Mais um pedaço

Já tinha passado das onze da noite quando a campainha tocou. Eu não estava dormindo, sempre deito tarde, fico lendo um livro, assistindo qualquer programa na televisão sem prestar atenção ou vendo um filme... enfim, pra cama cedo eu não vou. Estava meio sonolenta no sofá, com a televisão ligada sem som, a luminária perto do sofá acesa, lendo o livro que ganhei da minha irmã no Natal passado e que nem tinha lido ainda. Não foi preguiça e nem nada, foi falta de interesse, porque li a última frase e fiquei sem vontade de ler. Sempre faço isso. Leio a última frase ou o último parágrafo do livro pra descobrir se vou gostar ou não. Às vezes me engano, pois este é bom, apesar da última frase não me ter despertado interesse.

Pois bem, o fato é estava lendo quando ouvi a campainha tocar. Deixei, nem quis levantar, o livro estava realmente interessante mas depois do terceiro toque levantei, fui até a porta, não abri, perguntei quem era, não tive resposta então pensei que tivesse ido embora, pois havia demorado a ir atender. Quando estava voltando pra sala, escutei uma porta de carro batendo, mas não ouvi o carro ligar e, pelo barulho da batida na porta, eu já sabia que eras tu. Sentei no sofá, peguei o livro nas mãos abri onde estava lendo, encostei os cotovelos nos joelhos, fiquei olhando pras palavras do livro, pra tevê ligada sem som, sem absolutamente nada, nenhum pensamento passando pela minha cabeça, quando o telefone tocou. Deixei tocar. Tocou até parar e recomeçar a tocar. Tirei ele do gancho mas não falei nada. Escutei uma respiração do outro lado da linha, e depois um “Alô, tu estás aí? Quero falar contigo, podes abrir a porta pra mim?”. Fiquei congelada, paralisada. Já fazia tanto tempo que não escutava tua voz e, agora, me pareceu estranho demais, confuso, não sabia o que falar, como agir... pedi que esperasse um pouco e disse que já abriria a porta. Levantei, me olhei no espelho, arrumei um pouco o cabelo, calcei as pantufas e fui até a porta. Abri e dei de cara contigo, ali parado na minha frente, depois de ter sumido por tanto tempo sem deixar vestígios, mandar notícias e sem dar explicações. Vi também que trazias uma pequena mala em uma das mãos e um casaco na outra, mas não perguntei nada, não conseguia falar, só fiquei olhando pra ti, vendo aquele mesmo olhar que eu tanto senti falta, querendo com todas as forças abraçar mas, com os sentidos travados, não conseguia fazer mais nada além de olhar pra ti. Estavas bonito, com o semblante um pouco cansado, mas bonito, como sempre.

Fiquei parada com uma mão na porta, ficamos os dois nos olhando por um curto espaço de tempo que pareceu mais de uma hora. Tu não falaste nada, me deste um beijo no rosto de leve, entraste e largaste a mala e o casaco. Ainda sem falar nada, tiraste minha mão da porta, depois fechaste e trancaste. Me pegaste pela mão e me levaste até a sala. Não falamos nada, sentamo-nos no sofá que eu estava deitada lendo enrolada no meu cobertor azul. Ficamos olhando um pro outro, vi lágrimas querendo escorrer dos teus olhos, quis falar qualquer coisa mas tu encostaste os dedos nos meus lábios e pediu silêncio. Não falei nada, com custo abracei, te deixei deitar a cabeça nas minhas pernas e fiquei fazendo cafuné até que tu te acalmaste e paraste de chorar. Adormeceste assim, segurei tua cabeça, coloquei o travesseiro embaixo, te cobri com o cobertor azul, tirei teus tênis e te deixei descansar.

Subi, fui dormir no meu quarto. Deitei e peguei no sono quase que de imediato. Tive o sono leve, escutei barulho na cozinha, depois o chuveiro, novamente o silêncio e depois a porta do meu quarto abrir. Fingi estar dormindo, escutei a porta fechar, o clique da luminária do meu lado da cama acender, porque na verdade, depois que tu foste, passei a dormir do teu lado da cama, deixei o vazio que tu me deixaste, literalmente vazio. Deitaste do meu lado, mas não fizeste nada. Me cobriste, tiraste as mechas de cabelo que estavam no meu rosto e me beijaste com carinho e disseste baixinho no meu ouvido um “Boa noite!”. Respirei fundo, me mexi um pouco mas não abri os olhos. Deitaste de costas pra parede de frente pra mim, da mesma forma que eu estava deitada. Não fiz nada, nem me mexi. Adormecemos os dois, um de frente pro outro, sem nem nos encostarmos, sem qualquer palavra, sem fazer nada além de adormecer com a presença um do outro.

Acordei mais cedo, te vi dormindo tranqüilo, com sono pesado e levantei sem fazer barulho pra não te despertar. Entrei no banheiro, escovei os dentes, tomei meu banho, vesti uma calça de moletom e um blusão e desci pra tomar café. Não tinha nada em casa, fui na padaria e no mercado comprar algumas coisas, pois já que estava sozinha, quase não comia em casa e evitava fazer comidas também. Tinha passado a comer mais comidas congeladas e instantâneas. Não tinha paciência pra fazer tantas coisas e ter que jogar o resto no lixo por não ter com quem dividir. Só fazia coisas especiais quando alguma das minhas amigas aparecia pra jogar conversa fora ou pra assistir filmes.

Quando voltei, tu estavas na sala assistindo um filme, tinhas tomado uma caneca de chá de cereja com hortelã e comido alguns biscoitinhos integrais que, por acaso, eu ainda tinha guardado em casa. Também tinhas lavado a louça e organizado um pouco a sala, como quase sempre fazias enquanto ainda estávamos juntos. E disso eu gostava muito, tu não eras (e continua não sendo) machista e sempre fazer o que fosse necessário em casa, não deixava as coisas só pra mim. Mesmo porque, eu não admitiria fazer tudo sozinha, mas nunca discutimos por causa disso, tu tinhas consciência desde o início.

Cheguei na porta da sala, com a chave do carro e as sacolas das compras nas mãos, olhei pra ti, esperando que tu falasses qualquer coisa, ou que eu mesma falasse, mas não. Ainda não tínhamos nos falado. Sabíamos que tínhamos um muito a falar, mas não queríamos agora, nos entendíamos com olhares. No fundo eu estava esperando que tu falasses primeiro, afinal, eras tu quem tinha algo a explicar, não eu. Eu continuei sendo o que eu era, não sumi, não fugi e ainda quis receber-te em casa, e sabe de uma coisa? Não sei porquê deixei-te entrar e, ainda mais, não sei porque te deixei ficar. Fiz um almoço simples, mas gostoso. Almoçamos, ainda sem pronunciar nenhuma palavra, só ouvi baixinho um “está ótimo!” que, respondi com um pequeno sorriso acanhado e olhos baixos.

Estava confusa, não sabia o que estava acontecendo com a gente. Não sabia se tinhas voltado pra ficar, o que tinha acontecido contigo durante todo o tempo, se tinhas te envolvido com alguém ou qualquer outra coisa que fizeste longe de mim. Limpamos a cozinha, tu lavaste a louça e enquanto eu secava, tu foste pra sala e ficaste assistindo qualquer programa chato de sábado à tarde na tevê. Terminei e fui pra sala também. Tu me olhaste e fizeste um gesto me chamando pra me deitar contigo no sofá. Escolhi um filme e coloquei pra assistirmos. Sentei do teu lado, um pouco sem jeito de me aproximar, mas deitei e, como antes, como sempre, eu cabia direitinho no teu peito, ainda me servia o teu abraço. Eram as mesmas medidas de sempre, era o que não se podia calcular e ainda o que mais do que nunca, não se podia explicar.

(continua...)

Gabibis
Enviado por Gabibis em 12/08/2007
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