A menina que quase tocou o céu - parte 1
Sarah mal havia completado doze anos, e seus primeiros traços de mulherice mal tinham começado a aparecer, quando desembestou a ter uma mania de flutuar. Porém, apesar do que o leitor pode estar pensando, não era assim uma flutuação das mais belas não; quer dizer, às vezes era, mas na maior parte das vezes era só uma coisa desengonçada e medonha, tal qual o andar desses cachorros largados aí que a gente vê pela estrada, magros e cheios de sarda. Aliás, se formos mesmo adentrar nessa história de comparação, esses cachorros pareciam realmente muito com Sarah - mas pela magreza, nunca pela feiura. Pois Sarah era, desde criança, muitissimamente agradável de ver: tinha grandes olhos bem verdes, que ninguém sabia de onde tinham vindo, mas o pai jurava que era de um bisavô europeu. Sua pele era uma mistura da cor de pêssego com a cor do mel de garrafa escorrido, e os cabelos eram loiro-escuro, descendo lisos até um pouco antes dos ombros e encaracolando em vários turbilhões imensos, como aquelas ondas que o mar faz em dia de tempestade. O rosto dela era extremamente delicado, e até hoje se discute com qual povo ela mais se parecia: pela cor dos olhos e as sardas diziam que era lá pras bandas frias da Noruega (se bem que ninguém que fala isso jamais sequer pesquisou sobre o tal país, só fala porque acha que o nome combina com a menina); Os traços dos olhos eram meio puxados assim como os dos Guarani, e sua boca rosada era carnuda e bem desenhada, com um puxadinho dos lados que dava à menina um quê de boneca(se o leitor se atentar mais ao desenho das formas e à ideia geral do que elas representam; ao invés de só ficar lembrando das cores das gentes a quem eles pertencem, fica muito mais fácil de visualizar).
Pois bem, a menina era um doce, tanto na beleza quanto nos modos, parecia uma princesa, às vezes era até chato. Quando criança, vivia conversando com todo mundo que encontrava, desde velhinhos até bebês, passando por animais, plantas, paredes, computadores, Sol, Lua, até mesmo se arriscando a falar com um ou outro político. Porém, à medida que foi crescendo, deixou de lado as divertidas conversas que tinha com seus amigos-objetos e passou a se dedicar à preciosa atividade de observar o nada e contemplar coisa nenhuma.
Ora, esse tipo de passatempo pode ser reconhecido como deveras proveitoso, quando, claro, vem acompanhado de total clareza de pensamento: proporciona-nos um maior entendimento do funcionamento do mundo e das relações humanas, através da profunda reflexão que o método traz; e, além disso, nos permite inventar infinitas formas diferentes de ser e agir. Sarah na verdade começou tais práticas com essas premissas, mas antes que obtivesse bons resultados, uma coisa trágica e absolutamente nefasta aconteceu. Na verdade, duas. E coincidiram da pior maneira possível. Foi aí que os casos de flutuação começaram a acontecer.
Um dia, o pai de Sarah, homem austero e trabalhador, entregou a ela um aparelho preto e vermelho, que parecia ter vindo de outro mundo. Tinha-o achado no sótão, junto com álbuns de casamentos, livros de autoajuda e outros diversos objetos adultíficos. Passou rapidamente um pano úmido em sua superfície, deu o objeto à menina. Estava pensando em como seria reconfortante ouvir as dezenas de perguntas de sua filha sobre o que era o estranho objeto, qual era seu uso, qual foi sua importância histórica e social e como tinha vindo parar ali quando foi interrompido por uma voz monótona:
- Que toca-fitas legal, papi.
E voltou pra frente da tevê.
A menina logo se surpreendeu pela diversidade de botões do aparelho: geralmente a tecnologia que conhecia tinha um máximo de três. Admirou-se também com sua rusticidade, seus interruptores duros, e refletiu um pouco sobre como a película transparente de plástico que cobria sua superfície tornava-a mais sociável por mostrar o que ela estava ouvindo ao invés de secreta-la debaixo de senhas e bolsos. Era como se parte da sua alma fosse exposta a todos. Ela quase gostou dessa sensação, e quase se assustou com isso.
Logo devorou todas as fitas da casa, uma por uma. Deleitava-se por ouvir o som que seus pais haviam ouvido na juventude, até sentia um pouco de nostalgia por aquela época, apesar de nunca a ter vivido. O leitor pode considerar esse sentimento totalmente comum, mas para aquela menina tão jovem era algo mágico. Como podia ter saudade de algo que nunca havia presenciado, de coisas que nunca havia possuído?
De repente, um desejo súbito passou pela sua espinha, como uma descarga elétrica, e alojou-se direto em seu peito. Um desejo que, se somado a certos fatores como falta de experiência nos assuntos do coração e excesso de canções de amor dos anos oitenta pode se tornar muito perigoso. E se tornou. Era um desejo primitivo, guardado lá dentro de seu ser, que como uma serpente esperou pacientemente o momento mais oportuno para dar o bote e tomar com toda a força o espírito da menina. Era um desejo nunca antes experimentado, e justamente por isso, impossível de conter ou analisar. E veio como um raio. Era o desejo de sentir.
E, tal qual um veneno dessa serpente, uma intranquilidade desconhecida e um grande vazio começaram a crescer em seu coração, naquele mesmo momento. Lágrimas rolaram de seus olhos, mas ela não sabia o motivo. Resolveu correr, como se estivesse seguindo um instinto de fuga, e correu por toda a pequena cidade onde morava; passou pelos oitis e pelas damas-da-noite com tanta velocidade que quase arrancou suas folhas. Correu, correu muito, correu tanto que seu peito começou a arder, e sua face cor de mel se tingiu de um forte rosa. Seu suor se misturava com suas lágrimas salgadas, e rolava até seu pescoço encharcando seu vestido.
Sarah foi diminuindo pouco a pouco seu passo, e chegando à sombra de uma mangueira, resolveu descansar um pouco sob suas folhas, aproveitando a brisa fresca daquele dia. Encostada no grosso tronco da árvore, respirava cada vez mais fundo, recuperando pouco a pouco seu fôlego. Sarah observou a maneira como luz do Sol entrava pelas falhas na copa da árvore, fazendo detalhes magníficos no chão de terra, e finalmente sentiu uma pontinha de paz. Levantou o olhar. Foi aí que o segundo trágico acontecimento se fez.