Apenas um garoto
O garoto era apenas um garoto.
Se você procurasse, não acharia nada de especial ou interessante sobre ele. Não se destacava por sua inteligência, nem por falta dela. Não era excepcionalmente forte, nem miseravelmente fraco. Sua família vivia de trabalho duro e honesto no campo, escapando da pobreza sem terem luxos. Não era o primogênito, nem o caçula, nem ao menos o filho do meio. Era o terceiro filho de quatro irmãos, nascido em uma fazenda qualquer em uma cidade qualquer do interior do reino.
Poderia ter sido qualquer outro garoto a ver a impressionante marcha do exército real rumo à guerra que já perdurava durante anos, e com certeza muitos de seus conterrâneos estavam lá, no meio da multidão, e como o garoto desistiram de sonhos prévios para adotar a excitante ideia de se tornarem bravos soldados a serviço do reino.
Porém, foi aquele o único garoto que não se desencorajou com as broncas de sua mãe quando sujava suas roupas brincando – ou como ele diria, treinando – de soldado durante sua infância; não desistiu quando levou surras de seu pai por não cumprir direito suas tarefas na fazenda em sua pré –adolescência; tão pouco se sentia embaraçado pelo deboche de seus irmãos quando passava horas balançando uma espada de treino que adquirira com o ferreiro perneta da cidade em troca de um árduo serviço como ajudante na oficina em sua adolescência. Quando finalmente se tornou um adulto e deixou sua terra natal, foi em prantos que sua mãe se despediu, ainda assim, o garoto – pois mesmo que fosse legalmente um homem, ainda era muito jovem – não se convenceu a ficar e carregando apenas uma troca de roupa, um punhado de moedas e um lanche para a viagem partiu.
Quando se alistou no posto do exército real, foi logo colocado em um quartel de treinamento com outros garotos semelhantes a ele, que compartilhavam histórias e motivos muito parecidos ou totalmente diferentes aos do garoto para estarem ali. Nem aí você poderia encontrar motivos de destaque em seu treinamento: Nos relatórios de sua unidade ele estava sempre em algum lugar no meio, perdido entre os melhores e piores recrutas.
Assim como muitos outros - e aí podemos dar algum crédito à ele, pois outros tantos ficaram para trás – o garoto foi aprovado para se juntar oficialmente ao exército.
E aí que poderia ter acabado sua história, pois tinha realizado seu sonho, seus esforços e sacrifícios haviam dado fruto. Subiria as patentes conforme suas habilidades e tempo permitissem, um dia conheceria uma menina de olhos azuis por qual se apaixonaria, casaria e teria filhos aos quais poderia dar uma infância muito melhor do que a que ele mesmo tivera, que por sua parte se rebelariam para seguir seus próprios sonhos ou então dariam continuidade ao legado do pai, protegendo o reino como ele mesmo fizera.
Mas em sua primeira batalha em campo o garoto logo percebeu que não há heróis corajosos de armadura brilhante e bandidos malvados de dentes podres na guerra – as poucas armaduras logo perdem seu brilho para o sangue e poeira e os inimigos são terrivelmente parecidos com os aliados. Em sua segunda batalha, ele aprende a dor de perder um irmão, o vazio inexplicável que nada pode preencher, não importa quantos caíam do outro lado, a guerra não funciona como uma balança, é apenas um escorregador onde a única saída é para baixo. Disso ele já tinha convicção antes de sua quinta batalha, quando marchou para a guerra não a pé, mas em um imponente cavalo de guerra, com sua reluzente armadura e impressionante novo cargo.
Alguns diriam que o garoto era um homem já há algum tempo, mas mesmo quando não mais encarava seus oponentes olhos nos olhos, agora via seus (seus pois ele os comandava) milhares de soldados do fundo da formação, onde tinha todos seus inimigos quanto suas tropas numa visão ampla; mesmo que agora fosse ele à pensar na melhor estratégia para maximizar as chances de vitória e não apenas um soldado esperando sua vez de ser cortado ou cortar, até que um dos lados fosse dizimado ou dominado; ainda assim, nessa posição onde muitos se sentem –e são – superiores, o garoto mantinha seus olhos inocentes, se recusava a ver os inimigos como um mal a ser eliminado e seus soldados como o meio para atingir esse fim: não, se perguntassem à ele, diria qualquer bobagem como “todas as vidas são preciosas” por isso continuava apenas um garoto fantasiado de guerreiro.
Para os líderes do exército batalhas que são vencidas com planos para poupar vidas (mesmo as que estavam do lado oposto) a custo de um risco de perder o combate não são especialmente aclamadas. O reino entrou em guerra para vencê-la, não meramente sobreviver a ela.
Talvez por essa mentalidade infantil, encantadora as vezes até doce para quem se vê cara a cara com a morte, suas tropas adquiriram um apreço especial ao garoto, sua lealdade e admiração eram realmente impressionantes. Com certeza foi esse o seu pilar de apoio para subir novamente de patente, entrando no circulo dos homens mais poderosos do reino.
Não, mesmo estando entre os grandes e poderosos, com sua barba rala e olhos cheios de esperança e determinação, mesmo com os ferventes seguidores de seus discursos progressistas, o garoto continuava um garoto.
Meu pai sempre dizia: “A beleza está nos olhos de quem vê”. A realidade e a verdade também são filtradas por quem as julga. Neste caso, a realidade era que o garoto já havia virado homem quando decidiu abandonar a vida relativamente segura e estável do campo para proteger sua família. Já era um homem quando viu a cicatriz da guerra no mestre ferreiro e ainda assim lhe pediu que o treinasse na espada. Certamente era um homem quando não apenas sobreviveu a guerra, mas a absorveu e cresceu, não via com os olhos de um garoto assustado ou inocente, mas um homem inteligente que entendeu a verdadeira causa e motivos que levam os homens à guerra: A vaidade e ganância de seus senhores.
Na verdade não foi apenas por sorte e carisma que tinha chego tão jovem ao posto de general. Determinação, inteligência, coragem, habilidade e uma sincera consideração pelos seus companheiros haviam transformado o garoto em um homem exemplar.
E a verdade é que homens como este não seguem homens que não conquistam seu respeito. Podem ignorá-los até certo ponto, mas quando seus interesses entram em conflito, quando julgam que alguém é o principal responsável pelo sofrimento de seu povo, com certeza não se postam a serviço – nem quando o homem indigno é seu senhor por direito de nascimento, o Rei ao qual serviu obedientemente por tantos anos.
Erros podem ser empurrados verbalmente para qualquer pessoa ou evento que sejam meramente relacionados a eles, mas mesmo em minha vergonhosa derrota eu tinha decoro o suficiente para admitir que o erro havia sido somente meu: Em minha arrogância acreditara que o homem era apenas um garoto que compartilhava meus sonhos de glória e conquista mundial.
Nascido príncipe herdeiro, de uma linhagem impecável, desde criança era elogiado por minha inteligência e superioridade. Como poderia estar satisfeito com apenas aquilo que já tinha por direito de nascimento? Para mim parecia óbvio que meus súditos seriam felizes com a expansão do reino, que nossos ganhos seriam imensuráveis, eles saberiam que nossos sacrifícios não seriam em vão.
E não foram. As primeiras campanhas de meu exército foram bem sucedidas: Conquistamos territórios, adquirimos riquezas, fomos vitoriosos. O erro primordial talvez tenha sido não ter enxergado quando nossos ganhos passaram a ser apenas meus e nossos sacríficos tenham se tornado apenas deles. Talvez tenha sido assim desde o inicio.
Em retrospectiva, talvez o único garoto nessa história tenha sido eu, afinal.