Nanazoku - As Crônicas do Grande Vale: Da jornada dos Senzonosaisho e Do surgimento das raças ancestrais - Parte 03

Alheios ao fato fantástico ocorrido com seus irmãos, Akarui e Sakusen chegavam ao topo da montanha e vislumbravam a imensa cadeia montanhosa que se estendia ao sul formando um conjunto extraordinário e intimidante de rocha e gelo, como também as terras além da grande cordilheira. E ficaram estupefatos com a paisagem abaixo das montanhas, que revelavam incontáveis extensões de terra verdejante e desconhecida, que olho algum conseguiria alcançar em sua totalidade. A partir daquele momento souberam que seria grande a demanda da sua jornada. E muito desejaram que seus irmãos separados pudessem contemplar o que viam. Mas deixando a tristeza de lado, em atendimento ao pedido de Yuuki, Akarui e Sakusen começaram a analisar o melhor caminho para a descida ao desconhecido em busca do grande rio que os levariam à deusa-sol.

Os dois aventureiros iniciaram a descida e enfrentaram mais uma vez as agruras do mal tempo constante e os íngremes e escarpados caminhos que utilizaram pela encosta. E em nenhum momento que permaneceram nas montanhas, desde o início da jornada descendo pela grande Amenawara, a natureza foi benevolente com eles. E mais uma vez foi necessário parar por diversas vezes a caminhada para refazer as forças e analisar o melhor caminho a seguir em meio a neve e as armadilhas naturais que apareciam constantemente. A partir dessas experiências tão difíceis nas alturas do mundo, os Mijikainoshi passaram a nutrir grande respeito pelas montanhas, pois sabiam que apesar das dificuldades, separações e dores, eles se desenvolveram muito em resistência, na mente e nas emoções. E foi agradecendo com essas reflexões que Akarui e Sakusen venceram a encosta montanhosa e tocaram seus pés nas terras do norte, sentindo seu solo macio e seu calor acolhedor. Nunca tinham visto tamanha diversidade de plantas e árvores desde que saíram de Amenawara. Nem mesmo no Bosque Oculto viram nada igual. E o encontro com numerosos de seus irmãos animais, que curiosos acompanhavam a passagem dos estranhos visitantes, encheram seus corações de alegria. E o contato inicial dos Mijikainoshi com a fauna do Grande Vale foi pacífico e duradouro. Mais uma vez desejaram muito que Yuuki e Miru estivessem com eles naquele momento. E olhando para as grandes montanhas à suas costas, agradeceram ao Pai-Lua por terem vencido os tortuosos caminhos de gelo e neve e agora poderem vislumbrar tamanha beleza pessoalmente.

Mas em seus corações sabiam que não podiam, mesmo fascinados com tudo que viam pelo caminho, demorar na contemplação. O objetivo primordial de suas vidas clamava em suas almas a todo instante: o encontro com a Mãe e o retorno com uma parte de sua luz. Isso sabiam pois a bela vastidão das novas terras não trazia paz a seus corações inquietos de urgência. A melancolia que pairava no ar, também sentida no comportamento de animais e árvores, era um forte sinal de que a luz dourada da grande mãe, que ainda encontrava-se distante no longínquo norte desconhecido, era necessária para trazer de volta a alegria e a vitalidade. Os dias não eram tão claros como há tempos atrás. E a luz do trono de prata de Pai-Lua, mesmo em toda sua intensidade, não iluminava o grande vale em sua totalidade. Nesta época muitos locais distantes viviam mergulhados numa penumbra constante e neles habitavam plantas e animais mais selvagens e perigosos.

Tomados pela demanda da missão, Sakusen e Akarui continuaram a caminhada por muito dias em meio a uma vasta planície até que resolveram parar num determinado ponto, embaixo de uma bela árvore de folhas vermelhas, e preparar o local para o descanso. No meio da madrugada, graças a sua aguçada audição, Sakusen foi despertada por um ruído que não tinha percebido antes. E foi assim que, guiada pelos sentidos da híbrido raposa, a dupla de aventureiros encontrou o imponente curso de água que atravessa o grande vale em toda sua extensão. Esse foi o primeiro contato com o grande Rio do Sol Dourado, nome que lhe seria dado posteriormente.

O trecho do rio que os dois Mijikainoshi encontraram compreendia os últimos quilômetros antes de suas poderosas águas encontrarem a grande cordilheira ao sul e atravessá-la por um sinuoso vale em direção à terras desconhecidas. Por muito tempo Akarui e Sakusen ficaram admirados com a força e beleza das águas do grande rio a ponto de estabelecerem morada por alguns dias. Durante esse tempo gostavam de percorrer a margem e ouvindo o barulho da água corrente, principalmente nos momentos de maior calma, fizeram amizade com muitos animais e ficaram admirados com as muitas espécies de peixes que vinham encontrá-los em pequenas lagoas rasas formadas pelo recuo das águas. E numa de suas costumeiras caminhadas, Akarui saiu sozinho, deixando Sakusen dormindo, e percorreu vários metros olhando para o rio até que algo nas terras do outro lado chamou sua atenção. Pensou como aquilo tinha passado despercebido por ele. O que viu na distante margem oposta foi um imenso conjunto de árvores que, em meio a luz prateada do dia, emitia uma leve miríade de cores através de suas folhas. E essa imagem ficou gravada no coração e na mente de Akarui e ele desejou conhecer como nenhum outro que já vira em sua viagem. E tomado por uma coragem nutrida pelo forte desejo, resolveu atravessar o rio.

Por um momento, ao entrar nas águas frias e sentir pela primeira vez sua correnteza, Akarui duvidou se poderia enfrentar o poderoso rio. Mas seu desejo era mais forte e assim ele prosseguiu afundando o corpo nas águas cada vez mais. E por mais que utilizasse sua excelente agilidade corporal para nadar, ao chegar na metade do caminho sentiu suas forças acabando. Tomado por um medo que crescia em seu coração Akarui pediu ao Pai-Lua numa oração em alta voz que o ajudasse naquela hora difícil. E como por milagre ele sentiu seus braços, pernas e logo em seguida o corpo inteiro ser sustentado por grandes peixes que o levaram a outra margem a salvo. Ao tocar a terra firme caiu de joelhos, olhando para Amenawara no horizonte distante, e agradeceu fervorosamente pelo salvamento inesperado. E voltando-se para trás adentrou o lugar das mais belas árvores em todo Grande Vale, e seu encantamento foi ainda maior.

Assim que sentiu a falta do companheiro, Sakusen saiu à sua procura e por muitos dias gritava seu nome sem obter resposta. Cansada e triste, chorou por vários dias a falta de Akarui e o terrível destino que mais uma vez a fazia sentir a dor da separação, da perda. E desta vez sem ao menos saber o que acontecera com seu amigo e companheiro. Mas dos quatro Mijikainoshi era Sakusen a mais capaz em analisar as situações em meio à crises. E assim, colocando a razão para suplantar as emoções, decidiu continuar a jornada sozinha seguindo o grande rio em direção ao norte. Mas antes falou em voz alta, carregada de indignação:

---- Ó grande Pai-Lua, senhor do trono de prata! Por muitos desafios eu e meus companheiros passamos juntos desde que saímos de sua morada nas alturas --- à medida que falava sentia uma força tomando seu corpo e mente fazendo-a tremer, uma energia que a ajudava a expressar em palavras o que estava sentindo ---- A mim reservou o maior deles, que foi presenciar a partida dos caros ao meu coração de várias formas. Mas se com isso pretende testar minha resignação e vontade em concluir minha missão, saiba que se quiser que eu caia terá que mandar dores maiores. E as que vier eu as carregarei comigo e as depositarei aos pés da grande Mãe como prova da minha determinação.

E assim partiu Sakusen para terminar a missão que movia os Mijikainoshi em seu âmago. Por longos dias caminhou sem parar, sempre tendo o grande rio como guia, até desfalecer de cansaço numa bifurcação com outro curso d’água. E por muito tempo inerte ali ficou.

Mas tudo que acontecia no mundo naqueles tempos chegava aos ouvidos de Pai-Lua. Enquanto estivesse sentado em seu trono de prata conseguia ouvir, ver e sentir a longas distancias pois não apenas seus olhos e ouvidos eram extremamente aguçados, mas também seu coração estava ligado a todas as criaturas do vale. E por ter participado na criação dos primeiros seres, possuía forte ligação com eles, percebendo-os de forma profunda. A jornada dos Mijikainoshi sempre foi acompanhada por seus mensageiros, que tudo reportava ao trono de prata. E não seria diferente no momento mais difícil.

Há pouco mais de um mês Pai-Lua tinha recebido aos pés do trono de prata sua maior mensageira: Washiooki, a líder do clã das águias gigantes. Ela trazia em seu dorso dois dos Mijikainoshi que não prosseguiram na jornada. Passados todos esses dias, o sofrimento e o desanimo tinham sido extraídos com o toque vital do senhor de Amenawara. Yuuki e Miru estavam prontos e ansiosos para retornarem aos seu destino e reencontrarem seus amados irmãos. E reverentes, agradeciam mais uma vez.

---- Não existem palavras que possam expressar meu agradecimento, ó grande Pai-Lua --- Miru estava ajoelhada com as mãos unidas em profunda emoção. Ao seu lado Yuuki escutava atentamente ---- Se não fosse a sua poderosa luz eu não teria retornado ao mundo do vivos.

---- Seu entendimento não é completo minha filha --- falou Pai-Lua com sua poderosa voz. Estava sentado no trono e emitia sua luz prateada que impedia os olhos mortais de enxergar sua face e perceber qualquer tipo de detalhe em seu corpo. ---- Você nunca retornou porque de fato não partiu. Agradeça ao irmão a seu lado, que abandonou a jornada para honrá-lo, e à velocidade de Washiooki, que singra os céus como nenhuma outra ave. Eu apenas concluí o que eles começaram. Mas o tempo de refazimento de forças terminou e vocês precisam retomar a jornada. E assim como chegaram também partirão, nas asas da grande águia.

Miru e Yuuki uma vez mais montaram no dorso de Washiooki e desceram pela encosta de Amenawara. Mas mesmo à distância, escutaram a voz de Pai-Lua em suas mentes.

“Quatro partiram e quatro devem retornar. É assim que ainda enxergo o caminho de vocês, pois vejo a uma distância que ninguém pode ver. Mas isso pode ser modificado somente por si mesmos. E não esqueçam dos que estão mergulhados na ilusão e na dor”

A líder das grandes águias do céu singrou com velocidade as terras que separavam Miru e Yuuki dos seus irmãos que há muito não viam. Olhando para baixo viram as extensas paisagens do grande vale repletas de vida e movimento e ficaram admirados. Segurando forte nas grossas penas de Washiooki sentiam o vento passar ligeiro e poderoso enquanto atravessavam a imensa planície no centro do vale, como também o grande rio e os bosques diversos. E ao perceberem que desciam em direção a um grande bosque intuíram que tinha chegado ao seu primeiro destino. E foi assim que iniciou-se a busca por Akarui.

Longa foi a busca por entre as árvores cujas folhas eram repletas de cores e vida. Em suas lembranças Yuuki e Miru nunca tinham visto nada igual. E para os Mijikainoshi as coisas novas tinham um profundo impacto em suas mentes e corações. De fato era um lugar repleto de beleza e que facilmente poderia tê-los encantado se não fosse pelas palavras de Pai-Lua e o forte desejo de encontrar seu irmão. Mas justamente no momento mais difícil da procura, quando já estavam cansados e perdidos em meio as árvores, veio uma ajuda inesperada na forma de um grande grupo de macacos de várias espécies. Os animais os guiaram até uma clareira bem afastada onde encontraram a figura de Akarui deitado, coberto por folhas e mergulhado na inconsciência. Surpresos, Yuuki e Miru notaram que também estavam sendo acometidos por forte sonolência. E foi Miru que observou que a causa do entorpecimento estava nas folhas das árvores, e que de alguma forma os macacos que os observavam curiosos não sentiam os efeitos. E retirado daquela perigosa área do bosque, Akarui despertou horas depois sem ter a noção de que tinha ficado dias inconsciente e que seus irmãos vieram das alturas de Amenawara para resgatá-lo.

---- Vejo que o que me pareceu pequenos momentos em meus sonhos, na verdade tinha se passado muito tempo no mundo real --- falou Akarui.

---- Sim --- disse Yuuki ---- Por muito tempo também foi nossa busca por você neste bosque. Este lugar guarda uma beleza encantadora e perigosa. Por pouco eu e Miru também não ficávamos presos pela armadilha invisível nas folhas.

---- Me lembro que o dia estava mais escuro quando entrei pela primeira vez neste bosque e que as cores e o brilho prateado vindo de Amenawara refletia de forma intensa nas folhas. Chegou um momento em que não conseguia mais pensar corretamente até que me vi completamente perdido. Logo em seguida, quando adentrei uma parte do bosque senti uma vontade irresistível de dormir. A partir deste momento só lembro de abrir os olhos e os ver com muita alegria.

---- Este lugar nos traz uma lição importante meus irmãos. Lembremos dela. --- disse Miru. A tartaruga abriu os braços para chamar atenção e olhava ao redor para as árvores do bosque ---- Existem muitos lugares de grande beleza no mundo. E não por acaso o Senhor do trono de prata nos enviou nesta grande jornada. Poderíamos atravessar as imensas terras do mundo no dorso das grandes águias do céu e pousar aos pés da Mãe no norte longínquo. E se assim fosse chegaríamos vazios daquilo que só o percorrer do caminho pode oferecer: experiência. E é através dela que agora sabemos sobre os diversos tipos de perigos para almas despreparadas. E a beleza é um deles.

---- Mesmo assim não devemos desanimar jamais, pois temos a mão de Pai-Lua a nos guiar de diversas formas. E a prova foi a ajuda essencial que recebemos dos irmãos animais habitantes deste bosque. Desde aquele momento eu soube que o trono de prata nos conduzia --- as palavras de Yuuki trouxeram à mente de Akarui lembranças dos seus sonhos.

---- Foi exatamente sobre esses pequenos animais que meus sonhos foram povoados. Não apenas os macacos deste bosque estavam em meus sonhos, mas também tartarugas, sapos e raposas. Agora vejo, todos eram imagens imóveis, diferentes e ao mesmo tempo iguais a nós mesmos Mijikainoshi. Senti que esperavam algo acontecer.

---- Então deixemos que o tempo nos diga como acontecerá --- falou Miru.

Os três Mijikainoshi partiram e encontraram Washiooki aguardando às margens do bosque. A grande águia os levou pelo ar na direção do quarto e último membro da comitiva.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 06/04/2017
Código do texto: T5962775
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