Nanazoku - As Crônicas do Grande Vale: Da jornada dos Senzonosaisho e Do surgimento das raças ancestrais - Parte 02

Os Mijikainoshi também deram nomes a si mesmos de acordo com o aspecto mais evidente que percebiam nas personalidades uns dos outros, e com o qual mais se exprimiam em voz e ação. E assim o híbrido macaco passou a chamar-se Akarui, o alegre, pois dos quatro era o mais empolgado com o novo. Miru, a observadora, foi o nome dado à tartaruga pois era a que mais se detinha na contemplação e entendimento das coisas e na serenidade da fala. Por sempre ir à frente na exploração e na proteção dos caros ao seu coração, o sapo foi chamado de Yuuki, o intrépido. Por fim veio a de pensamento rápido e solucionador chamada Sakusen, a estrategista, pois em sua mente a raposa tinha mais facilidade para analisar e traçar soluções. Esses nomes representavam muito o que sentiam em si mesmos e a forma como interagiam com os companheiros de jornada, ofertando o que tinham de melhor e gerando um conjunto de habilidades que viriam a ser importantes para o sucesso da missão.

Não existia local que os viajantes parassem por muito tempo pois a curiosidade sempre os movia para novas áreas, novos lugares, novas experiências. Apenas Miru apreciava com mais anseio porque entre todos era a que mais se voltava para a observação e percepção aprofundada. E os frutos desse traço de sua personalidade geraria para as futuras gerações conhecimentos preciosos. Mas no correr dos vários dias que permaneceram na região, que passaram a chamar de Bosque Oculto, os Mijikainoshi tiveram os primeiros e proveitosos contatos com seus meio-irmãos animais. E não havia receio ou medo entre eles no começo, embora os híbridos fossem cautelosos na aproximação pois o alerta de Pai-Lua estava gravado em suas mentes. Mas a relação rapidamente se tornava de confiança e não foram poucas as vezes que houve parceria para a realização de alguma tarefa. E sempre que eram chamados, os pequenos animais do bosque, em sua maioria composto de pássaros, pequenos mamíferos e alguns répteis, atendiam com presteza.

Quanto mais caminhavam e exploravam o bosque oculto, encantados com as formas de vida e a paz silenciosa que reinava no lugar, a ponto de pensarem em residir definitivamente, os Mijikainoshi encontraram a borda oeste do bosque e se depararam com uma vasta área descampada limitada ao longe por uma cadeia de montanhas. E por um tempo ficaram ali parados, mergulhados numa mistura de medo e contemplação. O bosque às suas costas ofereceu por longos dias um abrigo acolhedor onde encontravam farta disposição de alimento e água, abrigo e nenhum perigo. Esses fatores os fazia refletir sobre a real necessidade de sair da segurança do bosque oculto e enfrentar as incertezas de terras distantes. Diante desse dilema resolveram se instalar na orla do bosque e lá ficaram por dias sem saber o que decidir. E foram a mente e o coração de Sakusen, sempre voltados a vencer desafios, que despertaram os membros da comitiva de seu torpor na dúvida. E enquanto seus irmãos de jornada conversavam e expressavam suas opiniões a respeito do porquê não ser sensato enfrentar o desconhecido, Sakusen ficava por muitas vezes observando o horizonte e analisando a paisagem montanhosa longe à sua frente. E em meio a uma longa discussão entre seus irmãos, ela se posicionou diante deles e falou.

---- Se um dia resolvermos ir naquela direção --- disse apontando para as montanhas que cercavam toda a região a oeste do bosque ---- acredito que sei como podemos passar por aquelas elevações e descobrirmos o que há além.

Sua voz silenciou a conversa em volta da fogueira e todos olharam para Sakusen com olhos inquiridores e feições confusas. As reações foram diversas. Yuuki deu alguns passos em silencio na direção das montanhas. Akarui levantou-se também e fez o caminho oposto na direção do bosque. Apenas Miru permaneceu sentada com a cabeça baixa, pensativa.

---- Não foram só seus olhos que observaram aquela formação rochosa à nossa frente Sakusen. Também as contemplei e percebi que elas transmitem uma mensagem que você não conseguiu entender irmã --- Yuuki olhava para as montanhas e depois virou-se para a raposa e apontou para a distância em todas as direções ---- O Grande Ser sobre a montanha esteve a todo tempo falando conosco através deste lugar. As montanhas que nos cercam transmitem uma mensagem de proteção, não de desafio.

---- Isso mesmo irmão. Compartilho seu entendimento --- falou Akarui. O mesmo estava encostado numa árvore a poucos metros e mastigava algum tipo de fruta ---- Olhem a nossa volta e percebam que este é o melhor lugar onde poderíamos estar. Vencemos a grande montanha do mundo numa descida tenebrosa e o grande ser em seu trono brilhante nos recompensou com este lugar de paz.

---- O que quer dizer irmão? Não entendo --- disse Sakusen

---- Alegre-se irmã, pois não haverá mais necessidade de avançar. Temos tudo de que precisamos aqui --- disse Akarui, que carregava em seu semblante um sorriso constante ---- Essa é a vontade do grande ser. De que fiquemos protegidos neste refúgio. Não é maravilhoso? --- falou enquanto subia rapidamente no galho de uma árvore e se pendurava equilibrando-se pela cauda.

---- Mas por que o grande ser nos quer aqui se temos a possibilidade de explorar outras terras? De nos instalarmos em outros lugares de grande beleza e fartura? --- Sakusen se sentia confusa diante das poderosas e eloquentes palavras dos irmãos. Muito do seu ímpeto tinha se esvaído.

---- Porque somos únicos e preciosos. E toda semente precisa da proteção da terra para florescer --- respondeu Yuuki, caminhando para voltar a sentar-se em volta da fogueira ---- Entendeu agora Sakusen? Por que sairíamos do bosque?

---- Porque temos um propósito --- respondeu Miru. A híbrida tartaruga tinha levantado a cabeça e abrido os olhos depois de um longo tempo mergulhada em seus pensamentos. ---- Tolos fomos por nos permitir afastar dele esquecendo nossa verdadeira demanda. E se a chama desse propósito ainda arde em nossos corações, levantemos agora e saiamos, antes que a vaidade e o medo nos tome por completo. Somos únicos sim pois somente a nós foi dada a capacidade de completar a jornada que iniciamos. Mas o verdadeiro tesouro não residi em nós mesmos, mas sim na luz da deusa que devemos trazer para essas terras.

As palavras de Miru soaram como a água fria que afasta a sonolência. Seus companheiros notaram o quanto estavam perdidos em devaneios racionais e haviam quase se desligado da verdadeira missão e do tempo que corria. Sentiram que os desafios do mundo não eram apenas externos, mas que os mais perigosos podem brotar de dentro do próprio coração, quando mergulhado em receios e contemplações excessivas. E tomados de novo ânimo, despediram-se de alguns animais que constantemente os acompanhavam e partiram a desbravar a planície a frente rumo aos limites do pequeno vale. Pouco depois, a cadeia de montanhas que avistavam ao longe do bosque se colocava a diante, os desafiando como uma barreira entre eles e a continuidade da jornada. As montanhas que circundavam o pequeno vale em que estava encrustado o bosque oculto faziam parte do gigantesco conjunto de elevações rochosas chamadas de Escudos Rochosos. Essa imensa cadeia montanhosa é a barreira que separa o grande vale das terras distantes do sul e se estende de leste a oeste em vários quilômetros, e tem em Amenawara seu ponto mais ao norte e seu maior pico. Formado por montanhas antigas, os escudos protegem o grande vale do rigor das fortes tempestades carregadas pelas massas de ar vindas do oceano ao sul, já que as correntes geladas vindas da grande planície branca ao norte encarregam-se de abastecer as chuvas necessárias para o equilíbrio nas terras do vale.

No início a escalada não fora complicada, pois as terras aos sopés das montanhas eram cobertas por uma mistura de plantas, areia e pequenas pedras que ajudavam na subida, oferecendo diversos pontos de apoio para os pés e as mãos. Mas logo depois surgiram os primeiros pontos onde a rocha nua aparecia e necessário era a utilização constante da força e habilidade para encontrar os melhores saliências e apoios para escalar, sendo assim por todo o percurso acima. Suas habilidades físicas foram testadas ao máximo, como também se desenvolveram como nunca, fruto da luta pela sobrevivência em meios às alturas. E essas poderosas habilidades naturais os tornaram inigualáveis em sua época.

Liderados por Sakusen, que muito confiava em sua percepção analítica do terreno e no que já havia observado desde a saída do bosque oculto, o quarteto adentrou por um passo elevado repleto de rochas pontiagudas, onde deslizamentos de pedras eram constantes, e lá enfrentaram perigos de morte, comparados apenas à época da descida da grande Amenawara longos meses antes. E foi numa dessas trilhas sinuosas que aconteceu o pior momento da subida quando ao perder o equilíbrio, por ser a mais lenta nos reflexos, Miru despencou montanha abaixo, caindo vários metros no vazio. E uma profunda tristeza abateu-se sobre o grupo, a ponto de desistirem de continuar, quando perceberam que não mais veriam a querida amiga outra vez. Mas foi Yuuki que, tomado por um impulso de decisão, resolveu retornar e encontrar o corpo de Miru, deixando a Akarui e Sakusen a responsabilidade de continuarem avançando.

---- É muito arriscado o que você pretende irmão --- alertou Sakusen ---- O vazio em nossos corações pode ficar ainda maior se perdermos você também. Mas se for definitiva sua escolha, nós iremos juntos, pois juntos devemos permanecer.

---- Isso mesmo --- concordou Akarui.

---- Não --- retrucou Yuuki. E sua expressão era de imensa seriedade ---- Maior do que nós é nossa missão. E se já estava na mente do grande ser que quatro iniciariam mas apenas dois terminariam a jornada, assim será. A missão não deve ser abandonada, como também o corpo de Miru não deve ser deixado aos abutres. O encontrarei e o levarei ao topo da grande montanha para que o grande senhor no trono de prata possa mais uma vez moldar sua criação e refazê-la, se assim for de sua vontade.

As palavras de Yuuki estavam carregadas de tamanha coragem e sabedoria que os demais não ousaram questioná-las. Embora sentissem a partida do segundo e mais corajoso membro da comitiva, sabiam que deviam continuar e, contagiados pelo ímpeto do honrado híbrido sapo, ergueram-se e recomeçaram a escalada. Yuuki os observou por um tempo até que desapareceram por uma trilha acima. E voltando os olhos para o abismo abaixo, iniciou sua descida mortal. E assim separou-se a comitiva dos Mijikainoshi num final inesperado. Não voltariam a se encontrar por muito tempo.

O valente Yuuki desceu a encosta da montanha em direção ao passo logo abaixo com incrível velocidade. E não demorou muito para que sua percepção aguçada encontrasse Miru. O corpo da híbrida tartaruga estava caído de costas e inerte numa saliência rochosa. E grande foi a dor de Yuuki ao ver sua amiga-irmã desfalecida à beira de um precipício. Muitos ferimentos cobriam seus braços e pernas e cabeça expostas, mas a carapaça natural estava intacta pois era de grande resistência. E antes de dar início a viagem de retorno a Amenawara, Yuuki, mergulhado em lágrimas, orou ao Pai-Lua pedindo força e amparo nesta hora sombria.

“Ó Senhor das Alturas. Do topo do mundo, sentado no seu trono radiante, sei que a tudo observa. E que nada escapa aos seus olhos que a tudo vê e ao seu coração que a tudo sente. Não sei se posso sustentar as palavras ditas aos irmãos de jornada pois o desânimo toma conta de mim. Meu coração está quebrado em três partes. Por não continuar a missão que me incumbistes, por me separar dos queridos ao meu coração e, principalmente, por ter em meus braços a irmã tão amada e a mais sábia entre nós. Não consigo conter as lágrimas, a dúvida e a fraqueza. Dá-me um sinal que me fortaleça e que me ajude no retorno ao lar”

Assim, mergulhado em profundo sofrimento, Yuuki ouviu batidas de asas ao longe em meio ao silencio da montanha que o cercava. E a imagem que se formou diante dos seus olhos encheu seu coração de alegria, esperança e confirmação. Um majestosa águia gigante surgiu em meio aos paredões rochosos e pairou logo acima do ponto onde estava, sustentando-se no ar com o poderoso bater de suas imensas asas. A belíssima criatura, embaixadora do trono de prata, mensageira do Pai-Lua, sustentou o olhar por uns instantes nos dois pequenos Mijikainoshi logo abaixo e depois pousou numa base rochosa a alguns metros da dupla. A grande águia fechou as asas e abaixou a cabeça. E Yuuki, entendendo o sinal, pegou o corpo de Miru nos braços e saltou o espaço que os separava do imenso animal e subiu às suas costas, aninhando-se juntamente com o corpo da amiga nas fortes penas. E assim alçou voo a mensageira de Amenawara levando consigo de volta metade da pequena comitiva que partiu há alguns meses da grande montanha.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 06/04/2017
Código do texto: T5962739
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