Epidemia Urbana
Capítulo 01
O Despertar
Ele abriu os olhos lentamente sem noção de quanto tempo havia dormido.
Ao abrir os olhos, suas pálpebras pareciam estar coladas nos olhos. Começou a piscar os olhos, intermitente, até abri-los por completo.
Os demais sentidos naturais começaram voltar à vida. Primeiro a audição percebendo o silêncio aterrador. Depois o olfato, tudo à volta cheirando a mofo e por último o tato. Estava frio.
Logo percebeu que não era o clima que estava frio. O ar estava agradável. O frio vinha de si. Ele percebeu o quanto estava gelado. Seu corpo emana um frio intenso. Será que estava morto? Colocou a mão no peito, esforçou como que para ouvir o seu coração, batia compassadamente. Não estava morto. Só frio.
De momento as coisas parecia estarem viradas. O mundo parecia estar perpendicularmente ao seu plano. Mas logo percebeu que estava deitado e que sua cabeça não estava bem. Na verdade estava caído e toda a sua mente também estava na vertical. Aos poucos foi focando mais no mundo a sua volta.
A luz do sol penetrou por uma brecha no telhado. Maltratado e esquecido pelo tempo. A luz atravessou a fresta iluminando seus dois grandes olhos azuis. O brilho foi tanto que pareceu ofuscar-lhe ainda mais a mente.
Ele levou a mão para tapar a luz do sol quando este avançou mais alguns graus, aumentando em calor e brilho. Sentiu uma dor infernal. Sua mão foi incendiada pela luz solar como se um ferro candente houvesse encostando-se a ela.
Começou a sair fumaça e o cheiro de carne podre e queimada, foi nauseabundo.
Num relance ele se levantou, fugindo da luz solar e recostou-se a uma das paredes adjacentes, completamente envolta nas sombras.
Levou sua mão ferida à barriga, primeiro para esconder a dor depois para segurar o estômago que parecia virar. Ia vomitar.
Não tinha o que vomitar. Sua barriga estava estupendamente vazia. Ele olhou para os lados gemendo. Procurou entender o que estava acontecendo. Sentiu tudo girar. Olhou para a mão, a dor foi sumindo lentamente e a ferida se fechando na mesma lentidão e proporção.
- Que porcaria é essa? - disse pasmado. Porém fascinado, já que no momento nada fazia sentido.
Espantou-se até ao saber que conseguia falar. Sentiu que podia articular a boca. Foi um devaneio.
Uma sensação vertiginosa veio de repente. Ele achou que ia cair e, sem nenhum amigável aviso todo o seu corpo começou a formigar e doer violentamente.
Cada osso, cada músculo, cada famigerado pedacinho de carne.
Ele deitou e começou a retorcer-se. Tal qual uma lagarta quando cai involuntariamente num formigueiro de lava-pés, atiçadas por algum pirralho.
Esse foi o efeito de um corpo adormecido por trinta anos voltar de novo à ativa.
Seus olhos ficaram em brasa e um gosto de ferro e sal tomou conta de sua boca. Ele sentiu seu corpo tremer incontrolavelmente. Suas gengivas adormeceram e sentiu seus dentes caninos crescerem. Crescerem até demais.
Aos poucos a dor que sentia foi indo embora até sumir por completo. Depois disso os instantes que se passaram foram de mansidão e sono como se estivesse num sonho. Até que anoiteceu.
Quando o último raio de sol esvaeceu no horizonte a escuridão subsecutiva tomou conta, penumbra total. Ele levantou num sobressalto e se pôs em pé. Havia adormecido novamente nas últimas horas depois de acordar de um sono de trinta anos e esse último cochilo o havia revigorado. Não havia mais nenhuma dor. Nenhuma fraqueza. Nenhum remorso. Só dúvidas e uma sede desgraçada.
- Gostaria de pelo menos saber o meu nome - disse consigo mesmo. - Quem eu sou? Tenho a sensação de ter dormido muito. Os últimos anos. Mas não me lembro de nada que aconteceu.
Saiu andando pelo estabelecimento sem nenhuma noção de que tipo de edifício era. Olhou pela janela lá fora. Sentia bem melhor assim, escuridão total. Sua visão estava bem aguçada de noite. Enxergava todas as coisas num tom esverdeado, mas onde havia vida ele enxergava em tons de vermelho.
No meio da mata lá fora podia enxergar perfeitamente os insetos rabiscando o ar. Um coelho saltitando pelo terreno. Pássaros noturnos e agourentos fazendo sua vigília e até uma serpente rastejando, esta, porém num tom mais fraco.
- Sangue frio, ele pensou. Tudo verde e vermelho. Frio e quente. Percebeu que se sentia muito bem à noite. Lembrou que era uma Criatura da Noite.
Olhou para o que vestia. Trapos e frangalhos. Suas roupas estavam sujas e podres. Parecendo que não trocava há anos. De fato.
Tinha que sair e procurar o que vestir. E o que comer. Aquele gosto de ferro e sal na boca embrulhava mais uma vez o seu estômago. Sentiu uma ou duas ânsias só de pensar, mas logo parou.
Olhou novamente para fora. O mundo estava escuro e quieto. Uma quietude medonha, sobretudo ameaçadora. Observou que a escuridão era total, não havia nenhuma luzinha ao longe. Nem uma tocha ou chama de vela sequer. Nenhuma casinha num sítio distante onde uma mulher colocava a panela no fogão à lenha e o marido tirava as botas de couro e depositava ao lado da espingarda. Esperando pelo jantar. Não havia nada disso. Não havia vestígio de habitantes naquele lugar. Tudo estava quieto e sossegado. Receou estar delirando novamente.