A SENHORITA E AS BOAS-VINDAS À LOUCURA
Após abrir os olhos deparei-me com um lugar diferente de tudo o que já vi. Ainda deitada, vi ursos a voar pelo céu azul marinho, cruzes espalhadas no chão criando um leve tom gótico, árvores cercavam o local com chão de camurça colorida. O Sol brilhava chocante ao final das lindas e glamorosas montanhas, palavras se chocavam no ar, criando frases e poemas. Eu estava de saia longa, descalça e com os cabelos ondulados, como sempre amei.
Existiam móveis coloridos e de bom gosto por toda a parte e meus sinais não conseguiam distinguir de onde saíam as músicas que ecoavam pelos relevos e contrastes daquele lugar. Parecia tudo perfeito, perfeito demais para ser real. Algo passou sorrateiramente em meus pés, era um esquilo! Eu nunca havia visto um esquilo! Eu conhecia tudo aquilo, mas não sabia onde estava; me sentia em casa, mas não tinha a mínima ideia de como chegara naquele lugar.
Após admirar toda aquela loucura, digna de qualquer “conto de fadas alienado”, senti o medo me atropelar e me fazer caminhar à procura de ajuda. Encontrei casas abandonadas, rodovias desertas, mas nenhuma pessoa. Continuei caminhando, mas a estrada acabou e só o que me restou foi um trieiro de kalanchoes. Após caminhar alguns incessantes minutos encontrei uma cama com lençóis vermelhos, que se mesclavam aos raios de sol que passavam entre as frechas das folhas e abrilhantavam o local. As árvores, porém, possuíam aparência melancólica, com as folhas recobertas de musgo e o chão era sedento de cor. Após correr a mão sobre a cama, vi que minha mão estava coberta por uma luva preta que cobria boa parte de meus braços e eu não estava vestida como antes, estava com um vestido preto, cheio de panos soltos que se movimentavam com a força do vento. Aquele local era trevoso, então continuei caminhando por motivação do medo.
Ao passar por diversas árvores monótonas encontrei um rio de águas verdes, sentei-me em uma pedra azul fosco e não consegui conter minhas lágrimas. Chorei como nunca havia chorado, as lágrimas pareciam pedras que caíam pesadas em minhas vestes e então fui beber um pouco de água no rio. Após ver um peixe nadando inocentemente, decidi pegá-lo para saciar minha fome e novamente estava vestida de modo diferente. Agora estava com uma regata preta, cabelos incrivelmente enormes, short militar, coturno de cano alto, uma faca em um dos bolsos e, estranhamente, um desodorante.
Uma luz brilhava dentro de um tronco à frente e senti como se algo me induzisse a abri-lo. Sem pensar duas vezes, levei meu pé ao encontro daquele tronco, que era mais frágil do que parecia. Abriu-se então um buraco e a luz que me chamara a atenção saía de uma carta que, quando fui lê-la, uma voz me interrompeu, era a carta se lendo!
“Olá, senhorita! Seja bem-vinda à loucura! Neste lugar, você encontrará coisas que já conhece, porém de maneira abstrata e complexa. No topo desta árvore há comida, suba. – Falar é fácil, pensei olhando para o topo da imensa árvore – Não se preocupe com as dúvidas, elas são o princípio para a descoberta da razão”.
Sem muito pensar, coloquei a carta em um dos meus bolsos e comecei a subir. Com o tempo fui alcançando altura e me lembrava daquela voz que servia como incentivo. Enfim, cheguei ao topo e me deparei com uma casa aparentemente aconchegante. A noite começou a cair, então abri a porta, acendi a luz e analisei o local; existia apenas um cômodo com um armário, onde havia alguns pacotes de salgadinhos dos quais eu já havia me saciado, uma poltrona, uma sanita e um saco de dormir. Admirei um pouco o céu daquele sonho de criança, tentando esquecer a insegurança e o medo, então me deitei e fui tomada de pensamentos positivos e negativos que fizeram-me dormir naquela noite, mais confusa do que nunca.
Abri os olhos e ainda estava lá, naquela cabana de teto madeirado, marcado pelos raios do Sol que entravam pelas frestas das janelas. Sentei-me na poltrona, vi que havia outra carta e novamente ela se leu.
“Bom dia, senhorita! Eu disse que conseguiria. Seja bem-vinda à casa transporte, abra a janela e verá”.
Corri em direção à janela, quando a abri vi vários prédios do lado de fora. Após virar-me, vi que a casa de madeira havia se tornado um apartamento de cores claras e acinzentadas. Quando saí pela porta, fui batendo de apartamento em apartamento, mas não havia ninguém. Saí então do prédio onde me encontrava e segui até a rua. Havia uma loja chamada “Loiro’s” que estava aberta, entrei e deparei-me com alguns amigos meus. Tentei falar com todos, porém ninguém me ouvia e não conseguia tocá-los, pareciam apenas imagens projetadas. Até que, Carlos André, um de meus amigos mais íntimos, veio em minha direção.
Tentei pedir ajuda, mas ele não me escutava, apenas me empurrava para dentro de um dos provadores da loja. À medida que minhas palavras se tornavam mais sufocantes, ele repetia mais vezes: “Venha, eu tenho seu número. Estava esperando por você”! Ao chegar em frente ao provador calei-me e após virar-me, Carlos não estava mais lá, apenas um colar no chão. Ele tinha uma pedra dourada e um brilho que prendeu meu olhar por alguns instantes. Abri a porta do provador e deparei-me com meu gato, Hog. Embaixo de sua pata havia mais uma carta, peguei-a e quando fui tentar lê-la, já que sempre insistia para se ler, Hog sumiu.
“Olá, senhorita! Seja bem-vinda de novo à casa transporte. Você irá viajar por aqui por bastante tempo, então a aconselho a guardar o que lhe foi presenteado. – O colar, pensei – Boa viagem. ”
Sentei-me dentro do provador apertando o colar, mantendo o olhar fixo em seu brilho. Coloquei a cabeça entre os joelhos, fechei os olhos e, após alguns segundos, me levantei e estava ao lado da poltrona que completava a estrutura da casa de madeira. Estava morta de fome, então abri o armário, peguei alguns salgadinhos e uma caixinha de suco de uva. Avistei sobre a poltrona mais uma carta, porém deixei para lê-la após acabar de comer. Enquanto acabava com minha fome observava a carta sobre a poltrona, pensava se todo esse mundo não era um jogo e então fui ler a carta, ou melhor, escutá-la.
“Isto não é um jogo, senhorita. – Assustei-me – Você está se saindo muito bem e será recompensada. Olhe do lado de fora, sei que irá adorar”.
Deixei a carta cair de minhas mãos, pensei que estava no mundo físico de novo, o mundo real. Porém, após abrir a porta estava em um cemitério, raios cortavam o céu e trovões produziam os efeitos sonoros do local. Sobre um túmulo, feito de granito preto, decorado por uma enorme escultura de anjo e uma lápide com as palavras em latim “carpe noctem”, havia um celular e um álbum de fotos. Sentei-me sobre o túmulo, me sentia à vontade em meio aos restos de outras pessoas.
Liguei a tela do celular e havia um vídeo, coloquei-o para reproduzir, apareceram minhas amigas Isadora, Sályta, Madu e Verônica, elas estavam na Disney! Diziam estar com saudades e logo iriam me ver. Com o término do vídeo a chuva começou a cair, então me sentei em um túmulo que possuía em sua lápide a frase, também em latim: “felix culpa”. Um pé de caju cobria o túmulo da chuva. Comecei a ver as fotos, elas mostravam minhas amigas se divertindo, felizes.
Tentei me conter, mas as lágrimas caíram uma a uma, junto com algumas gotas de chuva, que escapavam das folhas e caíam sobre o álbum e meus cabelos. Olhei para cima para admirar a lua, mas notei que ela estava coberta pelas nuvens e existiam alguns pontos brilhantes nos galhos da árvore. Levantei-me para ver o que tanto brilhava, eram mais colares! De maneira rápida peguei-os e desci do túmulo, a chuva havia aumentado. Corri em direção à casa transporte, que se encontrava parada no centro do cemitério, e entrei às pressas.
Pude então reparar nos colares. Havia quatro, de cores diferentes: rosa, branco, vermelho e roxo. Sobre a poltrona, agora estava uma toalha e algumas roupas. Retirei os trajes úmidos e vesti os secos. Uma jaqueta preta de couro sobre uma blusa branca, uma calça jeans escura e uma bota de cano alto impediam a minha temperatura de se tornar a mesma do ambiente, estava frio. Lembrei-me de que havia deixado o álbum e o celular no cemitério, mas a casa já estava em seu lugar habitual. Coloquei todos os colares dentro de um buraco que havia feito sob o saco de dormir e deitei-me. Por fim, adormeci.
Acordei e ainda continuava naquele lugar. Comi, reparei se não havia alguma carta e então saí. Estava agora em meio à uma floresta de árvores altas e de copa bastante fechada, impedindo a entrada de luz no interior da mata. Comecei a caminhar, mais uma vez, sem rumo. Cheirava terra molhada e a cada barulho que ouvia, aumentava a velocidade dos meus passos.
As árvores foram se tornando escassas, encontrei um morro e comecei a subi-lo. Passei por cupinzeiros, arbustos, animais pequenos e, enfim, cheguei ao topo do morro e me encantei com o que havia embaixo de um deslumbrante pé de amoras. Havia uma garota pequena, com cabelos enormes e marrons, que se movimentavam com o vento; suas vestes eram escuras e ela tocava um piano preto, o som era lindo. Era minha amiga Iara, chamei-a pelo nome, porém ela apenas me olhou, sorriu e sumiu por trás de uma árvore. Em cima do piano, outro colar de pedra negra, como as vestes que ela usava. Apanhei uma flor vermelha e coloquei em cima do piano.
Admirei a vista, o contraste das cores e gritei “Não estou entendendo”! E minha voz ecoou por todo aquele lugar. Um sorriso apareceu no céu dividindo espaço com as nuvens, era de mamãe. O vento soprou e pétalas de flores voaram por todos os lados tapando minha visão. Após o vento cessar, percebi que estava com uma bolsa de franjas e um vestido de florido. Apertei aquele colar e depois o guardei dentro da bolsa.
Após fechar o zíper, ouvi um som que fez-me arrepiar dos pés à cabeça. Era um uivo vindo de um lobo que estava subindo o morro. Nesse instante o céu escureceu e uma densa névoa tomou conta do local. Pensei rápido, olhei em volta, havia um rio há uns dois quilômetros e um local cheios de luzes coberto de árvores. Precisava ir lá, mas estava longe e o lobo se aproximava. Rapidamente peguei a bolsa e cruzei os dedos para achar dentro dela um papel. Por sorte, achei. Aproximei então a minha boca do papel e sussurrei esperançosa: “Aqui quem fala é a senhorita, – à medida que eu falava, as palavras se formavam no papel – mas é claro que você sabe disso, parece saber de tudo. Se aqui as coisas mais improváveis conseguem aparecer e desaparecer você poderia me ajudar! Creio que já entendeu o recado”.
Após acabar de sussurrar, um vento veio e levou consigo o papel. Saí aos pulos, tropeçando nos buracos e em meus próprios pés, tentando agarrar o papel, até que consegui. Após pegá-lo e me virar, para o meu deleite, havia um jipe laranja. Gritei eufórica: “Obrigada”! E entrei o mais rápido possível no veículo. Após fechar a porta, senti o lobo golpear a frente do jipe e, com um salto, acabei passando aparentemente por cima do lobo. Saí o mais rápido que pude, passando por cima do que conseguia, até chegar na então floresta de neon.
Após descer do veículo, notei que a roda dianteira estava coberta de sangue, senti então um calafrio e adentrei à floresta. As árvores possuíam manchas e tocavam músicas eletrônicas. Era impossível não me contagiar com aquele lugar. Mais à frente, vi pelas brechas das árvores o final da floresta. Era um parque!
Fiquei parada admirando o tamanho do lugar quando várias mãos encostaram em minhas costas. Dei um pulo de susto e soltei um grito pavoroso. Mas eram meus amigos Carlos Henrique, Micael, Hugor e Diogo, junto de meu irmão, Marcelo. Lembrei-me que as coisas daquele lugar desapareciam muito rápido, então preferi aproveitar o momento com eles, apenas me divertindo nos brinquedos sem fazer perguntas sobre o lugar. Quando chegamos à casa mal-assombrada, eles me entregaram um colar de pedra azul e deixaram com que eu entrasse primeiro, depois fecharam a porta. Comecei a gritar pedindo para que abrissem, quando uma voz me chamou. Era ele... por um instante fiquei sem voz e ele começou a falar.
“Calma, Amor. Tudo o que existe neste lugar você já gosta ou sonha em acontecer, não é?! – Fiz que sim com a cabeça – Você está em um mundo criado pela sua mente! Você ama tanto criar que criou um mundo onde tudo que tem nele te deixa feliz. Suas vontades, seus sonhos estão nele. Olhe pela janela”.
Olhei e me deparei com um enorme palco de teatro. Estava em estado de choque, não conseguia dizer nada. Ele então pediu para que eu pegasse todos os colares e colocasse em meu pescoço. Então ele me deu um beijo.
Após abrir os olhos, estava junto dele em meu quarto, no mundo físico. Ele olhou para mim, sorriu.
“Psiu” – Fez ele.
E voltou a me beijar.
Afrodite