A coragem de Nicácio & o dragão

Diz-se que em uma província da antiga Laurn situada em terras extremamente longínquas, todos os anos uma comissão dos fazendeiros e moradores locais tinham que levar uma bela e pura jovem a um local antigo nas montanhas designado para um cerimonial. Essa bela jovem seria ligada a pesados alforjes e lá esperaria que uma criatura hedionda que habitava em um labirinto de cavernas no alto das montanhas ao sul viesse levá-la como oferenda para não descer até a vila e destruí-la com seu bafo incandescente.

Conta-se que por duas vezes no passado, os moradores recusaram-se a oferecer uma de suas filhas a esse destino terrível; chegando o dia marcado a criatura não encontrou a donzela no lugar do sacrifício e com uma intensa fúria atacou a vila, inclusive o castelo do regente daquelas terras de forma nunca antes vista por nenhum deles.

Da segunda vez, os homens que levavam a virgem para se encontrar com seu destino, pararam no pé da montanha e lá acamparam, pois tratava-se de dois dias de caminhada desde a vila até o lugar que ficava encravado num vale entre uma montanha e outra. Nessa noite aqueles homens acabaram por se embebedar e sorrateiramente sem medir as conseqüências de seus atos para o povo do vilarejo, a jovem tomou posse de um dos cavalos que iam com eles e desapareceu cavalgando noite adentro. O castigo imposto pelo monstruoso dono das montanhas se abateu sobre o povo tão ferozmente que durante quase um século ninguém mais ousou desobedecê-lo, o monstro queimou além das casas e do palácio real, todas as plantações, todas as florestas próximas e até mesmo secou alguns dos riachos e pequenos lagos mais usados pelos fazendeiros.

“Sim!”._ Diziam os anciões._ “Ele passava voando pelas florestas, despejando sua fúria incandescente; não sobrou nenhum animal vivo”

Outros diziam:

“É um lagarto enorme, com asas gigantescas e cauda pontiaguda, seu odor parece enxofre puro; nunca mais quero vê-lo na minha frente”.

O tempo passou e a cada ano uma jovem com um futuro todo pela frente era tirada de seus pais e levada para cumprir o pacto com a Besta das montanhas; porém, os moradores já não possuíam mais filhas mulheres em idade de serem levadas; a população de homens havia crescido de forma desproporcional a de moças. Existia muito mais homens do que mulheres nas vilas, exeto na casa do atual rei, onde suas duas filhas sequer sabiam dessa tradição.

Indignados os moradores exigiram que seu regente escolhesse uma de suas filhas e oferecesse a criatura, do contrário naquele ano não teriam sacrifício. Temendo que a ira do monstro se ascendesse novamente contra eles e principalmente contra a casa real como aconteceu com seus antecessores, o rei com uma profunda dor no coração escolheu uma de suas filhas.

Ágata, a formosa; em toda aquela terra não havia ninguém cuja beleza e ternura fosse semelhante da dela, a mais nova e corajosa das mulheres da corte, pois ao saber do destino que estava sendo preparado para ela, não temeu e no dia da proclamação que seria falada ao povo, disse:

“Muito me entristece o caminho que toma minha vida, contudo, sacrifico-me pelo povo que aprendi a amar desde que ao mundo vim e pela honra da casa de meu pai, e para que meu nome não caia no esquecimento”.

Aquelas palavras feriram secretamente alguns jovens mancebos, pois não tinham coragem nem de acompanhar seus pais na labuta.

Finalmente chegou o grande dia da partida, o rei arregimentou um grupo do seus mais fiéis homens e os colocou sob o comando do duque de Laurn, homem cuja notória ganância incomodava a todos os habitantes do lugarejo, ele almejava o trono, mas precisava de um laço de sangue com a casa nobre para aspirar verdadeiramente a coroa, e sua única possibilidade de ver seus planos realizados estava sendo mandada para uma morte certa; o duque já estava formalmente cortejando Ágata, mesmo contra sua vontade, a moça conhecia os pensamentos do duque, sabia que tipo de pessoa ele era, cruel, desonesto, mentiroso e sabia que ele nunca seria digno o bastante de herdar a coroa.

Partiram os homens em uma comitiva a cavalos, liderados pelo duque, Ágata seguia dentro de uma carruagem enfeitada, com dois batedores bem armados à frente e dois na retaguarda; era um total de dez homens. O rei não quis acompanhar o cortejo, pois não agüentaria ver sua filha sendo presa aos grilhões, ele morreria antes dela.

A esposa do rei pediu que este não deixasse que sua filha fosse levada, com muitas lágrimas e sabendo que não conseguiria viver sem que ao menos tivessem tentado salvá-la; o rei fez o seguinte decreto. Se no meio do povo se levantasse um homem capaz de matar a fera das montanhas e salvar Ágata, este teria o direito de casar-se com ela e de ser o próximo na sucessão real, visto que o regente não possuía filhos homens e sua outra filha já estava comprometida com o sacerdócio.

Os mensageiros se apressaram em fazer conhecidas as palavras do rei ao povo, mas poucos homens se colocaram a disposição, por outro lado, batedores foram enviados ao duque que sabendo das novas declarações do seu rei tramava um modo de vencer a fera. Seu intuito inicial era colocar todos os outros soldados para confrontar o monstro enquanto ele fugia com a moça.

Nesse mesmo dia, ao cair da tarde, um jovem vindo de outras terras; um andarilho, apareceu na cidade e vendo a proclamação em cada porta das casas e tabernas do lugar perguntou a respeito de tudo aquilo a alguns moradores. Após se informar da beleza da filha do rei saiu em disparada cavalgando o mais rápido que seu cavalo agüentava, afim de chegar a tempo de vê-la. No caminho, passando pelas planíces logo após a saída dos limites territoriais de Laurn rumo as montanhas, cavalgou como pôde, sob magnífico céu azulado cujas poucas nuvens criavam grandes desenhos e sobre a grama verdejante dos caminhos da estrada que levava às veredas rochosas da montanha dos dragões, entretanto, percebendo que não conseguiria alcançá-los a tempo, Nicácio resolveu parar para um pequeno descanso junto a uma robusta árvore de verdes folhas e belas flores, do lado da árvore corria um ribeiro de águas límpidas que serviria para refrescar tanto a ele quanto a seu cavalo, Hivfendel.

Nicácio calculava que cavalgando durante a noite e mantendo aquela trajetória os alcançaria na manhã do segundo dia, ainda teria tempo de salvá-la. E enquanto descansava sentado sob a sombra da árvore pensava em voz alta consigo mesmo:

“Há SENHOR, como posso vencer essa tal fera mística ?”_ olhou para os pertences do seu lado onde havia apenas um cantil, um mapa dado por sua mãe para chegar até Laurn, algumas frutas, um pedaço de pão de viagem e por fim uma bela adaga de lâmina prateada feita com extremo capricho por um grande artífice de sua cidade natal; presenteada a seu avô, que a deu a seu pai e agora pertencia a ele.

Aquela adaga embora bela e até certo ponto letal não era arma poderosa o suficiente para penetrar a couraça quase metálica de um dragão. Ele continuou pensando e acabou por cochilar.

Quando acordou já era noite, uma tocha tinha sido deixada acesa junto a ele. Quem poderia ter feito aquilo? Um pouco mais de provisão também estavam em outra bolsa deixada ali e junto a Hivfendel que agora tinha suas rédeas presas a uma estaca fincada no chão.

Curioso; Nicácio remexeu na nova bolsa de mantimentos onde um bilhete dizia:

“Retorne forasteiro, permita que Ágata cumpra seu destino; Estamos deixando para seu uso e proveito alguns mantimentos frescos e percebendo que você não possui armas deixaremos também amarrado a seu belo cavalo, um arco e uma aljava de flecha; esperamos que seja o suficiente .”

Não havia assinatura nem insígnia de quem quer que fosse, tampouco o papel possuía timbre de alguma família de renome. Sem querer dar atenção ao recado Nicácio recolheu suas coisas, acariciou seu animal, apagou a tocha, montou e partiu o mais rápido que pôde, não sabia quanto tempo se passara e cavalgaria durante toda à noite.

Hivfendel nunca o decepcionara antes e dessa vez não seria diferente, ele corria como se fosse voar tamanha era sua velocidade; em sua terra natal contava-se que nos bosques longe dos homens viviam cavalos indomáveis que descendiam dos antigos unicórnios, e foi exatamente nesse lugar aonde Nicácio conquistou a amizade desse cavalo, após salvá-lo de uma emboscada, e desde então tornaram-se companheiros de viagens e aventuras.

Logo que o sol surgiu, a comitiva real estava no lugar marcado para o sacrifício, Ágata já estava presa pelas mãos, pescoço e pés, e os soldados colocavam-se em posições que julgavam estratégicas; longe do altar cerimonial o duque permanecia observando tudo, ficaram ali por horas esperando que algo ocorresse, alguns homens da vila chegaram em seguida armados, prontos para combater contra a fera e levar o prêmio que era a mão da bela princesa.

Quando a manhã começou a se tornar tarde, eles ouviram um som tão pavoroso ecoando pelo vale que alguns dos presentes ali soltaram suas armas, um urro medonho seguido por chamas que desceram dos céus; lá estava ele, Gräwthvemomth; O Dragão, com suas escamas esverdeadas rebrilhando à luz do sol do inicio da tarde, as asas grandes produzindo ventos que elevaram a poeira do solo rochoso, suas narinas cobertas de fuligem fumegante e para o completo e absoluto horror de todos os presentes, a criatura possuía duas cabeças, ambas exalando o fedor inconfundível do enxofre puro e baforadas de fogo que consumiam tudo ao seu redor.

A gritaria e o desespero tomaram conta de todos, alguns atacaram desordenadamente e foram consumidos pelas chamas, mas a maioria fugiu perdendo-se pelos caminhos montanhosos; o duque escondido atrás de uma rocha não ousava se manifestar mesmo ouvindo os gritos da bela Ágata ao longe.

Nesse exato momento Nicácio chegou sobre o dorso de Hivfendel, munido apenas da coragem que possuía mais do que os outros, sua fé, sua adaga o arco e a aljava com algumas flechas. O dragão movia ambas as cabeças para lados diferentes afastando os covardes que ainda estavam por lá e cuspindo fogo incessantemente, ele parecia ter uns quatro ou cinco metros de comprimento, e como se não bastasse toda aquela cena, sua cauda ainda balançava serrilhada e pontiaguda lançando toras de madeira e rochas soltas em todas as direções.

Sem esperar, pois a vida de Ágata corria grande perigo, Nicácio avançou rumo ao altar onde ela estava acorrentada; Hivfendel esquivava-se dos lugares onde havia fogo e procurava defender seu amigo dos ataques da cauda do monstro. Nicácio usou a adaga para soltar rapidamente a princesa, rompendo com os cadeados, e voltou, tomando-a nos braços foi deixá-la longe do alcance da fera, junto de onde estava o duque.

“Por favor cuide dela”_ disse ao duque sem perceber que estava entregando a vitória àquele que seria seu rival.

Montando novamente sobre o ágil Hivfendel e tomando do chão uma espada que fora deixada para trás cavalgou com ousadia para a fera que estava enfurecida pela arrogância do povo em desobedecer sua vontade, era uma batalha desigual, Gräwthvemomth arremessava os homens que tentavam feri-lo sobre as rochas e árvores; muito pereceram. Nicácio passou cavalgando e em um movimento certeiro cravou a espada na couraça da criatura, mas ela se quebrou instantaneamente, em seguida foi jogado de cima do cavalo ao solo por causa do vento feito pelas asas que não paravam de bater; ele caiu e ao se levantar lançou mão do arco e de uma das flechas desconhecidas deixadas sob seu poder; Gräwthvemomth tinha dado cabo dos soldados que estavam por perto, não restava mais ninguém.

Nicácio puxou a corda do arco com o máximo de força que pôde reunir nos punhos, segurando a flecha entre os dedos, braço esticado e olhar compenetrado, ele procurava o momento certo de disparar. O dragão bateu as asas e elevou-se alguns centímetros do chão, mas foi atingido pela flecha atirada pelo intrépido rapaz; a seta acertou em cheio uma das cabeças do monstro, bem entre os olhos e Gräwthvemomth teve de voltar ao solo para tentar subir novamente, nesse momento outra seta o acertou na outra cabeça exatamente no mesmo lugar; tanto o duque quanto Ágata que viam a batalha entre o simples homem contra a fera mística tiveram a sensação de que as flechas depois de disparadas mudavam de trajetória em pleno ar; mas não era uma sensação, isso estava realmente acontecendo. O terceiro disparo derrubou a besta; pois mudando de trajetória no ar acertara o tronco do dragão, no local onde ficava seu coração e o jovem correu para decapitá-la. Ali decidiu-se a batalha.

Quando a fera tentou reagir cuspindo mais fogo para o alto, Nicácio surgiu com uma investida sobre o monstro tombado e deu cabo das cabeças, Gräwthvemomth se debatia e o jovem teve de fazer muita força para findar o embate. Após o último jorro de fogo o jovem exaurido, caiu desacordado.

_ “Levante-se Nicácio”._ foi o que ele ouviu.

Acordando num susto se deparou com um homem vestido numa túnica tão branca que parecia reluzir, seus cabelos também eram brancos estavam de pé bem na sua frente.

“Levante-se e cavalgue”._ continuou._ “O duque já levou a jovem Ágata de volta para a vila e reivindicará casar-se com ela...”

_ “Forçará à donzela a mentir ao rei ameaçando-a para que diga que ele matou o dragão Gräwthvemomth”._ prosseguiu._ “Você deve ser rápido como o vento; retorne ao vilarejo e leve uma prova de que o dragão das montanhas está morto....”

E por fim disse:

_ “Foi muito bom lutar ao seu lado, prossiga pela vida, com a mesma sinceridade que sempre teve, mantendo seus pensamentos no Caminho, na Verdade e na Justiça.”

Dito isso à luz que emanava de sua túnica ganhou intensidade ofuscando Nicácio por um segundo e desaparecendo no seguinte; não havia mais ninguém ali a não ser ele e seu cavalo.

Sem perder muito tempo o jovem usou sua adaga para cortar fora as duas línguas bipartidas da fera abatida, uma de cada cabeça e embrulhando-as em pedaços de tecido que encontrou pelo caminho retornou o mais rápido que pôde.

***

A vila estava em festa com a notícia, o grande duque tinha matado o dragão e os preparativos para o casamento foram iniciados, entretanto no dia da cerimônia o aventureiro andarilho reapareceu com as provas de que suas mãos e não as do duque tinham derrubado o monstro da montanha, o rei indignado com a mentira pediu a confirmação de sua filha que ao ver o verdadeiro responsável pelo grandioso ato de coragem confirmou a historia verdadeira. O duque foi desmascarado em sua teia de mentiras, aprisionado e levado ao calabouço, destituído de sua titulação nobre que passou ao verdadeiro herói; e pela insolência de forçar a dama a mentir somente por querer a coroa para si.

Ágata e Nicácio puderam finalmente casar-se com a benção de Deus e do rei, e viveram felizes para sempre...

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 09/08/2007
Reeditado em 26/01/2008
Código do texto: T599895