Os Templos Perdidos (PRÓLOGO)
(PRÓLOGO)
A pequena caixa quadrada de madeira-viva estava em cima da mesa.
Os entalhes que constituíam o objeto eram belos e detalhados, assim como as cores fortes em azul, branco e dourado que instigavam a curiosidade de algum observador sobre o que poderia haver dentro daquele artefato.
Um homem analisava a caixa com atenção, de longe, sentado com as pernas cruzadas em almofadas confortáveis no meio do aposento. Ele a contemplava com olhos atentos e imaginativos, talvez até perigosos. Suas mãos se uniam e os dedos entrelaçavam-se para dar apoio ao queixo enquanto pensava.
Alguns ruídos mundanos eram ouvidos pela janela que quase sempre ficava aberta em seu quarto e a leve brisa da alvorada anunciava que em breve começaria mais uma rodada de disputas sangrentas e heroicas no Campeonato Trienal de Kaluar, no centro de Legorian. O Campeonato, contudo, não era o que estava na imaginação do homem neste momento.
O incenso com agradável e levemente doce cheiro de flores silvestres de Razagul já estava se acabando mas o pequeno aposento permanecia com um clima bastante ameno.
Sem precisar se apoiar com as mãos no chão, ele se levantou com um rápido desdobrar de pernas e, andou devagar até a janela do quarto. Observou as pessoas caminharem aos seus destinos, seja lá quais fossem estes. Alguns, bêbados da madrugada, perambulavam para os lados e falavam sozinhos enquanto homens e mulheres do comércio já pareciam estender suas coloridas tendas de pano na praça central. Lá fora o cheiro já não deveria estar tão agradável assim, uma vez que o velho Jil, dono de uma das tavernas começava a despejar o resto de comida que sobrou do dia anterior nas ruas para os pombos, ratos ou moribundos de plantão.
De qualquer forma, a caixa continuava quieta repousando sobre a mesa. O jovem deu uma olhada por cima dos ombros mais uma vez ao objeto e teve uma breve vontade de arremessa-la contra a parede, mas que foi logo repelida de sua mente. Sim, seria bastante estúpido.
Já se passaram algumas semanas que ele encontrara a caixa nas longínquas e verdejantes terras de Monte Mor, pelas montanhas enflorestadas. Desde então aquele objeto misterioso tem criado dúvidas na cabeça do homem que provavelmente ele não saberá responder sem saber exatamente quais as perguntas que significativamente devem ser levantadas. Além do mais, não seria sábio encontrar um objeto estranho e contar a outras pessoas sobre o achado sem saber o que isso poderia ocasionar.
A caixa era simples mas possuía belas escrituras em alguma língua indecifrável nas suas seis faces, além de símbolos rústicos e desenhos estranhos, mas não estava em más condições e nem aparentava ser um objeto velho, muito pelo contrário, estava bastante limpa e até se fazia pensar que alguém guardava aquela caixa com muito cuidado.
Mas o que realmente intrigava o jovem guerreiro era que na face que ele acreditava ser a superior, um mecanismo entalhado parecia funcionar como uma fechadura, ou talvez como uma própria chave, que se fosse combinada da maneira correta poderia ser aberta, um enigma bastante complexo pelos detalhes do objeto.
“E então... o que espera encontrar dentro deste enigma? ”
Ele pensava e entrava em devaneios, especulações e chegou a considerar por alguns dias que aquilo não deveria ser nada de importante, mas quase todos os dias de manhã, enquanto o sino da igreja ressoava em sua cabeça, ele abria o cesto de palha ao lado do colchão de palha e do fundo do cesto retirava a caixa entalhada, colocando-a em cima da mesa para depois sentar-se nas almofadas e contemplar mais um pouco sobre o que poderia ser aquilo.
- Vamos com calma... – disse a si mesmo.
Pegou o objeto de cima da mesa e pacientemente devolveu ao cesto que servia de abrigo.
Os murmúrios da rua começavam a ficar mais alto conforme a quantidade de pessoas ia aumentando e não deveria demorar muito para que a vida matinal neste quente dia em Legorian se iniciasse.
Pegou sua bainha de couro com a espada e amarrou na cintura, se preparando para sair. As vestes eram bastante simples e não muito novas, mas era o que um estudante final do Secundário da Escola de Armas de Legorian recebia para iniciar sua carreira no Exército, basicamente o suficiente.
Mais ao norte da maior cidade dos nove reinos, o Campeonato de Kaluar voltava a receber vida, os portões de ferro estavam abertos e davam acesso a arquibancadas de madeira em inúmeras fileiras verticais. Era um verdadeiro espetáculo, exceto para quem estava no centro das atenções.
O intuito da competição milenar sempre foi bastante simples: entrar na arena com um ou mais competidores e sair vivo, mas sozinho. Você poderia levar a arma que desejasse e vestir a armadura que quisesse, tudo era válido. Se no fim do dia conseguisse derrotar todos os oponentes propostos, ganharia regalias e bens do governo.
Na verdade, hoje em dia a competição era só uma manobra para atrair visitantes para Legorian e arrecadar dinheiro, mas era também uma espécie de esporte que muitos homens e mulheres de diversas idades achavam a glória e a honra em troca de um pouco de sangue.
O guerreiro abriu a ampla porta de madeira e começou a descer as escadas que davam acesso a rua de pedra. Lá em baixo, o calor era maior ainda.
Os vilarejos que se entranhavam dali do centro eram compridos e altos e a essa hora do dia algumas senhoras estendiam roupas e lençóis pelas varandas.
- Kian... o mais novo soldado de espadas do Exército afortunado de Legorian, irá competir desta vez? – gritou alguém atrás do jovem guerreiro no meio da multidão que já se formava lentamente abaixo dos portões da arena. Ele rapidamente se virou e observou quem o chamava.
- Hoje não, meu amigo. – respondeu.
O homem que o chamava era um pouco mais alto que Kian mas vestia as mesmas roupas e também possuía uma espada embainhada na cintura.
Kian deu um aceno com a cabeça e continuou caminhando. Não tinha a pretensão nem de assistir aos jogos, mas reconhecia que a estrutura do local fornecia um belo espetáculo aos visitantes. Ao redor da arena e arquibancadas, bandeiras dos nove reinos balançavam sob hastes de ferro em cima das barracas de comidas ou de qualquer outra coisa que alguém pudesse vender.
O forte sol já era quase insuportável e nenhum sinal de chuva estava sendo mostrado.
Quando as músicas de trombetas seguidas de poderosas vozes anunciavam o início de mais um dia de competições, a multidão das arquibancadas da arena não se aquietava de ansiedade para ver cabeças serem separadas de corpos despreparados.
Kian, entretanto, preferia se isolar um pouco de pessoas quando não estava treinando. Os portões da cidade estavam próximos e ele decidiu que iria contemplar nas colinas o movimento da cidade, talvez refletir um pouco. Caminhou rapidamente e sentou-se na grama macia quando chegou no topo. A cidade era populosa e densa, mas dali não parecia tão grande. A enorme arena mostrava formigas em vez de pessoas lá dentro e mesmo assim, o barulho que a multidão fazia Kian conseguia ouvir levemente.
Seu pensamento, obviamente, mantinha-se em apenas uma coisa: a caixa.
Quando o objeto foi achado, ele estava em missão complementar para obter o título de Soldado de Armas de Espada da sua escola. Cada um dos nove reinos possui diversas escolas e entre elas a Escola de Armas, com várias segmentações por dentro.
Em Legorian, a Escola de Armas é grande e se localiza no centro da cidade. Vários jovens escolhem a carreira das Armas e com Kian, que foi criado em um dos polos rurais de Legorian não foi diferente. O Ciclo Básico é destinado a crianças de três anos até jovens de dezesseis, em que são iniciados nos estudos e nesta fase ainda não é possível determinar qual a carreira que o indivíduo irá seguir. Aprendem o básico do mundo e do funcionamento das coisas. Com dezessete, a pessoa se especializa no nível Secundário da escola que ela está e então se determina a arma de especialização caso o aluno entre para a Escola das Armas, ou se for inserido na Escola Alquímica, ele optará por Poções, Seres ou Espaço e terra, entre outros como a específica Escola de Forças Especiais no Reino de Ése. De qualquer modo, a educação nos nove reinos é bastante valorizada e principalmente priorizada sob qualquer aspecto.
Em uma das tarefas para entrar na classe de soldado, Kian foi enviado para Monte Mor obter uma planta medicinal e além disso voltou com o objeto misterioso, que guardou com ele.
Agora, deitado sobre a grama, fechou os olhos e aproveitou o sossego para descansar antes de começar mais uma vez a bateria de exercícios matinais.
A Escola de Armas de Legorian era bastante famosa por ter criado vários guerreiros de qualidade que foram fundamentais para defender os interesses da cidade, seja contra outros reinos em guerras passadas ou contra bandidos e tropas de assassinos das Cidades Livres. Hoje era tempo de paz, contudo. Os nove reinos eram governados por um sistema de rodízio no qual a cada ano um representante de um dos reinos era eleito como o governador geral e depois deste período, o sucessor seria um outro representante de outro reino.
Tudo seria muito funcional se a cada ano que passasse a corrupção não tomasse conta do governo. O ouro estava sendo encontrado com mais facilidade, além de pedras mais preciosas e lugares com maiores vantagens.
Grandes expedições de navios eram formadas para explorarem o novo mundo que surgia à porta dos reinos e com isso, males diversos também eram trazidos.
Houve um tempo em que o mundo todo ficou quieto, mas então a raça de bípedes tornou a dominar a estrutura política e social, assim como a própria natureza.
Enquanto a tarde se aproximava de Legorian, a sangria da arena continuava a deixar a multidão alucinada. Homens mutilados saiam felizes da arena, com ouro brilhando em seus bolsos, assim como prostitutas em seus lados ao tempo em que as pessoas começavam a se dispersarem finalmente.
Mais um dia vencido.
No caminho de volta, Kian continuava pensativo e nas vielas do centro, o pôr do sol não era tão bonito como nas colinas, mas era o caminho mais rápido.
Um indivíduo de capuz estava parado abaixo de uma tenda que em breve seria recolhida, mas ele parecia não se mexer e nem observar ninguém em específico. Estava imóvel, na verdade.
Kian continuou a caminhar por entre os comerciantes e músicos que se preparavam para recolher seus instrumentos mais uma vez.
O vilarejo era longo e a caminhada levou alguns minutos. Nas grossas paredes de pedra que constituíam as casas daquele lugar, Kian sabia que algo estava para acontecer. A noite já havia chegado assim como a oportunidade de roubos e assassinatos contra desavisados.
Kian conhecia o local e sabia dos perigos, mas nunca ninguém ousou a fazer algum mal a ele até então.
Continuou com sua caminhada de volta ao seu aposento, sem muita pressa.
Os olhares dos moradores daquele local eram superficiais e pareciam inocentes, mas em nenhum momento denotava tranquilidade. Com a chegada da noite, quem andava pelas vilas nunca estava em segurança.
Foi então que o ombro de Kian foi segurado por firmes e grossas mãos geladas.
Ele ficou imóvel e não disse nada. A mão que lhe apertava o ombro não aliviou.
- Duk’maer lakrai tohemaes. – disse uma voz anormal por trás.
Kian permaneceu imóvel. Estava preparado para o inesperado de muitas ocasiões como aquela.
Quando a mão soltou o ombro do soldado várias coisas passaram rapidamente pela cabeça dele. Era rápido para desembainhar a espada ou simplesmente fugir, mas aquela voz com aquelas palavras estranhas lhe soara familiar de algum modo.
Ele se virou lentamente e identificou o indivíduo encapuzado.
- Duk’maer lakrai tohemaes. – disse novamente a voz.
Kian o encarou firmemente e pensou ter sentido uma fumaça sair de dentro do capuz, uma fumaça fina e acinzentada mas sem cheiro. Não era possível ver os olhos nem nenhuma expressão do encapuzado pois suas vestes cobriam todo o corpo. Mas uma coisa Kian percebeu: havia estranhos desenhos no rosto do indivíduo, como tatuagens fluorescentes.
- Duk’maer lakrai tohemaes.
- Eu não entendo o que você diz. Vou me virar e ir embora e não pretendo ser incomodado novamente.
- Duk’maer lakrai tohemaes.
O guerreiro ficou quieto, com os olhos cerrados e fitando para aquele ser esquisito que estava a sua frente ao mesmo tempo que o encapuzado esticava uma mão branca com a palma aberta para cima, como se estivesse pedindo alguma coisa. As unhas eram pontiagudas, grandes e amareladas.
- Já lhe disse. Não tenho nada a lhe oferecer.
Quando Kian se virou para ir embora, a última coisa que ele ouviu foi novamente aquelas palavras estranhas e alguma outra frase talvez mais emblemática ainda. Depois disso, um clarão fez seus olhos escurecerem e sua cabeça doer. Viu seu corpo amolecendo e se desmontar no chão duro e sujo. Quando acordasse já seria novamente de manhã.
Continua...