Nanazoku - As Crônicas do Grande Vale: Da jornada dos Senzonosaisho e Do surgimento das raças ancestrais - Parte 01

Quatro casulos formados de terra, água e madeira de carvalho se tornaram câmaras onde quatro pequenos animais, que responderam à convocação de Pai-Lua e desafiaram corajosamente a subida ao cume de Amenawara, dormiram profundamente por sete dias e sete noites e onde passaram por intensas transformações em seus corpos, mentes e corações. Dessa mudança, ao termino da pequena hibernação, resultou o surgimento dos primeiros representantes do povo híbrido do Grande Vale. E seus corpos já nasceram aptos para movimentos ágeis e graciosos e fortes para resistir aos desafios que o mundo imporia e na jornada que logo enfrentariam, a qual tanto desejavam no fundo dos corações.

Sobre as transformações pelas quais passaram em suas estruturas não lhes adviria nenhum tipo de surpresa ou estranheza. E isso Pai-Lua incutiu em suas mentes, como herança da essência animal que residiria em seu íntimo para sempre, para que, assim como seus irmãos animais, sempre estivessem ligados à vida do mundo e dela assimilassem todo o aprendizado sem formular questionamentos sobre o porquê das coisas mas sim integrando-se a elas. E no saber das criaturas e lugares, e na comunhão harmoniosa com o mundo, ninguém se igualaria.

Pai-Lua observava atentamente o romper dos casulos dos quais saíram o fruto da sua força criativa. E não havia angustia em sua mente, por ter estabelecido algo que não estava na linha de acontecimentos para o início do mundo, pois o que fora criado não seria perene mas sim uma dádiva momentânea àqueles que teriam a missão de trazer uma parte da luz da Mãe-Sol para os habitantes do grande vale. Seria uma forma de apaziguar a saudade e estreitar a distância entre a tão amada deusa e seus filhos. Mas em seu interior Pai-Lua sentia surgir uma inquietação a respeito de como seria a reação da deusa-irmã quando se deparasse com o resultado de sua iniciativa.

Embora tenham aceitado com naturalidade a nova estrutura de si mesmos, conforme estabelecido por vontade superior, o mesmo não se daria em ralação ao mundo externo. Assim, quando abriram os olhos, os quatro novos habitantes do grande vale viram, da altitude de Amenawara, um vasto e belo mundo de formas, cores e movimento. E com olhos repletos de curiosidade observavam tudo a sua volta e abaixo enquanto que ao mesmo tempo crescia dentro de seus corações a vontade de fazer parte de tudo aquilo, de tocar, cheirar, ver de perto, interagir. Mas, mergulhados no torpor inicial de contemplação, não perceberam que algo mais belo do que a paisagem os observava com olhos de alegria. E assim que perceberam a imensa figura, alta como um carvalho, sentada no magnifico trono de prata, caíram por terra encostando suas testas no chão de rocha fria. Não conseguiram fixar por muito tempo aqueles olhos de imensa profundidade. E por algum tempo apenas escutaram o silencio da montanha, que só foi interrompido quando Pai-Lua se ergueu e caminhou até eles, e suas passadas eram poderosas e causavam temor em seu corações. Pai-Lua sentou-se diante deles e falou com palavras de carinho.

---- Não precisam temer minha presença meus pequenos. Ergam os olhos e vejam aquele que, com muita alegria, lhes concedeu os dons que agora desfrutam e que os tornam, mesmo que por um tempo determinado, únicos em todo grande vale. E se forem bem sucedidos em sua empreitada, serão conhecidos e reconhecidos para muito além do seu próprio retorno às origens --- Pai-Lua falava assim pois, no fracasso ou na vitória, os híbridos retornariam às formas concebidas nos primeiros pensamentos.

---- E o que somos, ó grande ser? --- questionou o híbrido tartaruga. E suas palavras foram as primeiras a serem pronunciadas por uma criatura abaixo dos deuses-irmãos. Foram palavras carregadas de inteligência e compreensão, pois assim foram concebidos e aprendiam com enorme rapidez o que precisavam.

---- A partir de hoje e pelo tempo que durar serão conhecidos como Mijikainoshi, os antecessores temporários, pois nasceram para um único propósito que é saciar o anseio dos seus e dos corações de seus irmãos em todo o vale. Para isso irão até os confins gelados do mundo e trarão a luz da esperança direto da fonte. E ela será o primeiro e maior tesouro a aparecer nestas terras.

---- E que fonte é essa, ó grande ser, tão distante? --- teve curiosidade o híbrido raposa.

---- Vocês sentem mas não a conseguem nomear pois nunca nesta nova forma tiveram contato com ela. Mas digo que essa luz vem daquela que, junto a mim, gerou as formas, cores e movimentos que contemplam maravilhados. Nas terras silenciosas de frio eterno Mãe-Sol aguarda sua visita. Vão ao seu encontro e falem das coisas que viram e ouviram, e do propósito de sua jornada.

Ao ouvirem falar de Mãe-Sol os quatro híbridos romperam em lágrimas que não conseguiam conter, pois em seu íntimo explodiu uma saudade que antes não haviam acessado e que agora, mais do que nunca, gerava a vontade de desbravar as vastas terras do mundo. E o ânimo crescente em seus corações os faziam pensar que nada poderia se opor ao seu objetivo. Mas Pai-Lua, percebendo o furor de alegria em seu íntimo, falou com palavras de alerta.

---- Não pensem que somente de bons momentos será feita sua jornada. Muitos desafios lhes serão impostos pelo grande vale. E ele os testará a todo instante. Chuvas, calor, bosques profundos, grandes florestas, vastos rios, morros, cavernas escuras e montanhas ameaçadoras serão seus obstáculos a tentarem impedir o sucesso da empreitada. E ainda assim essas não serão as principais barreiras ao sucesso. Seus próprios irmãos animais imporão sobre vocês o maior de todos os desafios, pois muitos não os reconhecerão e os tratarão como perigosos inimigos. Lembrem que para o mundo serão uma novidade. E como toda boa novidade geralmente não é bem vista, vocês também não serão bem vistos por muitos. Portanto, perdoe-lhes a ignorância e cativem seus instintos.

---- Assim faremos, ó grande ser, custe o que custar --- falou com coragem o híbrido sapo, erguendo-se logo em seguida.

---- Sim, assim faremos, pois sinto que também de muitas alegrias será composta nossa jornada --- falou sorridente o híbrido macaco. Um sorriso que contagiou a todos.

---- Haverá alegrias sim --- falou Pai-Lua enquanto caminhava até a beira do topo da montanha e observava o grande vale com olhos que enxergavam a longas distancias ---- Mas a maior de todas as recompensas será o próprio mundo e o que ele tem a oferecer para suas jovens e curiosas mentes. Vão e percorram seu vasto lar, pois se aprende mais com o início e meio da jornada do que com o fim em si. Portanto, observem, interajam, reflitam sobre as coisas que virem e ouvirem e não temam os desafios. O apoio chegará, seja entre vocês mesmos ou externamente. E mais, mantenham a unidade pois ela os salvará.

Logo após ouvirem as palavras de incentivo e alerta do grande ser de luz prateada, os Mijikainoshi sentiram que era o momento de perfazer os primeiros passos que os levariam ao encontro da Mãe-Sol. A pequena comitiva, já manifestando o natural desejo de desbravar e conhecer o que lhe fosse possível, resolveu começar a descida de Amenawara pela sua face sul, que era mais fria, escarpada e traiçoeira em suas trilhas perigosas. E isso só perceberam quando se afastaram da presença de Pai-Lua e de sua luz aconchegante que a tudo aquecia a sua volta. Mesmo assim tudo era novo e belo aos olhos dos viajantes, pois ainda não conheciam a dor em seus corpos e o medo em seus corações. E já nos primeiros passos da descida perceberam, nos primeiros obstáculos do caminho, o quanto o mundo era bonito e desafiador.

A grande Amenawara, ao lado de Hoonoke nos confins gelados do norte, são as maiores elevações de terra do mundo conhecido. E poucos em toda sua história de longos séculos ousaram desafiar suas alturas, mas coube aos Mijikainoshi a honra de serem os primeiros a realizarem essa proeza, isso muito devido às suas capacidades físicas, mais desenvolvidas que seus parentes animais, unidas à inteligência que os permitia traçar táticas e estratégias como também se utilizarem de ferramentas extraídas do próprio ambiente. E foi assim que a primeira das comitivas enfrentou o gelo e a neve da grande montanha, suas trilhas sinuosas, a escuridão das noites sem estrelas, os dias de pouco calor, o cansaço e a comida escassa. Mas seus corações ainda se mantinham animados pois do alto da grande montanha vinham mensageiros na forma de belas e grandes aves do céu, incluindo as poderosas águias vermelhas, sempre indicando o melhor caminho a seguir com seus gritos que ecoavam ao sabor dos ventos. E a visão desses lindos seres alados aquecia seus corações no terrível frio das inúmeras noites passadas em abrigos, tendo como proteção apenas suas peles, escamas e pelos. E sabiam que a presença protetora do grande ser da montanha os protegia do alto, e isso os animava a cada passo, a cada obstáculo vencido nos primeiros e difíceis momentos da jornada.

Apesar de terem corpos cobertos por pelos e pele que serviam como excelente proteção, em muitos locais do mundo ajudavam pouco ou quase nada como barreiras ao clima rigoroso. E a grande montanha de Amenawara era um desses lugares extremamente desafiadores. Se não fosse pela ajuda das águias de Pai-Lua os Mijikainoshi não teriam logrado êxito na descida da íngreme elevação e fracassariam logo no início do caminho. Foram muitos os momentos onde tiveram que parar e utilizar saliências na rocha ou pequenas cavernas para se protegerem das fortes ventanias carregadas de frio intenso. E por outras tantas vezes as pequenas trilhas, que margeavam o abismo abaixo, se transformaram em verdadeiros convites e uma queda silenciosa e mortal. E não foram poucos os momentos onde tiveram que se valer das capacidades físicas recém adquiridas para se livrarem de perigos. Infindáveis dez dias foi o tempo necessário para vencer a poderosa montanha e tocar finalmente o solo do vale. E a medida que iam se aproximando já percebiam que o clima e a paisagem eram mais amenos e convidativos e avistaram com mais clareza uma bela floresta cercada ao longe por um conjunto sólido de montanhas.

Assim que pisaram no solo pela primeira vez, os quatro viajores perceberam toda a beleza das árvores logo a frente. A face sul de Amenawara desemboca num pequeno vale cercado por montanhas e margeada por uma pequena floresta. Para os Mijikainoshi a descida penosa de Amenawara lhes deu a primeira e desafiadora experiência sobre os desafios do mundo, que podem quebrar corpos e mentes menos preparadas. Mas o grande vale também é repleto de lugares de grande encanto que possuem o poder de apaziguar e revigorar os ânimos cansados. E o pequeno bosque acolhido dentro do pequeno vale ao sul da grande montanha é um perfeito exemplo. Ao adentrarem a vegetação, repleta de belas e espaçadas árvores e solo coberto por um mar de folhas secas, os visitantes perceberam que o lugar era calmo e por muitas vezes emitia um silencio profundo. E a calma só era quebrada quando se ouvia o som distante de pássaros junto ao farfalhar das folhas provocado pelo vento. E foi assim que os olhos repletos de curiosidade da pequena comitiva de híbridos vasculharam cada parte da primeira paisagem que viram. Pedras, árvores, plantas, folhas, pássaros, flores, riachos e pequenos animais foram tocados ou observados com cuidado e admiração. E tudo era belo aos olhos dos Mijikainoshi. A estadia no bosque durou muitos dias e despertou nos visitantes algo novo em seus corações. E debaixo de uma árvore de folhas amarelas realizou-se a primeira reunião entre eles. Além das percepções sobre o que viram e ouviram na montanha e em meio ao bosque acolhedor, todos sentiam a necessidade de registrar em suas mentes tudo o que tinham vivido e o que viriam a viver. Assim, passaram a nomear as coisas e lugares pelos quais passavam. E esses nomes atravessariam o tempo como um legado dentre outros que deixariam marcados no mundo.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 06/04/2017
Código do texto: T5962727
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