O Jardim atrás dos mundos

Há um jardim que ninguém sabe onde fica. Tudo o que se sabe sobre ele é o que alguns velhos contam de histórias que ouviam de seus avós. E os velhos até tentavam passar suas histórias aos mais novos, mas somente as pessoas idosas sabiam realmente como o jardim funcionava, o que fazia muitos jovens não se interessarem muito por ele.

Ninguém sabe ao certo como esse jardim surgiu, nem os velhos. Uns dizem que ele foi feito dos cabelos de um gigante. Outros dizem que ele é um fragmento de plantações que se desprendeu de uma floresta e saiu por aí andando. E ainda há aqueles que acreditam que um gigante roubou um pedaço de uma floresta e o deixou cair no caminho de volta para seu castelo, fazendo nascer o jardim. Mas, como toda história, há uma versão mais aceita pela maioria. E essa versão diz que o jardim nasceu de dentro de uma mulher. Uma jovem que não era conhecida por ninguém, e nem conhecia ninguém, que veio de um mundo sem nome se apaixonara por um espírito da floresta. Bom, pelo menos esses três elementos: mulher, espírito e floresta seriam chamados assim se fizessem parte do nosso mundo. Mas, num mundo sem nome, os significados das coisas se confundem e não apresentam nenhuma lógica se não forem traduzidos para o nosso mundo. Ou para algum outro.

Enfim, um dia a moça deitou-se com o espírito sob um céu estrelado. Ela sentiu o cheiro de umidade e ervas e folhas na terra molhada que vinha dele e permitiu que ele a preenchesse com aquele amor verde. Depois de algum tempo(também não faria muito sentido falar de tempo nesse lugar)ela deu à luz um jardim.

Um espírito não se prende a relações terrenas, então logo a mulher foi abandonada. Ela cuidou do filho sozinha, que foi crescendo e se espalhando como um tapete pelo mundo e para além dele, pois um mundo que não possui nome também não possui limites. A moça podia sentir a vida do filho sob os pés nus beijados pela grama. E ela sentiu um amor tão grande que decidiu não se importar mais com a partida do pai do jardim. Ele era o SEU filho, e de mais ninguém.

A mãe mantêve-se perto do filho, morou nele, até o dia de sua morte. Quando esse dia chegou o jardim envolveu o corpo morto da mãe, puxando-o para a terra num último abraço que duraria pela eternidade. Nesse dia toda a grama do jardim estava orvalhada. Ela foi a primeira semente do jardim.

Os cabelos ruivos da mãe continuaram a crescer embaixo da terra, dando origem às rosas do vermelho mais vivo e que se espalhavam por todo o jardim.

O jardim, depois de um tempo, parou de derramar orvalhos pela mãe. Pois deu valor a todas as boas lembranças que tinha dela, e isso o deixava feliz. Mas ele não só lembrava; ele também dava vida a essas lembranças. Ele pensava e, ao pensar, imagens da mãe se formavam acima de seu solo. As memórias mais bonitas da mãe caminhando por ele e cuidando de sua grama tão verde. Isso acontecia porque o jardim era vivo, era alguém. Ele era uma grande consciência. E na consciência não se plantam sementes, mas ideias, histórias, conceitos, crenças e memórias. E, uma vez plantadas nesse jardim especial, essas coisas se tornam flores e ganham vida.

Durante muito tempo as lembranças de sua mãe, junto com as rosas escarlates que eram seus cabelos, foram as únicas coisas plantadas no jardim. Foi só depois que os mundos vieram que mais coisas foram plantadas, e são até hoje.

* * *

-É possível ir lá?

-Sim, todos o visitam, o tempo todo. Mas as pessoas não percebem quando estão lá.- disse a Sra. Montague.

-E ele é grande?-quis saber a neta.

-O maior do mundo. Ou dos mundos.

-A senhora sabe, pelo menos, o que é que as pessoas tanto fazem lá, vovó?

-Muitas coisas. Umas vão lá plantar memórias. E depois vão revivê-las. Também vão plantar ideias, ou apreciar as ideias plantadas por outras pessoas. E vão lá para ver as histórias acontecerem bem na sua frente. É para lá que todos vão para acreditar em algo, pois o jardim é especial: ele dá vida a tudo o que tem na nossa cabeça. Entende? Acho que não. Mas, como eu já disse, praticamente ninguém sabe chegar lá de propósito, e não dá pra perceber quando chegamos lá. Mas nós, velhos, geralmente sabemos como. Pois sabemos como ele funciona.

-Sabem? Como assim?

-Bom... É que nós estamos mais perto de nos tornarmos apenas uma memória. E é para o jardim que todas as memórias vão. Além disso, quando envelhecemos, tomamos cada vez mais consciência de que as coisas nem sempre estiveram no mundo, ou em nossa mente, o que é a mesma coisa; elas tiveram que ser plantadas lá, e assim fica fácil aceitar a ideia da existência desse jardim. Entende? Acho que não.

A senhora e a garota conversavam no quarto da avó. Esta se balançava numa cadeira enquanto costurava alguma coisa que a garota não sabia dizer o que era (um manto que parecia se espalhar por todo o quarto e sair pela janela afora de tão grande que aparentava ser, mas a avó o tinha inteiramente no colo). A cadeira fazia um som agudo de um filhote de gato que perdera a mãe.

A garota parecia frustada.

-Puxa vida- disse ela- como é que as pessoas não sabem como encontrar um jardim tão grande como esse?

-Querida- disse a Sra. Montague, parando de costurar e de se balançar, inclinando-se para a frente, o ruído da velha cadeira era como o de uma porta de um castelo antigo sendo aberta lentamente.- Não se encontra um jardim que não se encontra. Mesmo que ele seja maior que o mundo.

* * *

O jardim não é exatamente maior do que o mundo. Na verdade, esse conceito não se aplicaria a ele. É mais correto dizer que o jardim está além dos mundos, ou seja, além das histórias, memórias, crenças e conceitos. São essas coisas que formam um mundo, pois todas elas são criadas por nós. Somos nós que damos significado a tudo, e somente através desses significados é possível saber que fazemos parte de algum mundo. Mas o jardim nascera de alguém que não era conhecida por ninguém, num mundo sem nome, sem significados, o que quer dizer que ele está além do conhecimento de todos, portanto além das regras mundanas. Em resumo, está além dos mundos. Mas, ainda sim, ele é um jardim. Não pode sobreviver sozinho.

Ele acessa os mundos entre si. Por isso, recebe muitas visitas, o que estragaria o jardim se não houvesse ninguém que cuidasse dele. Assim, ele precisava de um jardineiro. Caso contrário, o jardim morreria, levando consigo todos os significados que moldam os mundos. Nada mais existiria.

O jardineiro era escolhido pelo próprio jardim de tempos em tempos, e poderia ser qualquer um de qualquer mundo. Pelo menos qualquer um de quem ninguém sentisse falta, para não estragar a vida de ninguém. Por isso o jardim sempre escolhia alguém sem identidade.

O jardineiro atual andava lentamente por entre as flores do jardim. Ele, pelo menos dentro do jardim, possuía a aparência de um homem alto e magro, com cabelos curtos muito negros. No lugar do rosto ele possuía uma grade de cobre. Atrás dessa grade, um espaço vazio. Dentro do espaço vazio, um pássaro grande e de um vermelho vivo morava, com uma pequena crista verde e uma longa cauda azul-noite. Sempre que o pássaro queria, o jardineiro abria o seu rosto trancado e o deixava voar perto das flores, dançando entre as memórias que ganhavam vida no jardim consciente e ouvindo as histórias que as flores traziam dos mundos.

* * *

A conversa entre avó e neta foi interrompida pelo som de uma porta sendo aberta. O manto que a Sra. Montague tinha no colo parou de ser costurado de repente (ele era tão estranho e volumoso que parecia para Sally, a garota, que sua avó estava costurando o próprio quarto).

-Você não está contando de novo as suas histórias malucas não é, mamãe?-disse a mãe da garota da porta do quarto.

-Acho que não.-disse a avó, olhando para a garota e piscando um olho. Sally sorriu.

-Pois bem, mocinha.-disse a mãe da garota- Está tarde, e a vovó precisa dormir.

-Nada disso.- disse a avó- Tenho que costurar isso aqui, não posso dormir.

-Mas a Sally vai dormir. E que coisa estranha é essa que a senhora está costurando?

-Algo pelo qual você e todos os mundos deveriam ser muito gratos.

-Entendo. Todos deveriam ser gratos pelas noites quentinhas mas desconfortáveis graças aos cobertores feios e velhos e que pinicam da vovó.- disse Rose, a mãe.

As três riram.

Sally se despediu da avó e foi para casa com a mãe, que ficava ali perto.

No caminho para casa havia muitos jardins, das casas dos vizinhos, e Sally não pôde parar de pensar na história da avó.

-Mãe, você já parou para pensar que todos esses jardins, grandes e bonitos, não são nada comparados a um outro jardim muito maior e importante?

-Não entendo o que isso quer dizer, mas acho pouco provável que eu já tenha pensado nisso. Que jardim seria esse?

-O grande jardim, o que fica... atrás dos mundos... acho que é assim que se chama. A vovó que falou.

-Ah, as histórias da vovó. Ela sabe mesmo prender alguém com palavras, não é? Está sempre costurando palavras bonitas e difíceis de entender. Mas cuidado, filha, nem tudo o que se contam em histórias é verdade. A vovó as conta apenas como um passa tempo. Não leve tudo ao pé da letra. Quem se prende às palavras, logo mais desaprende a ler. É contraditório, mas é verdade.

-É verdade mesmo? Você acabou de dizer que nem tudo é verdade.

-Garota esperta. Mas é verdade sim. De qualquer maneira, vamos andando. Está escurecendo.

-E qual é o problema? Um lugar tão tranquilo como esse...

-Sim, é tranquilo, mas nunca se sabe né. Você sabe muito bem que tem uns malucos por aí, que falam sozinhos e correm atrás de pássaros e tudo o mais. Já ouvi dizer que um deles anda por aí com um saco cheio de maçanetas que ele roubou de algumas casas. Quem coleciona maçanetas?

-Nós não somos pássaros, mamãe. Nem maçanetas. Pelo menos eu não sou.

-De qualquer maneira, precisamos chegar cedo para dormir cedo, para depois acordar cedo.

-Por que?

-Nosso jardim está ficando mais diversificado. Precisa de cuidados especiais. Então tomei a liberdade de contratar um jardineiro. Ele vai chegar bem cedo.

* * *

O jardineiro, de tempos em tempos, sai do jardim. Ele precisa ver os mundos fisicamente além de cuidar das ideias deles, para assim analisar os humanos e prever algum tipo de ideia nova que esteja nascendo por aí. Isso o ajuda a preparar o jardim para receber novas ideias.

Mas ele deve sempre voltar ao jardim. Essa é a sua regra principal.

Acontece que regras são apenas construções não naturais. Elas não nasceram com o mundo. São apenas frágeis flores plantadas no Jardim. E o Jardim, em breve, correria o perigo de não ter mais um jardineiro.

* * *

Às sete horas da manhã mãe e filha estavam de pé para receber o Sr. Hibbs.

Ele era um senhor simpático e baixinho, gordo e com um nariz meio alongado.

-Olá, família!- disse ele.

-Oi Sr. Hibbs.- disse Rose.

Sally cumprimentou o velho com um aceno de cabeça e um sorriso. Ela não conseguia falar com estranhos assim tão facilmente.

-Acho que já encontrei a florzinha mais bonitinha desse jardim- disse o Sr. Hibbs, olhando para Sally.

Ela ficou vermelha como uma rosa.

-Deixe de ser tímida, minha filha- disse Rose- Sr. Hibbs, essa aqui só tem vergonha no começo, mas juro que depois de um tempo ela até vai ajudar o senhor com o jardim.

-Ah, ela vai me ajudar- disse o Sr. Hibbs- Adoro companhia para conversar. Mas tudo a seu tempo. Vamos deixar a pequena se enturmar por si mesma. Nas outras casas sempre foi assim. Um dia aceitei ajuda até do papagaio da dona da casa!

Rose riu.

Sally dessa vez riu de verdade. Talvez o senhor não fosse assim tão estranho.

O Sr. Hibbs entrou na casa acompanhado por Rose para pegar as ferramentas de jardinagem. Poucos minutos depois, começou a trabalhar.

Sally ficou dentro de casa lendo um livro até ter coragem para se aproximar do Sr. Hibbs sem parecer um tomate. Em uma hora ela finalmente largou o livro e saiu de casa. Ela queria muito conversar sobre jardins.

Sally, um pouco hesitante, se aproximou do Sr. Hibbs e começou a fazer-lhe perguntas. Se sentiu à vontade com o jeito simpático que o senhor tinha de falar. E não ficou surpresa em saber que o Sr. Hibbs, assim como a sua avó, conhecia as histórias sobre o jardim. Afinal, ele era um velho.

Ele lhe falou tudo o que ela já escutara de sua avó na noite anterior. Todo aquele papo de ideias plantadas, acesso a outros mundos, o fato de ninguém saber onde o jardim fica e que era extremamente difícil encontrar uma passagem para ele... E o fato de outra pessoa falar sobre isso sem nem ter ouvido a conversa de Sally com a sua avó só poderia significar uma coisa para uma criança de sete anos: o jardim realmente existia.

Mas a existência do jardineiro foi uma novidade para Sally. A sua avó certamente contaria sobre ele no decorrer da história se não fosse pela interrupção da mãe da garota.

-Pois é, garota. Há um jardineiro. Ele toma conta do lugar como se sua vida dependesse disso. Na verdade, depende sim. Mas, criança, as coisas mudam. Nada precisa ficar no mesmo lugar para sempre. Talvez o jardineiro decida simplesmente sair. Para sempre.

-Sr. Hibbs... O senhor está querendo me dizer que... Você é o jardineiro?

O Sr. Hibbs nada falou sobre isso. Apenas sorriu gentilmente. Depois de um tempo, disse:

-Agora, vou dar uma pausa na jardinagem. Ninguém é de ferro.- o Sr. Hibbs sentou-se na grama com um gemido de cansaço- Se me lembro bem, você me disse que a sua avó também conhece esse jardim. Conhece bastante, aliás. Gostaria de aproveitar esse intervalo para ir falar um pouco com ela, já que ela mora tão perto. Você poderia me levar lá, garota?

Sally gostaria muito de ver esse encontro magnífico entre duas pessoas que conheciam O Jardim. Ainda mais quando uma delas ela o próprio jardineiro! Ela não pensou duas vezes.

-Claro, senhor! Vamos lá agora!

* * *

Sally e o senhor Hibbs chegaram na casa da avó em menos de dez minutos. No caminho, o senhor, que para Sally parecia muito habilidoso para a idade, pegou nas mãos um pássaro vermelho sem nenhuma dificuldade. Era um pássaro grande.

-Um amiguinho para me ajudar a chegar no lugar que eu preciso.- dissera o Sr. Hibbs.

Sally sabia que ele estava falando do jardim. Ela não podia acreditar! Estava com o próprio jardineiro ao seu lado!

Ao chegarem lá, bateram na porta. Não demorou muito para a Sra. Montague surgir na frente deles.

E foi aí que tudo começou a ficar inesperadamente muito estranho.

A avó de Sally tinha uma expressão de pavor no rosto. O Sr. Hibbs, de repente, agarrou Sally e fez-lhe uma gravata ao redor do pescoço.

-Ora, ora- disse o senhor, com uma voz que Sally não reconhecia. Uma voz assustadoramente mais jovem- Finalmente encontrei uma Costureira. A garota me foi muito útil. Vocês são praticamente impossíveis de localizar. Mas a utilidade dela chegou ao fim, e você, velha, deve ter cuidado para que a menina não chegue ao fim também.

Sally estava assustada demais para entender essas palavras. A avó disse:

-Oh, não pode ser... Você! Uma criatura como você! Como pode? Como? Vocês deveriam estar extintos há muito tempo! Solte minha neta agora, sua aberração!

-Primeiro me mostre a passagem, velha maldita.- O pássaro na mão dele não parava de gritar.

Sally se sentiu exatamente como o pássaro, e começou a gritar também.

-Vovó, o que está acontecendo? Sr. Hibbs, quem é o senhor?

-Ele é a pior criatura dos mundos, Sally. Ele é um Furador. Abre as fronteiras entre os mundos com o único objetivo de causar o caos. Por favor, não machuque a minha neta!!!

-Pois é, garota. Sinto muito por isso. Sua avó está certa. Mas ela reclama de algo que é nada mais do que minha natureza. E foi por causa da raça das Costureiras que nós surgimos. Eu apenas desfaço as fronteiras entre os mundos para conseguir encontrá-los. Fronteiras muito bem escondidas pelo trabalho das Costureiras. Mas então, tomei conhecimento do Jardim. Um lugar que dá acesso a todos os mundos. Pois bem, um lugar como esse deve ser muito bem protegido, e ninguém consegue abrir uma passagem para ele... A não ser as Costureiras.

Sally se debatia ferozmente. Além do medo, começava a sentir raiva também.

-Você mentiu para mim! Pensei que fosse o jardineiro!

-Nada disso, criatura. Eu não disse nada. Agora, abra para mim a fronteira, Costureira. Ou irei arrancar a espinha da sua neta a dentadas.

O mais assustador na ameaça, para Sally, era a calma na voz do Furador. Ela chorava.

A Sra. Montague não viu outra alternativa. Ela era apenas uma Costureira, não uma predadora como os Furadores eram. Não podia lutar.

Ela, também chorando, foi até o seu quarto, seguida pelo Furador. Sally estava bem presa aos braços da coisa.

Chegando no quarto, a avó pegou aquele manto que Sally achara tão estranho. O manto no qual, parecia para Sally, todo o quarto da avó estava pintado. Era como se o mundo estivesse estampado naquele manto. Ou era uma cortina escondendo alguma coisa atrás dela?

A Sra. Montague pegou uma tesoura e começou a cortá-lo, e o mundo se abriu. Do corte, uma luz forte começou a emanar, deixando Sally quase cega.

O Furador soltou Sally, e ela finalmente conseguiu ver o rosto daquilo. Possuía um nariz muito longo e afiado, era muito alto e bem mais magro do que o Sr. Hibbs. Seu corpo era muito anguloso, o que o fazia parecer um inseto gigante. E, de alguma forma que Sally não podia explicar, aquilo parecia oco por dentro.

-Agora, vamos usar o nosso amiguinho aqui- disse a coisa, gesticulando a mão com o pássaro.

Ele trouxe o animal agonizante para perto da boca e começou a murmurar algumas palavras que Sally acreditava ser de uma língua há muito esquecida, talvez a língua que os ancestrais dos insetos falavam. Depois de repetir a mesma frase umas cinco vezes, Sally percebeu que uma sombra começou a se formar na abertura iluminada que havia no manto, uma silhueta humana contornada pelo rasgo no mundo.

Então, o Furador arrancou o rosto do pássaro com os dentes afiados. Nesse momento, um homem saiu de dentro do corte e caiu no chão.

O furador pulou para dentro da abertura, dizendo:

-Outros mundos, aí vou eu- com a voz mais repugnante que Sally já ouvira.

A passagem se fechou sozinha.

* * *

-O que foi isso?!- gritou Sally, chorando.

-Ele teve que fazer um feitiço para tirar o jardineiro lá de dentro, garota- disse a Sra. Montague com a voz tremida.- Se o Furador entrasse no jardim com o jardineiro lá, ele seria apagado da existência. Bastaria ao jardineiro arrancar as flores certas.

Sally estava ofegando. Olhou para o homem desmaiado no chão, o verdadeiro jardineiro. Olhou para o manto que na verdade era a fronteira costurada para o jardim atrás dos mundos.

-Vovó, o que podemos fazer? Não há uma maneira de abrir isso de novo?

-Não, garota. Aquilo levou a tesoura. Ela era especial. Não tardará até que todos os mundos entrem num verdadeiro caos e tudo chegue ao fim.

O homem no chão começou a gemer. Sally olhou para ele.

No começo ela acreditou que fosse um velho, mas na verdade era só alguém muito mal cuidado. Parecia um mendigo.

-O que falou, pobre homem?- perguntou a Sra. Montague.

-Há outro jeito.- disse o jardineiro, com uma voz muito rouca.- Nem tudo está perdido. Mas vou precisar de ajuda. Não vou conseguir sozinho.

A garota sentiu muita pena do homem. Tão fraco, tão esquecido, tanta responsabilidade de cuidar do jardim, agora perdido nas mãos do Furador... ele continuou:

-Escutem bem: o manto está bem costurado e não se abrirá mais sem a tesoura. Mas abrir cortes não é a única maneira de criar uma passagem. Sempre há a boa e velha técnica milenar chamada de "abrir porta". Por isso, nas minhas andanças por aqui, tomei a liberdade de pegar emprestadas algumas maçanetas das casas da vizinhança. Nas minhas mãos, qualquer uma delas é capaz de abrir a passagem de volta para o jardim.

Sally fez uma expressão de espanto com o rosto.

-Oh meu Deus!! Você é o maluco das maçanetas?

-"Maluco" é só uma ideia plantada no jardim, criança. Mas sim, sou eu mesmo. Agora, venha comigo. Duas cabeças podem sobreviver por mais tempo ao caos que a realidade está prestes a sofrer, e sua avó está muito velha para isso.

Sally sentiu uma pedra de gelo cair no seu estômago.

-O que? Ah... senhor... não sei de que jeito eu poderia...

-Garota, é preciso. Se ama seus pais, sua avó e tudo o que conhece no mundo, deveria vir. Pois tudo isso pode não existir mais, ou perder o significado, o que pode ser a mesma coisa. Agora vamos. A mãe do Jardim não poderá segurar o Furador por muito tempo.

* * *

O Furador se deleitava e esfregava suas mãos tal como uma mosca. Todos aqueles mundos para ele explorar e bagunçar. Ele nem sabia por onde começar.

Mas criaturas como ele pouco se importam com a ordem das coisas. Eles eram a própria desordem.

Ele estava feliz demais. Sem pensar, começou a dar golpes mas flores com suas patas de inseto, apenas para vê-las cair. Em alguns lugares dos mundos, com certeza, memórias se perderam e significados foram apagados naquele momento.

Havia também imagens de várias coisas andando pelo jardim, mas eram apenas imagens fantasmas, e o Furador não se importou com elas.

Ele estava prestes a abrir o caminho para outro mundo com a tesoura quando encontrou, de repente, flores muito vermelhas e muito lindas. E sentiu vontade de destruir aquela beleza. Estendeu as patas asquerosas para uma delas.

E ouviu uma voz que vinha de todo o jardim:

-Meu filho me enterrou aqui. O Jardineiro cuidou muito bem dos meus cabelos desde então. Não me corte os meus cabelos(*).

E uma mulher ruiva saiu de baixo da terra. Era uma imagem, uma lembrança, como as outras imagens fantasmas que andavam pelo jardim. Mas era mais substancial do que elas. Era sólida o suficiente para empurrar o Furador.

Ela caiu em cima dele, fazendo-o soltar a tesoura, que voou para algum lugar do jardim.

-Eu sou o seu maior pesadelo, criatura.- disse a mãe do jardim.- Sabe por que? Porque eu não tenho nome. Vou matá-lo de tão inexplicável que eu sou.

Mas a mulher ainda assim era uma lembrança, e, depois de lutar por alguns segundos agonizantes, o Furador conseguiu se libertar dela. Não tinha mais a tesoura, mas estava enlouquecido, e saiu correndo pelo jardim destruindo todas as flores que encontrava pelo caminho, gritando.

* * *

"... não me corte os meus cabelos", Sally ouviu dentro de sua cabeça, e sentiu uma pontada forte no cérebro. Ela e o jardineiro estavam correndo pelas ruas até o local no qual ele havia deixado as maçanetas.

-Ai!- exclamou ela, parando e segurando a cabeça.

-Eu também ouvi, criança. Mas não temos tempo para parar. Foi a mãe do jardim. O seu ódio está ecoando por toda a existência.

-Eu já ouvi essa música.-disse Sally.- É de um conto de terror. Está tudo tão confuso...

-Isso já é a ação do Furador. Ele deve estar causando uma destruição sem tamanho no jardim.

Sally estremeceu.

-É normal ter medo, criança. Mas, sabe, dar nome ao medo nos ajuda a enfrentá-lo. Nós sabemos de onde vem a nossa preocupação. Nós sabemos que ela se chama "Furador". Vamos resolver.

Ele tentou olhar para ela de modo acolhedor. Mas Sally viu que ele tinha lágrimas nos olhos.

-O senhor também está com medo, não é?

Ele hesitou.

-Sim. Esse é o principal motivo pelo qual não quis vir sozinho. Eu não tenho muita força aqui fora, pois não tenho identidade. Sou só um mendigo. Isso a torna um pouco responsável por mim também, menina. Temos que cuidar um do outro.

Aquilo deu um pouco de coragem a Sally. Qualquer criança adora ser responsável por outra pessoa. Era como se ela fosse um adulto. Ela segurou a mão dele.

-Obrigado por entender- disse ele, e recomeçaram a correr, agora com as mãos dadas.

* * *

O jardim era muito organizado. Cada mundo tinha um lugar específico no qual suas ideias ficavam. Flores de mundos diferentes nunca se misturavam, mas podiam trocar informações através do pólen soprado pelo vento. Nesses momentos muitos acreditavam estar tendo alucinações, viam coisas que não deviam estar ali. Era um fenômeno aceitável.

O ataque de loucura do Furador era bem mais poderoso do que isso; as flores estavam realmente se misturando. Os mundos estavam se encontrando.

* * *

-Estão naquele galpão abandonado!- disse o jardineiro, apontando para uma construção não muito alta e com um grande buraco no teto.

Sally conseguiu ver, através da grande porta aberta do galpão, um saco branco no topo de uma escada.

Era o saco de maçanetas.

Mas, naquele momento, o mundo estremeceu e se abriu. Dessa abertura, grandes criaturas parecidas com cães pretos saíram e começaram a correr na direção deles.

Monstros que vinham de outro mundo. Eram bem reais, nada de alucinações. Sally conseguia sentir o cheiro deles, e teve muito medo. Medo de verdade, pois não sabia o que eram aquelas coisas. Correu o mais rápido possível na direção do galpão abandonado.

O jardineiro, o pobre mendigo, ficou para trás. Os monstros se voltaram para ele.

Sally percebeu isso, pegou uma pedra do chão e jogou-a na cabeça de um dos monstros.

-Deixem o moço em paz!- disse, quase se arrependendo disso. Mas o jardineiro era seu amigo. E ela se sentia responsável por ele também.

Os monstros se viraram para ela, e correram. Mas ela correu muito mais. Disse para si mesma que aquelas coisas eram apenas ideias, mesmo que não fossem. Que diferença faria? O mundo estava muito confuso no momento. Ela só conseguia pensar em correr.

Até que finalmente chegou ao galpão.

As coisas monstruosas eram tão grandes que ficaram presas na porta do galpão quando tentaram entrar todas juntas.

Sally subiu a escada e pegou uma maçaneta de dentro do saco. Mas ela não tinha como sair com a porta cheia de monstros. Então olhou para o buraco no teto. Olhou para fora, pelas janelas. Viu que o jardineiro estava se aproximando.

Ela gritou:

-Jardineiro!- e jogou a maçaneta pelo buraco no teto.

Ele apanhou o objeto com as duas mãos. Assim que fez isso, girou-o no ar.

Os monstros foram sugados pelo buraco que se abriu no mundo, e voltaram para o lugar de onde vieram.

* * *

Sally desceu as escadas rápido e correu para abraçar o jardineiro.

-Oh meu Deus, obrigada! Você me salvou.

-Se não fosse você, eu não teria conseguido pegar a maçaneta. E os monstros teriam me rasgado. Eu é que agradeço.

Os dois permaneceram abraçados por um tempo. Para Sally pareceu, por um momento, que na verdade fora o abraço que expulsara os monstros dali.

-Tudo isso é verdade mesmo, jardineiro? Tudo isso está acontecendo?

O mendigo riu.

-Realmente faz diferença, criança? Sabe, as coisas não precisam existir de fato. Basta alguém que acredite nelas, aí o jardim faz o resto.

-Eu não sei se entendi tudo, senhor.

-Ninguém nunca entende. É chato demais saber das coisas. Eu mesmo fico extremamente entediado lá no jardim. Tudo o que faço lá é saber das coisas e cuidar delas.Vou ficar lá até esse mundo acabar, e então o Jardim vai escolher outro ser de outro mundo para ser seu jardineiro. Sorte que tenho um pássaro. E sorte que eu tenho agora a lembrança de uma garotinha muito corajosa que não só me salvou, mas salvou os mundos.

-Eu queria ficar lá no jardim com o senhor.

-Infelizmente, é impossível. Pessoas normais enlouqueceriam, pois estariam rodeadas por memórias e ficariam presas por lá para sempre. Por isso precisamos do trabalho das Costureiras. Elas protegem muito bem as fronteiras para o Jardim, impedindo que as pessoas entrem lá, pelo menos fisicamente. Já é comum perder-se em recordações mesmo não estando realmente no jardim, imagine o que aconteceria se as pessoas entrassem mesmo nele. Além do mais, é lá que estão todas as coisas que dão sentido e forma ao seu mundo, criança. Todas as crenças. Ideias. Se você enlouquecesse lá, aconteceria o mesmo que aconteceu quando o Furador entrou. Mundos poderiam perder alguns significados, e chegariam ao fim.

Sally se sobressaltou. Quase havia esquecido do Furador.

-Meu Deus, temos que tirar aquela coisa de lá!

-Já cuidei de tudo, criança.

-Que?

-Isso mesmo. O tempo não atinge o jardim, então você nunca perceberia o que acontece nele, nem por quanto tempo acontece. Já está tudo resolvido. Alguns danos foram irreparáveis, mas nada que atinja o seu mundo. Eu até consegui resgatar este objeto aqui.

O jardineiro estendeu a mão com a tesoura da avó de Sally.

-Sua avó precisa estar sempre fazendo reparos na fronteira. Corta aqui, costura ali. Entregue a ela. Os instrumentos dela são especiais. Mas agora eu preciso ir, menina. Nunca vou me esquecer de você.

Curvou-se e deu um beijo no rosto da garota.

Sally estava triste.

-Ei, menina. Não fique assim. Sabe, as fronteiras para o jardim não podem ser violadas. Mas os outros mundos estão por aí. As Costureiras não se importam que de vez em quando alguém as abra, exceto os Furadores. - ele falava enquanto girava a maçaneta no ar. Uma luz surgiu da abertura que se fez ali.- E essas fronteiras estão aqui.- disse ele, apontando para a cabeça.- Cabe a você encontrá-las. Agora, se me permite, tenho trabalho a fazer. Mais uma vez, muito obrigado.

Ele entrou na passagem iluminada. Sally olhou para o rosto dele, mas o que viu foram barras verticais que pareciam uma grade de gaiola. Dentro do rosto dele havia um pássaro vermelho.

Ela não se lembrava mais do rosto dele. Ele era alguém sem identidade. Talvez fossem regras do jardim.

* * *

Sally estava no quarto da avó. Não sabia como fora parar lá.

Sua avó estava costurando e se balançando na cadeira velha e barulhenta.

-Vovó? Como vim parar aqui?- ela estava tentando se lembrar do que havia acontecido, como a lembrança de um sonho que está sendo apagada quanto mais nos aproximamos dela.

-Eu estava lhe contando um história, mas aí você pegou no sono. Tudo bem, eu sei que os jovens não se interessam pelos assuntos dos velhos.

A cabeça de Sally doía. Não estava se concentrando nas palavras da avó.

Ficou olhando para o nada, tentando ter certeza de que ainda era a mesma pessoa, a mesma Sally que era antes de ter dormido.

Até que a mãe dela chegou e a chamou para ir para casa.

* * *

No dia seguinte Sally estava certa de que vivera uma grande aventura em algum lugar, mas ainda não se lembrava do que era. Mas tinha certeza de que não havia sido um sonho.

Ela estava dentro de casa pensando nisso quando ouviu um barulho na porta dos fundos. Depois, ouviu a sua mãe reclamar:

-Droga de maçaneta! Não conheço ninguém que conserte essas porcarias.

Por algum motivo, aquilo fez Sally lembrar de muitas coisas.

(*) Apesar de o trecho estar modificado para fazer sentido na história, a passagem foi fortemente inspirada pela canção retirada de um conto de terror chamado "A menina e a Figueira". Não tenho muito mais informações sobre esse conto, mas acredito que seja brasileiro. Meu pai ouvia quando era criança.

Lumontes (Lucas Montenegro)
Enviado por Lumontes (Lucas Montenegro) em 13/03/2017
Código do texto: T5939814
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