Nanazoku - As Crônicas do Grande Vale: Do contato com as Raças Ancestrais

Alguns anos se passaram desde a chegada dos homens ao grande vale. E a região sudoeste foi a primeira a ser habitada e transformada com a presença dos novos moradores. As diversas famílias tinham espaço e amplas terras para o cultivo e a criação de seus rebanhos. E a nova nação já compreendia uma extensa área de ocupação que ia dos contrafortes dos Escudos Rochosos até a orla da Grande Floresta e das Colinas do Vento Cortante às margens do Rio do Sol Dourado passando pelo misterioso Bosque das Cerejeiras. E foi neste lugar, temido e evitado pela maioria, que aconteceu o primeiro contato com os antigos habitantes do vale.

Relatos dizem que por muito tempo Senju Daizo carregou em seu coração tristeza profunda por nunca mais ter visto seu irmão mais novo desde que o mesmo partiu em busca de uma entrada para o grande vale. E por muito tempo também o procurou em terras distantes sem revelar a ninguém suas viagens secretas, mas sem sucesso em encontrar Ymura. Certa vez sem perceber, pois estava mergulhado em pensamentos saudosos, se deparou em frente ao grande bosque de árvores coloridas. De fato o lugar emanava uma aura estranha e profunda que afugentava a maioria das pessoas. Mas, corajoso e determinado como sempre fora, Daizo resolveu investigar a fundo o motivo daquele lugar ser tão diferente e adentrou seu interior até onde ninguém jamais se aventurara. E por muito tempo vagou por entre as árvores e por um solo repleto de folhas caídas até que se viu acometido por uma fraqueza e sono irresistíveis e caiu ao chão no meio de uma pequena clareira localizada profundamente bosque adentro.

Daizo não lembrava por quanto tempo tinha ficado adormecido no meio das folhas, se horas ou dias, mas quando despertou se deparou com a figura mais estranha que seus olhos já viram. A criatura a sua frente era uma mistura de animal, mais precisamente um macaco, com homem e seu olhar transmitia serenidade e força. Aparentava ter idade avançada pois andava curvado e tinha pelos esbranquiçados em sua maior parte. Usava um belo manto verde e segurava um cajado para se apoiar. Sem saber o que fazer diante daquela situação e sem saber se a criatura era hostil ou não, o velho líder procurou inutilmente suas armas pessoais mas não encontrou.

---- Suas armas não estão mais com você e nem serão devolvidas enquanto aqui estiver como meu convidado --- falou pela primeira vez o ser hibrido.

---- Quem é você? O que quer nestas terras? --- indagou Daizo. Por um momento pensou estar mergulhado em algum tipo de pesadelo, mas quanto mais o tempo passava percebia que aquela criatura era real. Se fosse hostil poderia representar perigo para seu povo, principalmente se houvesse muitos outros.

---- Fala como se estas terras fossem suas. A ninguém Mãe-Sol e Pai-Lua deu o controle do mundo. Somos apenas filhos que usufruem das maravilhas que Eles nos concederam. E como nada acontece por acaso, saiba que aguardávamos esse momento chegar. A vinda do seu povo ao vale representou o sinal que nos foi revelado há muito tempo.

---- Já sabia que chegaríamos aqui? Então provavelmente nos vigiou durante muito tempo. Seja lá o que estiver tramando para meu povo, saiba que já devem estar a minha procura. Logo estarão aqui.

Ao ouvir as palavras de Daizo a criatura se aproximou com passos firmes e encarou o humano com olhos poderosos. O líder humano sentiu a força naquele olhar mas não conseguiu desviar a atenção, mesmo que o medo tenha brotado em seu coração.

---- Você enxerga medo e insegurança em meus olhos? Me chamo Akarui, ancião-pai dos Manaras, um dos Senzonosaisho. Há centenas de anos o meu povo e o dos meus irmãos guardam e protegem as árvores e criaturas do grande vale. E há muito também aguardamos a vinda do seu, pois foi dito que os terceiros filhos, saídos de outras terras, aportariam no lugar que chamariam de lar. Portanto, não iguale seu povo, ainda mergulhados no medo, na traição e na violência, àqueles que estão à frente disso. Por acaso entre os seus vocês tem o costume de igualar o conhecimento de crianças e adultos? Na verdade não são os adultos que conduzem as crianças?

As palavras do grande senhor manara tocaram fundo a mente de Daizo. As reflexões surgiram espontâneas diante daquele momento. Akarui falava de profecias e destino a respeito de seu povo. E embora em sua mente pensamentos confusos brotassem, em seu coração algo profundo sabia da verdade nas palavras do ancião manara.

---- Pelo jeito os membros de sua família tendem a pensar demais --- falou Akarui com uma expressão que lembrava um leve sorriso.

---- De fato sou líder de muitas famílias, mas a minha própria não está mais comigo.

---- Você não foi o primeiro dos seus a falar com os guardiões. Em terras distantes um primeiro contato antes deste foi estabelecido. Pois cabe a nós Senzonosaisho, como demanda final de nossas missões, conduzir os primeiros passos dos terceiros filhos em sua nova casa.

E diante da revelação de Akarui, Daizo soube que seu irmão ainda vivia sob os cuidados de outra comunidade de híbridos no leste distante. E mais do que nunca desejou encontra-lo. Mas antes disso era necessário voltar ao seu povo e contar o que havia passado. E um encontro entre as duas raças foi estabelecido por seus líderes no intuito de iniciar uma relação de fraternidade. Além disso, Daizo foi o primeiro humano a pisar na aldeia dos manaras e ficou maravilhado com o que viu.

Passaram-se sete dias desde que Senju Daizo adentrou o bosque das cerejeiras e não mais foi visto. Os membros do povo e o conselho de anciões já discutiam quem seria o mais indicado para substitui-lo. Mas com o retorno do velho líder, os ânimos foram acalmados e muitos ficaram alarmados com a história contada por ele. Houve dúvida e desconfiança sobre os fatos narrados. E não foram poucos os que questionaram se seu líder não tivera a mente quebrada pelo tanto que andou perdido no bosque sinistro. E muitos também não quiseram acompanhar a grande comitiva que partiu do acampamento central e entrou no bosque no intuito de estabelecer o primeiro e histórico contato entre humanos e manaras. E o encontro se deu nas margens de um braço do rio do sol dourado que passa por dentro do bosque, distante quilômetros da aldeia manara.

A partir do primeiro encontro no bosque das cerejeiras, a relação entre homens e manaras se tornou estreita. Embora o povo de Akarui fosse mais recluso nesse contato, pois viam nos novos moradores do vale corações cheios de desejos desarmônicos, era comum visitarem a aldeia central da nação humana e lhes ensinar sobre a utilização da madeira nas construções, sobre o conhecimento de ervas curativas e alimentícias e sobre os animais, seus comportamentos e o devido respeito que deve-se aos mesmos. E por um longo tempo o intercâmbio entre as duas raças foi proveitoso para todos. Mas nem todos viam com bons olhos essa relação pois, fosse por medo, ignorância ou sentimentos de inferioridade, acreditavam que os manaras eram mais uma ameaça do que uma ajuda. E dentre as famílias que defendiam essa visão, a dos Momoke era a mais ferrenha. E das ações de seu líder, Momoke Zanpai, resultaria uma marca profunda entre os dois povos.

Passados vários dias do primeiro encontro com os manaras, Daizo resolveu realizar a viagem para encontrar seu irmão no outro lado do grande vale, cujo paradeiro lhe foi revelado por Akarui. Muitos se dispuseram a acompanha-lo nesta empreitada pois sentiam necessidade de conhecer a amplitude do mundo que agora habitavam como também reencontrar amigos há muito perdidos. E foi assim que, acompanhado por duas centenas de pessoas, Daizo partiu da aldeia central e, ultrapassando as águas do grande rio do sol dourado, adentrou terras nunca visitadas pelo seu povo, a não ser por ele mesmo de forma secreta quando procurava por seu irmão. E agora que sabia a sua localização, seguiu à frente do grupo com muita alegria no coração.

Assim que atravessaram o grande rio, os humanos chegaram a planície abaixo das últimas montanhas que compunha os escudos rochosos, a mesma planície que há muito tempo atrás os Senzonosaisho habitaram e se reencontraram. Sempre seguindo para o leste, o grande grupo liderado por um determinado Daizo, avistou pela primeira vez a mais alta das montanhas cujo pico estava sempre acima das nuvens. E a visão provocou temor e encanto nos corações humanos, pois por mais que nada soubessem a respeito do que provocava aquela fascinação, a velha montanha foi o lugar onde o próprio Pai-Lua criou seu trono de prata e por muito tempo ali sentou observando as criaturas do mundo. E sua poderosa energia ainda podia ser sentida como uma espécie de aura que descia das alturas e chegava às terras abaixo, transportando forças e acalentando os corações, dando-lhes novo ânimo.

A força da montanha era enorme e se não fosse pela demanda ainda não concluída muitos teriam ficado na planície abaixo dela. E esse sentimento, mesmo com a partida para o leste e o posterior retorno para casa, não saiu das mentes e corações de muitos que presenciaram aquele momento. E assim a caravana continuou sua jornada rumo ao leste sempre tendo as montanhas como guia pois receberam a informação dos manaras de que no final delas iriam encontrar outro majestoso bosque, lar de outra das raças ancestrais. Por fim, depois de dias de viagem, atravessando as belas terras desconhecidas do leste, Daizo e seu grupo chegaram às bordas de um imenso bosque, mais denso e escuro que o lar dos manaras. Nenhuma criatura foi vista no local e um silencio pairava ao redor, apenas incomodado pelo barulho do vento. O receio cresceu nos corações de todos diante daquele local e dos possíveis perigos que encontrariam. Mas diante das palavras determinadas e encorajadoras de seu líder, a comitiva adentrou, a passos lentos e cuidadosos, o bosque profundo e antigo. Em meio às árvores Daizo percebeu que era difícil se orientar, mas acreditava que sua entrada não fora despercebida.

O grupo tinha percorrido muitos metros bosque adentro quando se depararam com uma clareira cercada de árvores floridas que chacoalhavam ao sabor vento em movimentos suaves e calmantes. E foi neste local acolhedor que receberam a visita inesperada, como que saída de uma invisibilidade mística, de um grupo de membros da bela e imponente raça ancestral dos Kitsune. E aos olhos dos homens eram seres estranhos e fascinantes. E por mais que já tivessem tido uma experiência anterior no contato com os manara, os kitsune possuíam suas próprias peculiaridades. Assim como o povo do bosque das cerejeiras, esses seres caminhavam com duas pernas e se assemelhavam à raposas, com belas pelugens que iam do marrom claro ao vermelho. Vestidos com roupas coloridas com entalhes em forma de símbolos estranhos eram criaturas esplendidas. E passado o fascínio do primeiro contato perceberam que havia um homem entre os kitsune. Este homem era Senju Ymura, e o mesmo, assim como seu irmão, apresentava os sinais do avanço da idade. E poucos foram aqueles que presenciaram, em meio às lindas árvores, o reencontro comovente dos irmãos há muito separados pelo destino. E a partir dali muito conversaram sobre os desafios e sofrimentos em suas jornadas.

Os kitsune receberam os humanos em sua aldeia. A bela morada fora construída dentro de uma clareira e na encosta de grandes paredões de pedra cobertos de vegetação e flores. E das alturas rochosas escorria veios de água das chuvas que abasteciam um grande lago que jamais transbordava pois sempre era drenado para o seio da terra por passagens profundas abaixo. Cerejeiras de um vermelho claro cercavam as bordas da clareira soltando suas folhas ao vento numa imagem impossível de esquecer. E todo o conjunto daquele lugar transmitia uma paz que ressoava nos corações. E Daizo imaginou que se estivesse no lugar do irmão também se isolaria do mundo naquele local cercado de encantos. O líder dos humanos foi interrompido em seus pensamentos quando seu irmão se apresentou diante dele. Os dois ficaram olhando a paisagem em volta enquanto um pequeno acampamento era erguido para a sua grande comitiva.

---- Difícil não pensar em ficar não é? --- perguntou Ymura como se lesse os pensamentos do irmão.

---- Mesmo diante de tantos lugares pelos quais passei, lugares de grande beleza, jamais imaginaria existir algo assim. Virmos para este vale foi a maior benção que os deuses nos concederam irmão.

---- Sim, como também é uma benção sermos aceitos como irmãos pelos mais antigos que nós. Quando cheguei aqui estava perdido, ferido e doente, mas fui acolhido e curado. Mas me foi dito que não poderia sair daqui até que os meus não chegassem do oeste. E foi essa esperança, e a confiança nas palavras dos kitsune, que me ajudaram a tranquilizar o coração e espera-lo em meio aos novos amigos.

---- E sua espera foi a mais proveitosa entre todas irmão. Cercado de paz e conhecimentos e bons amigos. Eu não deveria ter me atrasado tanto --- os irmãos sorriram alegremente, pois estavam vivos e compartilhando tantas experiências.

---- Sim, paz e conhecimentos --- disse Ymura ---- Então não devemos nos atrasar, pois mais conhecimento nos aguarda no encontro com a honorável Sakusen-sama.

Uma grande cerimonia se deu ao ar livre num ponto onde uma grande e bela árvore cerejeira cresceu majestosa. E todos compareceram na presença da senhora dos kitsune. E apesar do peso dos anos em seu semblante, ainda possuía o mesmo olhar dos primeiros tempos, repleto de sagacidade e força. Ao seu lado outros kitsune montavam uma espécie de guarda de honra e a sua frente, exposto numa pequena mesa de pedra, estava um objeto que cintilava na cor marrom e era do tamanho de um punho fechado. E era difícil desviar o olhar de sua beleza.

---- Há muito tempo atrás foram criados, através do sopro da vida dado por Pai-Lua, os quatro primeiros seres conscientes. E eles foram chamados de Mijikainoshi e percorreram todas as terras do grande vale numa jornada até os confins do mundo no norte de gelo. Acreditavam que sua missão era trazer a luz da Mãe-Sol de volta ao vale, mas ouviram da própria deusa o motivo de sua demanda e a verdadeira missão de suas vidas. A partir desse momento e para todo o tempo passaram a ser chamados de Senzonosaisho, e eles trouxeram os tesouros luminosos ofertados pela grande deusa com a promessa de assimilarmos a luz que emanavam e transmiti-la para os terceiros filhos, aqueles que carregariam essa luz para frente depois de sairmos do mundo. A chegada de vocês da raça dos homens é o sinal que há muito os Senzonosaisho aguardavam. Portanto, inicia-se neste momento uma era de harmonia, se conscientes da responsabilidade os homens forem. E é com seu clã, Senju Ymura, Senju Daizo, que tudo tem início.

E foi assim que os irmãos souberam da existência dos Cristais Elementais, que continham em sua essência as energias dos quatro elementos que compõem a natureza. Souberam também que existia ao total quatro cristais e que estavam em posse dos outros Senzonosaisho em suas respectivos territórios. Em posse dos kitsune estava o cristal Tsuchi e ele ligava seu usuário ao elemento terra, dando-lhe controle. E como tomados por grande fascínio e sede de conhecimento pelo poderoso artefato, os irmãos Senju resolveram ficar o tempo necessário para aprender tudo que lhes fosse possível a respeito de como se conectar com o cristal e extrair suas energias. E Daizo resolveu mandar de volta seu pequeno exército para o acampamento central informando que tinha encontrado seu irmão a tanto tempo perdido e só retornaria quando o mesmo recobrasse suas forças, o que não era de um todo mentira para ele. Em seu lugar ele nomeou o sábio e diplomata Jihu Tetsuzan para liderar o povo.

Passaram-se três anos desde que Senju Daizo e seu irmão Ymura resolveram residir na terra dos kitsune como discípulos de Sakusen-sama. A velha Senzonosaisho lhes ensinou a importância da concentração e da meditação na canalização das energias do cristal Tsuchi. E assim aprenderam a moldar a terra sob seus pés, subindo-a, baixando-a e realizando inúmeros feitos antes impensáveis para qualquer um. E no final dos três anos, os irmãos saíram do Bosque da Fronteira, assim chamado pois suas terras eram o limite final antes de se adentrar as regiões de fora do grande vale, e empreenderam a viagem de volta em posse do cristal Tsuchi. E pelas palavras transmitidas pela senhora dos kitsune, sabiam que estavam destinados unir os quatro cristais Elementais e elevar seu povo a um novo nível de comunhão com a natureza, pois aos terceiros filhos caberia essa tarefa, a de assumir a condução dos destinos do grande vale. E foi com essa honra que mais uma vez adentraram o bosque das cerejeiras e relataram tudo que haviam passado nos últimos anos para o senhor dos manaras. Sabendo que os humanos tinham retornado mais sábios e preparados, Akarui-sama lhes entregou a posse do cristal Ho, aquele que detém a essência do fogo. Mas muita dor e sofrimento advieram dessa demanda devido aos baixos sentimentos que os corações humanos ainda guardavam.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 08/04/2017
Código do texto: T5965202
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