Os Templos Perdidos - Capítulo 1
A cabeça estava doendo bastante.
Tentou se levantar ainda com a visão turva. Percebeu logo o que havia ocorrido.
Cambaleando de início, começou a correr em direção ao seu aposento, mas com certeza já era tarde.
“Eu deveria ter sabido... fui lento demais. Agora já é tarde. ”
Algumas pessoas estavam no caminho mas logo dispersavam quando Kian passava às pressas com a espada na mão direita. Em certo momento, chegou a esbarrar em um mendigo que estava jogado pela rua mas nenhum dos dois se importou com o ocorrido.
Subiu as escadas que davam acesso a porta de madeira e para a sua pouca surpresa, a porta estava destruída, não apenas quebrada. Dentro do quarto, roupas jogadas no chão, as almofadas esmigalhadas e um cesto revirado. Velas haviam caído de seus suportes da parede e algumas cortinas estavam rasgadas.
Não, não estava mais lá. Nem o invasor e nem a caixa.
“Ele queria a caixa... porquê? Tudo que ele precisava era da caixa. Uma caixa sem abertura e com escrituras estranhas. Um ser que sabia que a caixa estava comigo e falando palavras estranhas... ”
Kian embainhou a espada lentamente e caminhou até a janela. Lá fora se via uns pombos gordos perambulando pela praça e um leve vento frio movimentou os cabelos castanhos e compridos.
“Não adianta mais... seja lá o que fosse aquilo, perdeu-se. “
Ele arrumou novamente as coisas que estavam fora do lugar e contemplou os destroços da porta. Não sabia o que fazer mas a curiosidade que ele tinha dentro de si sobre aquele artefato agora havia se multiplicado por um milhão.
O ar estava quente mas nuvens pesadas mostrava que talvez o dia já se iniciasse com chuva, o que seria excelente devido ao calor que fizera nos últimos dias. Talvez a temperatura ficasse um pouco mais agradável se chovesse.
Kian ficou parado por um instante apenas tentando entender o que havia ocorrido. O objeto claramente não significava nada para ele mas parecia ser muito importante para o ladrão. Ele já vira alguns enigmas anteriormente, mas como aquele era algo bastante novo. Seus olhos marrons se fecharam por um momento e então ele se lembrou.
Aquela figura encapuzada, aquele místico elemento da noite e da madrugada que vagueia pelos arredores da cidade, Kian já o havia visto antes. Sim, algumas vezes, talvez.
Pessoas com capuz pretos ou coloridos, com chapeis ou carecas, tranças e tatuagens no rosto, roupas de seda e longos bigodes penteados, entre diversos outros tipos, são bastante comuns em todos os reinos. Era bem provável que Kian já tinha avistado o ladrão anteriormente em algum local, mas onde?
As vezes isso ocorria mesmo. Na realidade vê-se de tudo mas não presta-se atenção em nada, até que um resquício de memória é ativado para salvar a pátria. Normal.
Kian abriu novamente os olhos e começou a traçar um planejamento como se sua vida dependesse disso. Pôs em segundo plano suas tarefas como novo soldado do Exército de Legorian e sentiu-se um pouco estúpido por ter sido atingido com tanta facilidade.
“É por isso que você nunca se integrará a Companhia Fantasma... “
A partir de então, durante as próximas três semanas ele permaneceu com seus exercícios e treinamentos, assim como continuou a realizar as missões que o governo o exigia que fizesse, mas em todo o tempo livre vagava pela madrugada tentando encontrar qualquer um que andasse sob um capuz preto.
Chegou até a encontrar um ou outro mas ao interroga-los com algumas simples perguntas já claramente percebia que havia errado o alvo.
Voltava sempre no mesmo ponto e percebeu então que estava começando a ficar obcecado pelo objeto perdido.
Certa vez estava em uma taverna escura durante o começo de uma madrugada que seria bastante longa.
A chuva caia forte e os olhos de Kian estavam atentos para qualquer movimento suspeito. Estava sentado bebericando alguma coisa não muito comum em Legorian.
- Você está perdendo seu tempo. Eles não podem ser encontrados a menos que queiram. – disse uma voz rouca vindo de uma mesa na lateral da taverna.
Kian ao ouvir aquilo logo se levantou e desembainhou a espada. Alguns olhares foram atraídos mas poucos se importavam para o que ele iria fazer.
A taverna não ficava localizada exatamente ao centro da cidade e se chamava A Laga. Quem a frequentava geralmente eram viajantes que vinham de lugares bastante distantes e agora que o Campeonato de Kaluar já estava se encerrando, o local costumava ser mais habitado por bandidos do que pessoas de bem.
- Não será necessária sua espada, pelo menos agora. – disse o homem pelas sombras.
Kian não foi submisso.
- Quem é você? – respondeu.
- Me chamam de Ba’les e venho de Astal para te explicar algo.
Um momentâneo silêncio pairou pelo ar que só foi finalizado quando uma risada mórbida e doentia do outro lado da taverna foi acompanhada de um trovão.
- Não o conheço, Ba’les, e não creio que temos assuntos em comum.
Aquele que se chamou por Ba’les então pareceu dar um sorriso na escuridão.
- Talvez seja mais prudente você se sentar. Os Estranhos estão longe daqui e a menos que seu cavalo seja mais veloz que a ventania da chuva, hoje você não os encontrará mais.
Kian não precisou de explicações para saber que os Estranhos, conforme Ba’les explicou, era justamente o ladrão encapuzado.
Ba’les então acendeu um fósforo e mais três velas deram mais luz a mesa que ele estava sentado. Kian pôde ver que o homem era alto, forte e tinha uma grande cicatriz no rosto. Os cabelos pretos e lisos estavam um pouco engordurados e ao seu lado havia um bastão descansando.
“Escola do Bastão em Astal... há tempos que não encontro ninguém de lá. E se estiver mentindo? Não tem como. É um soldado também que serve o governo assim como eu, mas nas belas ilhas de Astal. Interessante. “
- Saiba, Kian, em Astal aprendemos praticamente as mesmas coisas que vocês da capital aprendem, mas nas artes da madeira – deu dois tapinhas com a mão direita no bastão – algumas práticas são mais valiosas.
O guerreiro de Legorian ainda tinha certas dúvidas sobre o tal do Ba’les, mas decidiu comprar a conversa e se sentou no banco da frente após embainhar novamente a espada. Ambos se encararam por alguns segundos e então Ba’les voltou a falar.
- Imagino que deve estar curioso.
- Curiosidade é uma palavra bastante presente na minha vida ultimamente.
Ba’les de uma leve risada, olhou para o lado e novamente encarou Kian.
- A quanto tempo você os procura? – disse Ba’les.
Kian não sabia exatamente se ele estava se referindo ao homem encapuzado chamado de Estranho, principalmente pelo fato de Ba’les ter perguntado no plural.
- Então há mais de um? Creio que há três semanas e meia.
- Sim, há bem mais que um. – respondeu.
- O que são eles?
- Não sei se eles é o termo adequado para se referir àquilo.
Mais risadas e barulhos de copos brindando do outro lado da taverna. O taverneiro passava lentamente um pano encardido no balcão, o que na verdade deixava somente mais sujo como o restante do local. A luz das velas que bruxuleavam pela mesa era fraca, mas suficiente e por um pequeno período de tempo, Kian chegou a se questionar se estava tendo uma alucinação ou não.
Não estava e Ba’les continuou com a voz um pouco mais baixa após beber um longo gole de cerveja clara.
- Eles são chamados de Estranhos por quem não os conhece realmente. São criaturas que foram feitas para um fim específico.
- Encontrar caixas misteriosas pelo mundo inteiro? – indagou Kian.
Novamente uma pausa entre os dois.
- Você também não sabe o que é aquela caixa, sabe?
- Eu... imagino que tenha algo dentro dela. Mas... bem, não sei o quê.
Ba’les parecia saber bastante do que estava acontecendo nos últimos dias, assim como parecia já ter conhecimento que a caixa havia sido roubada e logo Kian começou a suspeitar do sujeito.
“Ele é o encapuzado, com certeza. “
O pensamento deve ter saído um pouco alto demais, pois Ba’les deu uma gargalhada que chamou a atenção até do dono da taverna.
- Se eu fosse um Estranho, eu não poderia degustar esta cerveja meu caro... Eles não são humanos, são criações feitas para a caça. São mais animais do que um puma.
- Caça? Então por que não me mataram?
- Você não tem valor algum – deu uma risada de canto novamente – mas o objeto que você possuía é muito importante.
Kian continuou atento às palavras de Ba’les pois de algum modo ele sabia que um enviado da Escola de Astal e provável defensor do reino não viria até Legorian somente para tomar uma cerveja em uma taverna escura nas margens da capital.
- Você tem me vigiado.
- Sim, eu tenho. E você precisa ser um pouco menos orgulhoso de pensar que acaba de se formar no Secundário e já é um guerreiro histórico de Legorian.
- Eu não disse que sou. – respondeu secamente.
- Mas age como se dissesse. Um soldado defensor de seu reino jamais pode ser atacado pelas costas. Isso poderia causar a derrota em uma guerra, apesar que Astal e Legorian costumam não serem inimigas ultimamente.
Aquela conversa estava tomando um rumo desnecessário, mas Ba’les tinha razão e por isso Kian ficou calado enquanto ouvia a porta da taverna se abrir e fechar logo após a passagem de dois homens.
- Agora ouça-me com atenção garoto. Por muito tempo os seres que vivem neste plano questionam a natureza da nossa existência, assim como sempre buscaram encontrar meios de sobreviver às custas da escravidão de outros. Agora, eles querem praticar.
- Não estou entendendo.
- Eu sei. Irei te explicar no caminho, aqui não é seguro.
- No caminho? Onde vamos?
- Depois. Aqueles dois sujeitos que acabaram de entrar tentarão nos matar assim que eu me levantar.
Então Ba’les se levantou rapidamente e Kian não havia terminado de processar a última informação quando um dos homens atirou uma espécie de faca em direção a cabeça de Ba’les. Com um gesto bastante rápido, o soldado de Astal abaixou-se e por pouco não o atingiu. Somente com a mão direita, ele fez um movimento longo usando o bastão que atingiu um dos homens na têmpora, derrubando-o desmaiado.
- Porta dos fundos, dois cavalos. Rápido. – disse Ba’les para Astal.
Kian compreendeu a mensagem. Rapidamente pulou pelo balcão e chutou com a sola do pé esquerdo a porta de madeira que se abriu facilmente. Os outros taverneiros agora se assustavam com o súbito movimento que começara e ficaram logo quietos.
Antes que o outro homem pudesse sacar a espada, em mais um movimento de agilidade, Ba’les girou a arma e desta vez passou uma rasteira no assassino, que caiu gravemente no chão no exato momento em que Kian aparecia na entrada da taverna sob a forte chuva montado em um cavalo branco e segurava as rédeas de um outro garanhão preto. Assoviou, Ba’les rapidamente saiu e montou no cavalo.
Antes que Kian pudesse fazer qualquer questionamento, Ba’les já colocava velocidade na cavalgada sabe-se lá para onde fosse.
A chuva atrapalhava bastante a visão, mas não necessariamente chegava a incomodar. Kian pensou por um momento que estavam sendo perseguidos e algumas olhadas por cima do ombro não foram suficientes para determinar se realmente estavam ou não. Não havia muita civilização próxima e somente um velho rancho de madeira foi visto próximo de onde já estavam.
Após vinte minutos de rápida cavalgada, Ba’les parou de repente e o cavalo derrapou na lama. Estavam entrando em um bosque bastante denso e Kian tinha algumas dúvidas sobre aquele local. Mais alguns quilómetros e estariam saindo da capital e entrando nos polos rurais. As árvores eram altas com grossos troncos e razoavelmente espaçadas.
- Chegamos. Aqui já estamos seguros.
Ba’les desceu e amarrou as rédeas num galho de árvore, orientado Kian a fazer o mesmo.
Enquanto Kian fazia o que era mandado, Ba’les tirou um archote de uma bolsa e acendeu uma tocha forte que com o auxílio da proteção pelas copas das árvores conseguiu manter-se acesa perante a chuva.
Kian teve que correr um pouco para acompanhar os rápidos passos de Ba’les, mas logo avistaram uma pedra bastante grande que provavelmente estava servindo de referência.
- Por aqui. – indicou.
Ali poderia ser ouvido o barulho de alguns animais que mais para dentro do bosque reinavam em paz e sinalizavam que não gostariam de ser incomodados, mas ainda estavam próximos da entrada da cidade e portanto não se via nada além de troncos de árvores e escuridão.
Ba’les começou a passar os pés sobre as folhas molhadas do chão, provavelmente procurando por algum acesso e não demorou para encontrar. Ele puxou uma fina corda e logo se revelou a porta de um alçapão.
Com um sinal, Ba’les entrou e orientou que Kian entrasse também logo depois e fechasse a portinha por dentro.
A escada era muito longa, talvez tivesse mais de duzentos degraus e todo o caminho foi percorrido em silêncio por ambas as partes.
Quando finalmente atingiram o chão, uma surpresa: um pequeno túnel resultava em um salão gigantesco. No salão, cujas paredes eram todas forradas de madeira havia inúmeros objetos, desde armas até redes de pesca. Havia estátuas de pedra, carroças, pilhas de tecidos velhos e lençóis, bastões e escudos.
Kian não pode se conter e soltou um leve ar impressionado.
- Bem-vindo ao antigo quartel general secreto de Astal na Guerra Numérica.
- Não acredito! – Kian percorria o olhar para cima a para baixo, archotes em todas as paredes deveriam ter sido aceso por Ba’les um pouco antes ou mais alguém estava ali.
A Guerra Numérica foi uma antiga guerra que travou-se entre três reinos, Razagul e Astal de um lado e Legorian de outro, de forma que o território de Luna anteriormente pertencente a Astal foi conquistado pelos legorianos, mas logo depois perdido por uma revolução interna que culminou no Reino de Luna.
- Há mais alguém? – questionou Kian.
- Não. – ele então abriu um armário de carvalho que estava próximo e retirou uma garrafa de vidro verde com alguma bebida dentro. Serviu em dois copos com um pouco de poeira mas mesmo assim não se importou enquanto brindava e bebia com Kian.
Kian estava além de curioso bastante confuso agora. O fato de haver um quartel general escondido nas próprias terras de Legorian mas pertencentes a um antigo inimigo era algo estranho, mas mais estranho ainda era ele estar lá bebendo algo que ele não sabia o que era, embora bastante delicioso, com alguém que ele não conhecia e desconfiando que a próxima conversa iria mudar radicalmente o rumo dos próximos dias dele.
Ba’les então sentou em uma das confortáveis poltronas de couro que havia ali e pediu para Kian fazer o mesmo, que obedeceu.
- Eu sei que você está confuso, mas logo entenderá a importância do que estamos prestes a fazer.
O soldado legoriano ficou quieto por uns instantes, contemplando cada detalhe do local. Cabeças de animais empalhados também enfeitavam o quartel, mas o ar não estava tão carregado como poderia estar para um lugar bastante fechado e escondido.
- Aqueles homens na taverna, quem eram eles? – perguntou Kian.
- Eram coiotes. São homens de Cidades Livres contratados pelo governo corrupto, que você bem sabe como é, para auxiliar na causa dos Estranhos. Não adianta mata-los, eles sempre mandam mais e enquanto não conseguirem o que querem, não descansarão. Uma vez capturei um deles e o interroguei mas eles são meramente marionetes e não sabem porcaria nenhuma. Os Estranhos... bem, aí já é outra conversa. De qualquer modo, eles querem informações antes de tudo.
- A caixa. É isso que esses coiotes e os Estranhos buscam, não é?
- Sim. O nome verdadeiro daquele objeto é Enigma.
Ba’les se levantou para completar a sua bebida. Aquele local fazia Kian lembrar de Astal mesmo, um belo forte de guerra mas impiedoso, talvez houvesse mais salas nas profundezas e com certeza haveria mais acessos por outros locais.
- Enigma. Um nome justo. – disse Kian analisando os detalhes do vidro do copo que segurava.
Ba’les pareceu não ter ouvido, apenas continuou falando.
- Os Enigmas, jovem Kian, foram criados há tempos esquecidos, por pessoas esquecidas mas não para fins esquecidos. Diz-se que dentro deles há informações que podem levar um ser humano na miséria ao máximo de luxo que você pode imaginar em questão de dias, mas não se engane pensando que há ouro ou outras pedras preciosas. Há muito mais que isso.
Kian ficou pensativo. Novamente Ba’les havia usado o plural, levando a concluir que havia mais de um Enigma.
Não era possível ouvir a chuva dali, nem saber se estava dia ou noite, frio ou calor do lado de fora e Kian ficou imaginando se caso alguém avistasse os cavalos parados do lado de fora não haveria suspeitas, mas então considerou o fato de o velho e pequeno rancho de madeira que ele imaginou ser de algum proprietário poder ser na verdade somente um disfarce para chamar mais atenção que uma simples pedra grande do alçapão.
- O que há dentro deles?
- O Enigma é só o começo. Imagine tudo isso como um iceberg, sendo que o Enigma é a ponta. O que é sabido é que dentro do Enigma há um pergaminho enrolado por uma fina camada de tecido balgâmico que separa uma solução de ácido flórico do pergaminho.
Kian não precisou ouvir o restante da explicação para compreender o que poderia acontecer caso a caixa tentasse ser aberta à força: o ácido seria liberado contra o pergaminho e as informações seriam para sempre perdidas, seja lá o que estivesse por dentro. Um sistema bastante comum de proteção e amplamente utilizado para guardar segredos importantes.
- E a informação... o que ela mostra?
Ba’les fez uma pausa, bebeu mais um gole e continuou.
- Há muitos anos, dizia-se que magos poderosos viviam por estas terras, assim como seres subaquáticos do tamanho de auroques porém muito mais inteligentes. Bestas voadoras e sanguessugas do tamanho da sua cabeça. Tudo isso acabou pela ambição de um único mago em busca do controle do tempo e do controle de todas as forças da natureza. O mundo foi reinicializado, o tempo passou e nós aqui estamos. Mas, será que nada daquilo sobrou para o nosso tempo?
Kian não sabia se aquilo era uma pergunta retórica e decidiu permanecer quieto, sua bebida já tinha se acabado e não pretendia tomar mais.
- Este fértil solo já foi negro e cheio de cinzas Kian, isso você deve saber, por longos anos. Depois do tempo dos magos, tudo se arruinou. Agora, há uma trama sendo feita, uma aliança suja como o pântano e você está no meio disso. Em breve seus superiores irão te convocar para a causa dos Estranhos também e toda Legorian estará em chamas pelos Enigmas.
- Você não está ajudando, o que quer dizer exatamente com isso?
Ba’les respirou fundo e continuou.
- Não sei quem criou as caixinhas mas dentro delas há um pergaminho que indica um local. Sim, sempre um local. Neste local simplesmente reside uma chave.
- Isso é irracional! Por que iríamos decifrar o Enigma para depois encontrar a chave para abri-lo? – Kian levantou levemente a voz.
- Quem disse que a chave é para o Enigma? Sabemos que no mundo antigo foram criados alguns acessos para locais como este, mas um pouco melhorados.
- Locais como este? Estoques de guerra?
- Muito mais que isso. Civilizações antigas foram trancadas com todas as suas riquezas e conquistas nos subsolos do nosso plano, assim como nos meios de montanhas e profundezas oceânicas e cavernosas, e a chave...
- Está onde indica o Enigma. – completou Kian.
- Exato.
Dali de baixo Kian conseguiu sentir que estava indo longe com um simples objeto achado aleatoriamente. Acesso para sociedades esquecidas, o que de mal ou de bem elas poderiam trazer se não várias ruínas afinal? Antes que pudesse questionar, Ba’les continuou firme.
- Desconfio que existem cinco ou seis acessos, mas infelizmente não tenho nenhuma ideia de onde estão os outros enigmas ou os outros talismãs.
- Talismãs?
- Sim, as chaves como eram chamadas no passado. Meu objetivo de vida tem sido encontrar esses artefatos jovem Kian e vejo que você acaba de ser contagiado pela mesma doença que eu fui quando achei e logo depois perdi um dos Enigmas em Monte Mor.
- Então era sua a caixa que eu havia achado? – perguntou Kian em tom de surpresa óbvia – Por que você não foi até mim solicitá-la?
- Primeiramente eu só desconfiei que estava com você depois de seguir suas pegadas. Depois eu te observei e constatei que minhas suspeitas eram reais, você estava com um Enigma. Mas com que propriedade eu poderia alegar que o objeto era meu? E afinal, eu queria ver se você seria capaz de resolvê-lo. Estamos juntos agora Kian, e de certa forma bastante desnutridos de informações para continuar.
- Os Estranhos, quantos Enigmas eles já têm?
- Não sei, mas os Estranhos foram criados somente para achar os Enigmas e posteriormente as chaves. Eles são caçadores e não tem uma inteligência muito abrangente, portanto eles não conseguirão decifrar o pergaminho sem ajuda de alguém. Ajuda esta que estão tendo do governo de Legorian.
- Espere. Como você sabe ou descobriu tudo isso?
- Como eu disse, encontrar estes enigmas, decifrá-los para obter a chave e depois alcançar o portal é uma tarefa difícil mas se conseguirmos, entraremos novamente no mundo dos magos do passado e o que eles reservaram para nós. Poderemos ter acesso a informações e tecnologias inimagináveis, quem sabe até encontrar outros seres, é um outro mundo praticamente, dentro do nosso próprio mundo.
Kian se perguntou se ninguém nunca havia tentado escavar todos os cantos do planeta para encontrar esses locais mas logo percebeu que a quantidade de pessoas que sabem disso tudo é muito limitada e com certeza Legorian faria de tudo para não divulgar. Tudo o que Legorian não precisa é de reinos intrometidos nesta busca selvagem. Ele começou a organizar as ideias na cabeça para perceber o quão louco era aquela situação.
- Então, cada um dos cinco ou seis Enigmas se solucionados poderão nos indicar um local, que estará uma chave ou, como você diz, um talismã e caso sejam encontradas as chaves, um acesso poderá ser aberto a civilizações antigas. Tudo isso me soa um pouco... fora de contexto.
Ba’les pareceu não entender o que Kian queria dizer e então o legoriano complementou.
- É bastante estúpido, eu julgo, guardar uma informação importante em um local que pode ser roubado ou perdido, quem sabe até mesmo destruído sem querer. Além disso, se eu não sei onde está o Enigma e também não sei onde está o talismã, é mais vantajoso eu aproveitar meu tempo procurando diretamente pelo talismã, não acha?
- Não tire conclusões precipitadas de algo que você não conhece, soldado. Lembre-se, o que realmente importa são os talismãs e o acesso, mas já vi relatos em raras escrituras da Ampla Sala do Conhecimento, a maior biblioteca que já existiu, de pessoas que passaram a vida tentando encontrar o talismã, que não deve ser maior que a palma da sua mão e mesmo assim não chegaram nem próximo. Os Enigmas, contudo, são públicos, já passaram de mão em mão por diversas vezes em todos os nove reinos. Alguns acham que é um mero enfeite de mesa, outros imaginam que pode se obter algo de dentro mas logo desistem pela complexidade do mecanismo de abertura.
Kian começava a confiar nas palavras de Ba’les, mas ainda muitas dúvidas deveriam ser esclarecidas.
- Você disse que o governo quer os Enigmas para encontrar os talismãs. Por quê?
- É um pouco óbvio, não? E é justamente por este motivo que estou contando com você para a minha nova jornada. O digníssimo – fez uma careta em ironia – Rei Samuel de Loue, seu representante de Legorian está este ano com o poder de administrar a capital e os nove reinos, mas há tempos que ele e alguns conselheiros de Razagul vêm compactuando para também encontrar os talismãs. Se eles encontrarem, poderá começar uma opressão, uma nova dinastia cuja soberania sempre será o caos. É fácil de imaginar, você deve conhecer o Rei melhor que eu.
Não era difícil de imaginar mesmo tal situação. Samuel nunca era visto mas sempre muito vaiado em qualquer lugar. O Campeonato de Kaluar geralmente trazia bens ao governo que deveriam ser retribuídos para a população dos nove reinos, mas este retorno nunca ocorreu até então na gerência do Rei Samuel.
- O Rei Samuel não seria capaz. Ele não teria o apoio dos outros reinos que não seja Razagul. – disse Kian.
- E precisa? Legorian e Razagul possuem os maiores exércitos do plano. As Escolas das Armas de Legorian já não é mais a mesma, todos estão submissos a Samuel e sua turma de ratos podres. Em Razagul não é diferente.
Ba’les fez uma breve pausa e se levantou com um suspiro, guardou no armário o copo em que bebia e se virou para continuar a conversa.
- Nós somos educados e treinados deste cedo com as mesmas filosofias, Kian. Você é especialista na arte das lâminas com espada, embora ainda bastante novo e recém formado. Eu já possuo bastante experiência com bastão mas nós dois seguimos a mesma doutrina que é a Escola das Armas. Seja especialista em machado, arco e flecha ou arakh, somos criados para defender a verdade e a tranquilidade de nossos respectivos reinos, não é? Mas se a verdade não está mais como premissa básica de um reinado, não acho que temos a obrigação de defende-lo.
- E assim nos tornarmos rebeldes revolucionários?
Ba’les deu uma risada fraca.
- Eu não, meu caro. Meu reino não conspira ao favor desta corrupção. Já você deverá fazer uma escolha em breve.
Havia um realismo na voz de Ba’les que Kian notou com facilidade. Não era difícil de perceber os atos corruptos do governo e o problema só aumentava quando percebia-se que no esquema de rodízio do governo-capital, o próximo seria um representante que viria de Razagul. A miséria nas ruas era cada vez maior e diversos protestantes dia e noite, de diversos lugares, vinham aos portões do Palácio de Venevere, onde morava o atual Rei para proclamar melhorias que nunca eram nem ao menos ouvidas. A coisa estava se complicando de verdade.
Ba’les era um sujeito estranho, mas Kian já estava começando a se adaptar ao jeito dele após essas poucas horas de convivência. As palavras pareciam fazer sentido, mas ainda havia uma coisa que Kian não entendia.
- Por que eu?
O homem de Astal passou as duas mãos nos cabelos, pegou o copo sem brutalidade das mãos de Kian e também guardou no armário.
- Muitas pessoas encontram os Enigmas, mas são raras as que ficam intrigadas e passam dias ou semanas com aquele objeto na mão. Comerciantes, pescadores, ferreiros, construtores e até padres já possuíram uma caixa daquela uma vez, mas ninguém nunca chegara tão próximo de decifrá-lo como você.
Kian não sabia exatamente a que ele se referia.
- Decifrá-lo? Não sei se você percebeu mas eu...
- O pouco que você manuseou no mecanismo de abertura – interrompeu – já foi suficiente para desvendar cerca de dez por cento do Enigma, se estivesse mais atento você poderia reparar que a cor das faces passou de azul bem escuro para um pouco mais claro.
Kian se sentiu orgulhoso e estúpido no mesmo momento. Não havia nem imaginado que a cor poderia ser alterada. Realmente o objeto era enigmático e a possibilidade de ter sido feita por mãos muito mais talentosas, como a de magos, tornava-se um pouco mais real agora.
- De qualquer forma, foi provavelmente isso que fez com que os Estranhos sentissem a presença da caixa e lhe roubasse. Não faz muita diferença agora.
Kian já ia se preparando para mais uma pergunta quando Ba’les não o permitiu.
- Agora devemos ir. Temos um longo caminho a perseguir e não temos tanto tempo assim para ficarmos de papo furado.
- Aonde vamos? – Kian se levantou subitamente.
- Vamos atravessar o Mar Branco, o maior deserto que existe neste plano para chegar ao exótico Reino de Éstas. Lá você mostrará o mapa sobre o mecanismo de abertura do Enigma que você tinha aos Sacerdotes Vermelhos, eles têm me ajudado bastante.
- Mapa? Do que você está falando? Eu não tenho nenhum mapa!
- Não temos mais o Enigma mas tenho certeza que você o observou por tempo suficiente para decorar todas as entranhas do mecanismo, não é mesmo? Então, se não há um mapa, desenhe um e logo haverá!
Ba’les deu um sorriso seco e começou a caminhar em direção a uma pequena escultura de mármore branco que deveria dar acesso a algum local, enquanto Kian processava as últimas informações parado em pé bobamente, até porque o astaniano tinha razão, ele conseguiria desenhar até de olhos vendados todos os detalhes daquela maldita caixa.
Continua...