Nanazoku - As Crônicas do Grande Vale: Da jornada dos Senzonosaisho e Do surgimento das raças ancestrais - Parte 04

Seguindo o curso do grande rio nas costas da águia gigante, Yuuki, Miru e Akarui chegaram numa bifurcação às margens de um imponente afluente. Este rio nasce nas montanhas à leste do vale e abastece o grande rio com suas poderosas águas. E foi neste lugar que Washiooki os deixou e retornou às alturas da cordilheira ao sul, pois sua missão era apenas a de reunir mais uma vez os Mijikainoshi separados pelas atribulações do caminho. Passado o momento da despedida, os três viajantes procuraram por Sakusen em toda a região que cobre os arredores no encontro dos rios e a acharam vivendo numa pequena cabana de madeira construída de forma rústica acima de uma pequena colina. A Mijikainoshi raposa já estava vivendo naquela área há muitos dias. E seu pensamento era acumular forças para continuar a jornada, mesmo com o coração pesado de solidão. E sabia em seu íntimo que o caminho para o norte seria ainda mais difícil sem seus irmãos. Mas enorme foi a alegria que sentiu ao vê-los caminhando colina acima em sua direção. E não houve momento mais intenso em emoção do que o reencontro dos Mijikainoshi, pois nenhuma comitiva, nenhum grupo em todos os tempos, foi mais irmanado do que eles. E mergulhados na alegria do reencontro eles dançaram e cantaram sob o céu estrelado agradecendo ao Pai-Lua e a Mãe-Sol pela renovação das forças.

E assim, recobrada a força e o ânimo, partiram os Mijikainoshi, mais determinados do que nunca estiveram, na direção da Luz no norte desconhecido. Subiram o afluente do grande rio e num ponto onde várias pedras cortavam as águas resolveram atravessar adentrando terras novas. Perderam menos tempo contemplando as paisagens e animais, mesmo possuindo belezas diversas, e percorreram um grande trecho de planície aberta até que encontraram mais um bosque por onde adentraram. O local não era tão vasto quanto o grande bosque das folhas coloridas onde encontraram Akarui, mas na sua outra margem os companheiros de jornada encontraram algo tão belo quanto assustador. A luz que vinha do trono de prata já estava menos intensa quando avistaram o imenso volume de água que cobria uma extensão que os olhos, mesmo os de Sakusen, não podiam alcançar. Como um gigantesco espelho cravado no solo do mundo, o lago refletia a luz prateada com imensa beleza. Impossível para os Mijikainoshi, que com todas as coisas e seres ficavam maravilhados em observar, não se admirarem com a visão a sua frente. E assim ficaram, contemplativos, por muito tempo até que Sakusen despertou do transe e foi a primeira a falar.

---- Irmãos. Não há lugar em nossas curtas memórias que supere este em beleza e grandiosidade, a não ser Amenawara, mas não podemos mais perder tempo precioso em nossa empreitada. Mais do que nunca meu coração pede pelo encontro com a Grande Mãe, e quanto mais nos aproximamos do norte mais sinto sua presença. E mesmo que nossos corações e mentes sintam como caras todas as coisas que os olhos veem, partamos com o compromisso de retornarmos depois da missão concluída para os mesmos e outros lugares do mundo no intuito de aprendermos mais e melhor.

As palavras de Sakusen foram aceitas e entendidas com respeito e silencio pelos demais pois foram proferidas com as forças da necessidade e da verdade. O grupo partiu por um caminho que circundava a margem leste do grande lago, entre o bosque e as águas cristalinas. Novas espécies de animais e plantas foram vistas pelo caminho, todas se beneficiando da força trazida pelas águas do lago naqueles tempos. E no final de um dia inteiro de viagem alcançaram a continuação do grande rio, que caudaloso, desaguava no lago, abastecendo-o constantemente. E a medida que seguiam seu curso sentiam mudanças no clima, que foi ficando mais frio e deserto de vida. Mais ao norte, com o ar esfriando cada vez mais, encontraram e atravessaram um rio de águas rápidas e perceberam pela primeira vez uma grandiosa cordilheira de montanhas no horizonte. Todas elas cobertas por um estranho manto branco. Em seus corações sabiam que além daquela muralha natural estava o fim de sua jornada. E todos se encheram de imensa alegria.

Poucos dias depois os Mijikainoshi chegaram aos sopés das montanhas que formavam a grande muralha do norte, que serviam como contenção das massas de ar gélidas geradas nas terras de gelo e neve e deixava o grande vale protegido do frio intenso. Mais uma vez seus corações ficaram apreensivos com a necessidade de escalar as alturas rochosas. E às suas mentes eram constantemente trazidas lembranças do início da jornada, onde enfrentaram os caminhos montanhosos e onde ocorreu a primeira e dolorosa separação do grupo por um longo tempo. Mas os determinados aventureiros não deram ouvidos por muito tempo aos temores e começaram a subida, seguindo sempre a observação sagaz do terreno feita por Sakusen, que tinha um olhar analítico apurado. E todos percebiam que algo entre eles havia mudado depois do reencontro nas colinas às margens do grande rio. Passaram a confiar e a acreditar mais as capacidades individuais dadas a cada um por Pai-Lua. E isso os uniu em respeito fraterno.

Diferente das montanhas do sul, a cordilheira do norte tinha um aspecto ainda mais difícil de ser transposto: o rigor do clima. O vento frio estava sempre presente e era cortante mesmo debaixo da proteção natural de pelos, couro e casco dos Mijikainoshi. A partir de certa altura neve não parava de cair, dificultando encontrar pontos de apoio e trilhas naturais. E constantemente eram forçados a parar e aguardar um pouco de melhora do tempo e poder visualizar o caminho para continuar a subida. Os olhos aguçados de Sakusen foram muito exigidos durante toda a escalada, mas a mesma nunca deixava de avisar aos seus companheiros sobre os trechos perigosos e sempre sinalizava para possíveis pontos de avalanche. E foi assim que os Mijikainoshi alcançaram o topo das montanhas nevadas e as transpuseram com coragem e determinação chegando a um pequeno vale, mergulhado em brumas densas, que escondia em seu seio um lago de grande tamanho, que mesmo diante do imenso frio mantinha suas águas não congeladas. Neste estranho lugar resolveram parar para descansar alguns dias depois da difícil passagem pelas montanhas de neve.

Os quatro Mijikainoshi circundaram o lago e encontraram um estreito entre as montanhas do vale que dava acesso ao outro lado. E ao atravessar essa pequena passagem ficaram diante de uma vastidão branca sem fim. Seus olhos não viram nada no horizonte a não ser poeira de neve e nenhum sinal de vida era visto ao redor por metros e metros de distância. O que parecia ser o último desafio no cumprimento da jornada, também era o mais aterrador às suas percepções. O frio congelante não dava lugar a muitas elucubrações sobre o que fazer e em seus corações não sentiam nenhum desejo de voltar ou desistir da demanda, portanto só restava continuar a caminhada rumo ao desconhecido invernal. E foi assim que fizeram.

----- Chegou a hora derradeira meus irmãos --- Miru falava alto na tentativa de suplantar o ruído dos ventos ---- Por muito tempo nos foi dada a graça de nos guiarmos pelos olhos e ouvidos, mas agora devemos enxergar pelo coração e pela vontade que carregamos de finalizar nosso objetivo. Sempre acreditei que a grande Mãe nos vigiou durante a longa jornada e nos deu forças para continuar. E ainda mais agora, na hora mais difícil e confusa, ela quer que avancemos em meio a escuridão branca ao encontro de sua luz dourada. Nossos guias serão os olhos da alma. Confiemos neles irmãos!

Por longas horas caminharam os aventureiros pela planície interminável de neve e gelo. E por mais que em suas mentes estivessem determinados a avançar, seus corpos já davam sinais de esgotamento e fraqueza diante do frio mortal. Cobertos de neve, sem saber direito por onde seguir e com sensação de congelamento até os ossos, começaram a achar que realmente iriam sucumbir diante das agruras do tempo. Mas uma lufada repentina de ar cálido lhes deu a força necessária para retomar a caminhada. E seguindo esse estranho vento vindo do oeste encontraram o improvável: um rio, que assim como o lago no pequeno vale, não tinha suas águas tocadas pelo gelo. Suas águas eram mornas e reconfortantes e os Mijikainoshi agradeceram por encontrar esse oásis cálido em meio ao deserto branco. E só depois de devidamente aquecidos é que os quatro viajantes perceberam que o clima na região em volta do rio não era somente acolhedor, mas também límpido a ponto de se enxergar longas distancias a frente. E foi assim que avistaram o imenso colosso de rocha a quilômetros, quase tão grande quanto o próprio horizonte.

A majestosa montanha se estendia até quase tocar o céu de tão grande. E os Mijikainoshi viram que o rio de águas mornas descia vindo da montanha carregado de calor. E perceberam que o calor daquele lugar era totalmente alheio ao que o frio severo do norte jogava contra ele. Era um calor intenso, cheio de vida. Um calor sobrenatural. Naquele momento souberam que se tratava do calor vital da Grande Mãe. Sua missão tinha chegado ao fim depois de incontáveis dias de caminhada. Haviam encontrado a morada da portadora da luz dourada, que escolhera um palácio nos confins do mundo tão grandioso quanto a própria Amenawara do trono de prata.

O caminho pela margem do rio foi tranquilo e sem pormenores. Ao chegarem à base da imensa montanha os membros da comitiva viram uma cachoeira que descia de enorme altura pela encosta e havia derretido toda a neve e gelo ao longo do seu percurso. Intuíram que teriam que escalar seguindo o curso das águas até seu ponto de origem. E assim que chegaram ao final da subida encontraram uma entrada esculpida na rocha por onde água que abastece o rio abaixo escorria com força. Essa gruta era a entrada de um túnel que levava às entranhas da montanha, e os Mijikainoshi não tiveram receio em explorá-lo em sua busca pois seus corações palpitavam intensamente sentido a presença da deusa em seu interior. Percorreram um pequeno labirinto de túneis escavados na rocha difíceis de serem transpostos tranquilamente por causa do constante fluxo de água, cada vez mais intenso, que por todos eles passava. Mas encontraram um grupo de passagens acima dos túneis de água que davam para o salão no interior da montanha. E guiados por uma luz dourada que se intensificava a medida que subiam, os aventureiros avistaram o salão dentro da montanha. Salão este com a extensão de um pequeno vale e escavado nas entranhas da terra. E no meio deste vale interno existia um lago, quase tão grande quanto o das águas prateadas ao norte do grande rio e aparentando grande profundidade. Todo o lugar era iluminado por uma luz tão intensa e ao mesmo tempo tão acolhedora que fizeram os Mijikainoshi se ajoelharem em profunda reverencia. Um temor também se apoderou de seus corações diante daquela visão pois era grandiosa demais e eles só queriam ficar parados em contemplação.

“Não temam meus filhos. A jornada foi longa mas alcançaram seu objetivo iniciado no outro lado do mundo. Desde que saíram de Amenawara passaram e sentiram toda sorte de adversidades e emoções. Enfrentaram dores, solidão, desânimo, como também conheceram belezas em todo canto. Desde o início estive com vocês em meus pensamentos, acompanhando-os, protegendo-os e ao mesmo tempo permitindo que as dificuldades do caminho os ensinasse a viver. Portanto chegaram aqui fortalecidos e preparados. Venham a mim.”

Mais doce que o canto dos pássaros e mais intensa que o rugido do trovão era a voz de Mãe-Sol, que reverberava por todos os lados no gigantesco interior da montanha. Os Mijikainoshi atravessaram o imenso lago por um caminho de pedras que brotou na superfície das águas, que também emanavam um brilho dourado vindo de suas profundezas. E prostraram-se diante do radiante trono da deusa solar. Sua luz trespassava seus corpos e almas e era de grande intensidade mas não feria seus olhos. Tão alta quanto um carvalho, a deusa estava sentada num grande trono de rocha cravejado de pedras brilhantes de várias cores que refletia sua luz dourada em todas as direções num espetáculo de beleza. Ela estendeu a mão aberta até os Mijikainoshi revelando quatro grandes pedras que emanavam intensa luz nas cores vermelha, azul, verde e branca. E logo depois falou de novo.

“Como recompensa pelo objetivo dos seus corações alcançado lhes concedo estes presentes. Neles estão contidas uma parte da essência do mundo e suas diversas manifestações. Um presente que ao mesmo tempo se converte em destino, pois lhes trará conhecimentos que não devem ficar apenas com vocês. E agora se estabelece a verdadeira demanda de suas vidas. Serão chamados a partir de agora de Senzonosaisho, os Primeiros Mestres. E essa será a luz que levarão da montanha Hoonoke, a luz do conhecimento. Pois a minha própria luz e a de Pai-Lua, em pouco tempo, serão vistas do ponto mais alto do céu, muito acima que qualquer montanha. Portanto, os deuses não mais serão vistos fisicamente no mundo mas estarão sempre iluminando os passos daqueles que souberem, qualquer que seja a dificuldade, olhar para cima. Levem, aprendam e ensinem o legado dos deuses para aqueles que ainda virão. Assim será do meu agrado que façam para que haja harmonia entre a terra e os meus filhos. E não estarão sozinhos nessa demanda, pois o tempo os fará envelhecer e os tirará do mundo, mas o conhecimento sempre precisará de guardiões e isso caberá aos de sua raça. Portanto, serão mestres dos terceiros filhos, que virão de outras terras, assim como de seu próprio povo.”

Os Senzonosaisho gravaram no fundo de suas almas as palavras de Mãe-Sol como o compromisso de suas existências. E depois de um tempo ainda desfrutando das energias curadoras da luz, partiram da montanha gelada de Hoonake e retornaram ao lar no grande vale, levando consigo uma experiência que jamais se repetiria com nenhum outro individuo ou grupo em todos os tempos.

Anos depois da volta dos Senzonosaisho ao grande vale aconteceu de Mãe-Sol e Pai-Lua partirem do mundo, como a deusa havia revelado no interior de Hoonake. O maior dos espetáculos jamais visto por olhos mortais se deu quando se transformaram em duas esferas de energia dourada e prateada e subiram aos céus a medida que intensificam seu brilho. Como sempre nutriram e nutrirão amor por todas as coisas que saíram de seus pensamentos criadores, resolveram ficar numa posição intermediária entre o mundo físico e a morada celeste. Assim nasceram o sol e a lua, que por toda a eternidade revezam-se para que, seja dia ou noite, nunca deixem o mundo sem luz.

Neste momento, em pontos específicos do grande vale, os Senzonosaisho, já experientes conhecedores dos elementos, aguardavam a eclosão dos casulos que continham os membros do seu povo, aos quais também transmitiriam seus conhecimentos e os guiariam como guardiões do mundo. E assim nasceram as Raças Ancestrais.

Foi também nesta época, quando os deuses subiam ao céus como belos astros de luz, que um poderoso sinal foi interpretado por aqueles que viriam. E foi assim que, seguindo a luz, os humanos iniciaram sua jornada.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 07/04/2017
Código do texto: T5963739
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