Eustáquio

Eustáquio começou a escrever. E parou com um calor na cabeça, uma coceira perto das orelhas. Foi olhar no espelho e percebeu um vermelhão, parecia um pouco inchado. Como a coceira parou voltou para a escrivaninha e continuou a escrever e a coceira voltou. Passando a mão percebeu inchaços simétricos atrás das orelhas que lembravam um triângulo retângulo, onde um cateto menor subia perpendicular à orelha e na parte superior tinha o ângulo reto, um cateto mais cumprido e por fim a hipotenusa. As pontas eram um pouco arredondadas, mas quanto mais ele queria ver, mais rapidamente o inchaço se desfazia e a cabeça voltava ao normal. Em outros dias o fenômeno se repetiu e Eustáquio parou de escrever.

Comentou com um amigo que não quis perder a piada e disse que aquilo era coisa da cabeça dele. Fazendo analogias com guampas e perguntou como ele estava tratando a esposa. Eustáquio não achou graça, e desconversou. Procurou um médico para examinar a área onde supostamente ocorria o fenômeno e o médico não percebendo nenhuma alteração, fez um interrogatório que parecia querer verificar a sanidade mental, com perguntas do tipo “Você sofreu algum trauma físico?”, “Emocional?”, “Você sabe que dia é hoje?”. Depois pediu para que preenchesse um formulário onde, misturadas com perguntas de cadastro, vinham outras pedindo para identificar desenhos básicos. Vendo que o Eustáquio não estava digamos assim tão paciente o médico falou que precisava de exames laboratoriais para dar um diagnóstico. Recomendou uma tomografia da cabeça. Eustáquio fez o tal exame e quando foi buscar o resultado pegou um envelope lacrado e estava indo para a re consulta, mas não se aguentou e sentando num banco de praça abriu o envelope para ver se tinha algum diagnóstico terrível e para sua surpresa, alegria e decepção sua cabeça era perfeitamente normal.

Um senhor pediu licença e sentou-se no banco ao seu lado.

-Quente hoje? Puxou conversa o estranho.

-É. - Respondeu curto Eustáquio, para não dar sequência na conversa.

-Vi que o senhor segura um exame. -o estranho parece que não percebeu e seguiu a conversa - Sabe eu fiz um outro dia para saber o porquê tenho tanta dor nas costas, mas depois de visitar vários especialistas não tive de nenhum, um diagnóstico, uma solução. – Parecia uma deixa perfeita para Eustáquio se abrir, mas ficou meio com receio, depois avaliando tratar-se de um estranho e como forma de solidariedade querendo dizer que tinha noção do que ele estava falando, e considerando que não tinha nada a perder relatou o seu caso singular.

-E isto sempre aconteceu com você?

-Não, faz pouco tempo.

-E só acontece quando você escreve?

-Não sei se guarda relação. Nas vezes que aconteceu eu estava escrevendo...

-Você já pesquisou na internet?

-Já, mas não vi em nenhuma especialidade médica qualquer descrição de sintomas para similar patologia.

-Vai ver por que não é uma patologia.

-Ou porque é uma doença rara ainda não catalogada....

-Você já experimentou continuar escrevendo?

-Não.

-E por que não?

-Tive medo, o negócio só aumenta.

-E porque você não escreveu na frente do médico para ele ver?

-Na verdade não pensei nisto, mas afinal das contas eu escrevi: tinha um formulário de cadastro cheio das perguntas que ele me deu para preencher. Acho que ele queria, com uma avaliação da minha coordenação motora, ter mais subsídios para determinar minha sanidade mental. Será que sou louco?

-Você me parece perfeitamente normal. Por um acaso estou com caderno aqui comigo. Você não que escrever um pouco para que eu possa ver.

-Ok, me passe o caderno. – Eustáquio gostou da maneira como aquele estranho falava com ele, não sabia se era o tom da voz, o interesse, mas era o que ele procurava quando contou o caso para o amigo. Começou a escrever e o estranho ficou olhando atento para sua cabeça.

-Não vi nada.

-É também não senti a cabeça mais quente ou com coceira próximo da orelha.

-O que você está escrevendo?

-Bom, meu nome, endereço, filiação.

-O que você escrevia quando começou o fenômeno?

-Uma poesia, um conto, sei lá...

-Ah, mas então escreva uma poesia, um conto.

-Mas agora nem sei se estou inspirado.

-Tente. – Eustáquio começou a escrever e começou a sentir a cabeça esquentando.

-Acho que você tem razão! Agora estou começando a sentir uma coceira atrás da orelha. Você consegue ver alguma coisa?

-Acho que sim, você conhece o símbolo da Honda para motos?

-Uma asa?

-É, parece que seu inchaço tava formando um desenho que parece uma asa. Será você um super-herói tipo assim o capitão América?

-Você está fazendo pilhéria. Acho que não viu nada e está querendo curtir com a minha cara.

-Não, eu estou falando sério. E penso que seu caso está mais para mitologia do que para patologia.

-Você conhece alguma história da mitologia que se encaixe no meu caso?

-Na verdade não conheço muito mitologia, e mesmo se conhecesse poderia ser que seu caso fosse uma história “não catalogada” como você diz. Disse mitologia para representar algo que não é deste mundo.

-Seria eu um semi-deus?

-Bom, se for acho que poderia continuar escrevendo que a chance de você morrer seria pequena.

-Ma até Aquiles tem seu ponto fraco e se meu calcanhar de Aquiles for continuar escrevendo.

-É verdade. Talvez seja melhor não arriscar...-falou sem convicção, mas por companheirismo.

-É uma pena. Logo agora que eu estava começando a pegar amor por escrever.

-Amor é vida!

-Tá! E daí?

-Espero que você descubra.

-A cura?

-Não, já disse que acho que não é uma doença. Espero que você simplesmente descubra. Estou achando que você não vai morrer se escrever. Bom eu tenho que ir. Boa sorte para você. Fique com o caderno, já começou um texto se você tiver interesse em terminar...

-Obrigado. Melhoras para você também. Eustáquio olhou para o caderno e tinha uma pena branca entre as folhas, levantou os olhos novamente para olhar o estranho, mas ele já tinha ido. Naquela tarde Eustáquio não foi para a consulta. Considerou que seria uma perda de tempo e ainda estaria sujeito a um olhar desconfiado de sua sanidade mental. Foi para casa e na sua escrivaninha começou a escrever. A coceira veio, ele não deu importância e continuou a escrever. Absorto em suas viagens, não deu importância quando asas saltaram por sobre suas orelhas e como um pássaro que acabou de acordar e está se preparando para um vôo se esticaram e se agitaram. Sua concentração no próximo passo da história que estava inventando não o deixou se incomodar. E elas bateram e ele criou, e ele voou.

Quando terminou as asas se fecharam e foram se embutindo na sua cabeça. Ele esta feliz. Não morrera. Não era fatal. Pensou: “Quem sabe aquele estranho não tenha dor nas costas porque ali estão embutidas gigantescas asas de um anjo?”

Há testemunhos de pessoas que já viram Eustáquio escrevendo poesias e que nunca viram nenhuma asa saltar da cabeça. Acham que esta história é loucura da cabeça dele. É... Dizem que os poetas não são muito certos mesmo, mas também os que testemunharam nunca viram um anjo - Talvez precisem ler mais poesias.