Nanazoku - As Crônicas do Grande Vale: Da chegada dos Terceiros Filhos e da Primeira Separacão

Dos profundos e marcantes acontecimentos ocorridos nas longínquas terras do sul, além dos escudos rochosos, pouco foi transmitido para as gerações futuras, pois não houve registro escrito e aqueles que sobreviveram ao evento natural catastrófico resolveram esquecer o passado de dor e sofrimento para traz. O que se sabe é que, na mesma época em que os Senzonosaisho retornaram ao grande vale, carregando os presentes da Mãe-Sol, as grandes ondas invadiram as terras do sul causando destruição e morte. Esse fato desencadeou um êxodo onde centenas deixaram suas moradas e vidas em busca da sobrevivência longe da devastação. Dessa calamidade nada foi percebido pelos habitantes do grande vale.

A grande hoste de refugiados atravessou extensos quilômetros, enfrentando as dificuldades do clima, a fome e as inúmeras contendas entre indivíduos e grupos, até se depararem com o imenso paredão dos escudos rochosos, a grande cordilheira que separa as terras sulistas do grande vale. Ali resolveram estabelecer morada, numa extensa área que fica entre dois rios, por entenderem ter chegado ao fim do caminho, marcado pelas montanhas. Mas, diferente das terras banhadas pelo mar no extremo sul, a região situada nos sopés da cordilheira compreendia uma imensa planície quase desértica, onde o solo era de difícil plantio mesmo nos locais banhados pelos dois grandes rios que desciam das montanhas. E essa dificuldade só aumentava no inverno, quando a maior parte da caça saia da região e as poucas que ficavam não davam para sustentar o contingente de habitantes.

Era no inverno que as relações entre as pessoas se tornava mais difícil pois não era incomum surgir diversas contendas por disputas pela caça ou por locais onde o solo era mais resistente ao frio e bom para as plantações. E assim, por causa dessas disputas, aconteciam diversas mortes entre indivíduos e famílias inteiras, gerando relações de rancor e ódio que, gerações depois, ainda gerariam consequências. Para apaziguar as disputas que se tornavam cada vez mais sangrentas, espelhando o temor por toda a população, foram criados grupos de pessoas, geralmente os mais velhos e experientes, no intuito de avaliar as disputas e buscar a melhor forma de contorna-las. Mas mesmo com os anciões tentando pacificar a população, era difícil conter pessoas que passavam a maior parte do inverno lutando contra a fome unida aos sentimentos de ódio antigo que só agravavam a situação. E foi assim, por causa dos ressentimentos e acusações que só aumentavam entre as famílias, que iniciou-se o primeiro conflito entre pessoas que há não muito tempo viviam em harmonia às margens dos rios e do mar. E muitos, para fugir da morte, resolveram, num ato de desespero, retornar para suas antigas casas no sul devastado.

A primeira guerra de que se tem notícia durou dias e só teve fim quando um grupo de líderes assinou um tratado de paz entre as vinte e três principais famílias. E foi um desses líderes, Senju Daizo, o mais respeitado e amado entre eles, que começou a alertar e defender uma ideia que para ele era de fundamental importância para a sobrevivência de todos. E sempre falava a respeito do tema nas assembleias.

---- A paz estabelecida pelo tratado foi importante pois estancou o sangramento numa ferida aberta no seio de nosso povo, onde irmãos ceifaram vidas de irmãos. Mas digo a vocês que a ferida abrirá outra vez e o sangue voltará a ser derramado caso não abandonemos estas terras de pouco fruto e pouca caça. Outros invernos chegarão, uns menores e outros maiores, e os círculos de anciões mais uma vez serão criados para evitar as contendas. Mas a fome, a qual todos nós já sentimos na pele, dita regras próprias. E a sobrevivência a qualquer custo é uma delas. Por muitas vezes sonhei com estas montanhas e acredito que além delas existe um tesouro oculto, um lugar muito melhor para todos nós.

---- Não vivemos de sonhos Daizo, vivemos da realidade diária --- diziam alguns membros nas assembleias.

---- Essas montanhas são intermináveis e suas alturas são intransponíveis --- falavam outros.

---- Nosso povo muito sofreu no passado com a vinda das grandes ondas do mar e com a jornada até estas terras. Muitos morreram nesse processo. E você ainda nos pede para fazer uma jornada ainda pior? --- falava o velho Gambata Yeishimitsu, um de seus mais ferrenhos adversários entre as lideranças.

---- Conheço a realidade que vivemos e estive com vocês nas dificuldades que passamos para chegar aqui. Mas vejo esses sonhos recorrentes como um sinal dos deuses nos indicando um futuro melhor. Por favor irmãos, não esperemos que os rigores do inverno nos jogue uns contra os outros de novo, que reacenda antigas feridas de ódio. Eu sei que juntos, como aconteceu no passado, podemos vencer mais esse desafio--- Daizo argumentava com o máximo vigor de suas palavras mas poucos ouvidos as escutavam seriamente. Até que chegou o momento em que ele mesmo resolveu enfrentar a jornada em busca de novas terras e jurou retornar para contar o que viu ou pedir desculpas pela loucura.

Reunindo um pequeno grupo de simpatizantes de suas ideias, Daizo estabeleceu que dois caminhos deviam ser seguidos no intuito de transpor a grande cordilheira. Para isso dividiu o grupo em duas equipes que partiram no sentido leste e oeste. Uma delas liderada por ele mesmo, enquanto que à frente da outra estava seu fiel irmão Senju Ymura. Para Daizo, dividir o grupo em dois daria mais chance de encontrar uma porta de entrada para o outro lado das montanhas, cobrindo toda a sua extensão, seja ela qual fosse. E assim ele partiu numa jornada incerta, mas acreditando que os deuses mostrariam uma saída para seu povo.

Transpondo um dos rios que serviam de fronteira para a região onde seu povo habitava, Daizo e sua comitiva adentraram uma área inóspita, fria e repleta de perigosos animais selvagens que os forçavam a ficar sempre vigilantes, principalmente ao anoitecer, onde era comum a presença de matilhas de lobos ou grandes felinos vagando próximos ao local onde acampavam. E seus arcos e espadas estavam sempre a postos para qualquer ocorrência. Nos dias que se seguiram procuravam racionar os mantimentos o quanto possível, mas chegou a hora em que acabaram e precisaram caçar para comer. Por sorte encontraram conjuntos de pequenas colinas onde encontravam tocas de pequenos roedores que os alimentavam vez ou outra. Mas chegou o momento em que até mesmo essa alternativa parou de existir a medida que avançavam na planície sem fim. E os dias foram passando e certas noites eram tão frias que começaram a procurar abrigo cada vez mais para dentro das encostas rochosas das montanhas. E foi numa dessas incursões que Daizo e seu grupo encontrou um caminho através de um passo entre as montanhas e se deparou com um rio de águas límpidas e ligeiras. Seguindo algo que entendeu como intuição, o líder convenceu a comitiva a seguir o leito do rio pois as águas indicariam a saída daquele labirinto montanhoso.

Corajosamente o grupo de aventureiros seguiu rio abaixo enfrentando os inúmeros perigos e obstáculos que se apresentavam em meio as montanhas. O percurso era repleto de caminhos sinuosos e escorregadios, locais onde deslizamentos de terra eram comum e cachoeiras lindas e traiçoeiras. E por muitas vezes não havia como contorna-las e tinham que descer se equilibrando em paredões de pedra. E foi assim que infelizmente metade do grupo encontrou seu fim no solo abaixo ou levados nas fortes correntezas. Foram enterrados e honrados em túmulos de pedra marcados com o símbolo de suas famílias e que décadas depois ainda podiam ser vistos naquele local. Daizo também adquiriu sequelas de um ferimento na perna que o deixaria manco pelo resto da vida, mas isso não o impediu de continuar o caminho até encontrar a tão sonhada saída da cordilheira. O rio os levou a um grande conjunto de colinas espalhadas numa região semiárida que suas águas banhavam, abastecendo a vida, e seguia adiante para o norte onde, virando para oeste, se perdia de vista. Por muito tempo a comitiva ficou observando a região do alto das montanhas, e a visão aguçada de um deles percebeu a grandes distancias à leste um manto verde que poderia indicar terras mais simpáticas.

O grupo atravessou as colinas, que eram açoitadas constantemente por fortes ventos que levantavam poeira em todas as direções, e alcançou a imensa e verdejante planície do outro lado das montanhas. A visão encheu o coração de Daizo de alegria e esperança de novos dias para seu povo. Sabia que se com seu pequeno grupo a viagem foi difícil, conduzindo uma grande multidão seria ainda pior. Não se demorou muito na bela região e quando realizava os preparativos para o retorno adoeceu devido aos ferimentos na perna e decidiu ficar. Confiou a missão de levar a notícia sobre a nova terra a seu segundo em comando, Omori. Determinou que uma parte da comitiva ficasse com ele e averiguasse que local na região daria as melhores condições para um recomeço ao seu povo. Assim, Omori partiu levando consigo apenas cinco companheiros e atravessou com rapidez as colinas e adentrou os conhecidos vales montanhosos do sul. O caminho era conhecido mas não menos perigoso. E dias depois já estavam transpondo a fronteira de suas terras e foram recebidos com alegria por todos, pois muitos duvidavam do seu retorno ou acreditavam já estarem mortos. Os líderes os receberam e ouviram seus relatos sobre a dificuldade do caminho, a morte de companheiros e o encontro da nova terra e que Daizo permaneceu lá, aguardando a chegada de todos.

---- Graças aos deuses do céu que vocês estão bem e retornaram para nós --- disse um dos anciões do povo ---- Achávamos loucura as ideias de Daizo, mas sua presença e seus relatos são a prova de que estava certo.

---- Que bom que fomos nós que trouxemos as boas notícias que todos aguardavam por tanto tempo --- disse Omori ---- Mas dois grupos partiram há muito tempo. Nada chegou a respeito do grupo de Ymura?

---- Não, nenhuma novidade. Pelo tempo que ficaram longe percebemos que essas montanhas percorrem enormes distancias. Ymura e seu grupo ainda podem estar em viagem para contorna-las. Essa é nossa única esperança em relação a eles.

Na mesma hora Omori soube que seu líder ficaria muito triste se o povo resolvesse partir antes do retorno do seu irmão. Mas sabia, alimentado pelas lembranças, que o caminho era repleto de dificuldades e obstáculos que poderiam atrasar a viagem por dias e semanas. E isso renovou as esperanças de reencontrar Ymura, pois sabia da sua força e coragem.

Durante cinco dias a população realizou os preparativos para a grande jornada em direção ao novo começo em outras terras. Mais uma vez haveria uma travessia difícil e as lembranças da fuga das águas em seu antigo lar no sul ainda estavam nas mentes dos mais velhos. Mas a região em que ficaram por tanto tempo, sempre vigiados pelas imponentes montanhas acima e maltratados pelos rigores da escassez, não daria mais do que sempre ofereceu aos seus habitantes. Já era hora de deixá-la em paz e nisso todos concordavam, mesmo diante do desconhecido da jornada à frente. E assim se sucedeu quando, liderados por Omori, uma grande hoste deixou as terras onde uma nova geração tinha nascido e agora singrava na direção oeste rumo ao novo mundo além das montanhas na esperança de abandonarem de vez o passado cruel.

Longos e pesarosos foram os dias que a multidão atravessou em sua caminhada. O frio e a fome ainda cobrava seu preço e muitos perderam suas vidas assim. Também não era incomum acontecerem conflitos reacendidos por desavenças antigas e nessas horas a violência despontava intensa, sendo necessário por parte dos líderes agirem com firmeza a punirem os causadores da desordem. Enquanto isso Omori sentia cada vez mais o peso da responsabilidade, pois cabia a ele indicar o caminho mais seguro para prosseguir e era o que mais ansiava por chegar ao final da jornada pois temia que as dificuldades severas minassem ainda mais a resistência do povo. Mas constantemente eram forçados a parar e montar enormes acampamentos para o descanso dos mais velhos e das crianças e tratamento dos feridos e doentes. E além disso, Omori sabia que não daria para passar com todo aquele número de pessoas pelos caminhos entre as montanhas. Por isso resolveu se afastar ainda mais para o oeste e torceu para que encontrasse o final da cordilheira onde pudesse contorna-la com segurança. A partir desse momento seria um caminho novo para ele, mas precisava arriscar e completar sua missão.

Por fim suas preces foram ouvidas e finalmente alcançou o final da cadeia de montanhas, visualizando as mesmas colinas pedregosas que avistara do alto muitos dias atrás. E foi nesse momento que, percebendo a região que teriam que atravessar, árida e cheia de ventos, areia e poeira, um grande grupo decidiu que não continuaria a viagem por aquele lugar pavoroso pois por muito tempo enfrentaram o cansaço, as dores e a morte em regiões difíceis. Omori percebeu que seus ânimos tinham se esvaído e não criou objeções neste momento delicado, permitindo em silencio que o grupo dissidente levasse à frente sua própria escolha se assim desejavam. Muitos não foram de encontro aos seus compatriotas porque respeitavam a liderança de Omori e principalmente não queriam atrasar ainda mais a viagem na tentativa de convencer do contrário os que queriam ficar pelo caminho e tentar a sorte longe dos demais. A parte mais significativa da hoste partiu colinas adentro com Omori à frente deixando para trás aqueles que preferiram encontrar outro destino. Liderados por um dos anciões chamado Nakamura Sato, o grupo de pelo menos cinco mil pessoas margeou a região, que mais tarde seria chamada de colinas do vento cortante, e subiu em direção ao norte até encontrarem uma região entre o mar e as montanhas onde estabeleceram morada. E demorou décadas para que esses dois grupos voltassem a se encontrar depois da separação.

Foi com extrema dificuldade, mas a maior parte do povo das terras do sul entrou no grande vale e viram naquelas belas e ricas terras a oportunidade de iniciar um prospero futuro. Tudo ali crescia em abundancia e a caça também era vasta e o primeiro acampamento foi levantado clareando a noite com centenas de fogueiras e cânticos sob as estrelas. E essas canções foram ouvidas a grandes distancias, revelando a presença dos visitantes aos antigos habitantes do vale.

No meio de toda aquela alegria houve o encontro de Daizo com os anciões. E daquele momento em diante jamais duvidaram outra vez de suas palavras e principalmente de sua convicção. Cada líder de família o honrou publicamente na primeira grande cerimônia realizada em agradecimento aos deuses pela vitória diante das adversidades. E sabiam que isso só foi possível graças a coragem daquele que seria nomeado o primeiro “Shidosha”, líder da nova nação unificada que começava seus primeiros passos.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 08/04/2017
Código do texto: T5965128
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