mãe diagnosticou prisão de ventre. Pode ser friagem. - É Frescura – disse o pai. Foram dormir. Sem questionamentos. Ninguém dormiu. Na manhã seguinte, a dor se tornara tão constante e contundente quanto um chute na barriga.
– Passa quando eu me sento – afirmou.
– Vamos para o hospital!
A tia-madrinha do filho, funcionária do Inamps, colocara o afilhado como dependente em seu plano de saúde especial.
Entraram no hospital pelo pronto-socorro. A triagem aconteceu após duas horas. O menino driblava as dores. Tentava deslocá-la. Passava. Cruzava para o centroavante. Centroavante cabeção, só faz gol na sobra.
O pai comprou-lhe o jornal para distraí-lo. A seção de esportes comentava o empate do seu time, mas o gol foi tabela, passando pelos zagueiros. Chute cruzado. A bola, antes de entrar, resvalou no goleiro.
Corinthians o campeão de 1974.
O médico chegou e pediu para o corintiano deitar-se. Depois apertou sua barriga.
– Dói aqui?
– Dói, mas deitado não dói muito.
– Você não tem nada, apenas gases.
Pediu para o gasoso sair da maca e receitou bolinhas. Entregou as amostras grátis.
– Tome uma agora mesmo.
– Mas o meu filho mal pode andar.
A mãe desconfiou:
– Ele não pode ter simplesmente gases. Esse médico é louco! A saúde neste país não vale nada! Tem gente que morre na fila.
A mãe praguejava perto da saída, quando a enfermeira informou-lhe o erro na consulta. Não deveria ter sido ali. Constava na ficha um tratamento diferenciado do resto do público, em quarto particular. A madrinha tinha uma cadeira cativa.
– Desculpe o erro. O lugar do seu filho não é aqui. Por favor, dirija-se ao nono andar.
A criança segurava a dor. Pegaram o elevador que primeiro desceu ao subsolo. Entrou um sujeito que quis jogar conversa fora com o ascensorista:
– E aí Francisco? Ainda nessa vida? Em quantos anos você se aposenta?
– Mais catorze anos... Passa rápido.
André, onze anos, imaginou os catorze do ascensorista. A cabine cheia de claustrofobia, os gases soltos no mau cheiro e crianças fedendo, fedendo até o fim dos tempos.
O homem puxou a porta pantográfica. O ascensorista sim sofria como torcedor de time “saco de pancadas”. Mesmo quando vai empatar perde, no último minuto, no escorregão do goleiro.
A vida do jogador de futebol é diferente. Passa pelo túnel, o gramado se abre, as bandeiras se agitam.
Chegaram ao nono andar. Reservaram o quarto, e André foi encaminhado ao exame clínico. O pediatra foi criterioso. Primeiro, perguntou:
– Para qual time você torce?
– Corinthians Futebol Clube!
Depois o médico apalpou o estômago do menino. “Dói aqui? E aqui?”. No final, virou-se para a mãe e diagnosticou de bate-pronto:
– Pelo exame parece apêndice, minha senhora, mas não podemos descartar a hipótese de tumor maligno.
A mãe soltou um grito. As enfermeiras chegaram. A criança saiu de maca. Chamou pela mãe. Ela se postou no meio do corredor. Dura e sem uma bandeirinha.
André foi cercado por muitos aparelhos. Disseram para respirar através de uma máscara. “Não gosto de futebol americano.” Inspire! “Parece chiclete de tutti-frutti.”
Inspirou. Ouviu a galera distante. O coro da multidão aumentou. Alguém fizera o gol e ele não podia comemorar.
Acordou pregado. Dois esparadrapos grudavam o soro no braço esquerdo. Incomodavam. A mãe dizia:
– Foi o apêndice, meu filho.
A criança delirava. Dormia e acordava. Dormiu. Acordou. Passara o efeito da anestesia.
– Mais vinte horas e seu apêndice supurava. Você morreria de infecção generalizada.
As pessoas morrem de infecção generalizada. Morrem na geral, no fosso do estádio, onde a contaminação é mais barata do que o ingresso.
Levantou a gaze sobre o corte. Algo saíra de dentro do corpo. A barriga fora costurada porcamente. Costuraram um saco de batatas. Dormiu. Acordou.
O médico entrou e perguntou:
– Bom dia, corintiano.
– Eu estou com sede, doutor.
– Você não quer ver o seu apêndice? Olha aqui no vidro.
O menino olhou. Chegou mais perto. O apêndice parecia uma massa, mais redonda do que inchada, escamosa, fedia a formol. Quicava dentro do vidro. Pronta para o chute. Era uma bola. Seu apêndice virou bola de futebol!
Eu engoli um gol. Olha a bola de capotão.
Para os amantes do futebol, a lei do impedimento é a máxima complexidade.
DO LIVRO:"AS CRIANÇAS DO GENERAL MÉDICI e outras histórias"