A ponte de Vahar - III

Aquela era uma noite quente.

Aroldo estava à janela. O toco de um cigarro pendia das mãos magras e queimadas de sol dos roçados onde trabalhava durante o dia. O luar lhe banhava o peito magro, o rosto marcado de rugas e olhos muito negros que fitavam o vazio. Sessenta e oito anos completaria dali a dois dias. Sentia-se só. Desde que perdera a segunda esposa, dois meses atrás vinha sendo atormentado por lembranças de amigos mortos, da primeira esposa morta há pelo menos vinte anos, até de um cão de estimação que tivera quando garoto;

O preço de uma vida longa, uma voz interior lhe dizia, é a solidão meu velho.

Então o som de um motor ganhando força pela rodovia lhe arrancou dos devaneios. Sua casa ficava a pouco mais de vinte metros da principal rodovia que ligava Andares a Conceição do Coité, Prosperidade, Santa Luzia e tantas outras cidades. Reconheceu o som: Um ônibus da linha Master; Passavam ali dez vezes ou mais todos os dias e aquele em particular vinha a toda velocidade. Três ou quatro quilômetros a frente havia uma ladeira com mais de um quilômetro, os motoristas de veículos pesados aproveitavam o declive que havia ali e pesavam opé no acelerador naquele ponto passando pelo casebre dele como um raio, principalmente a noite quando o volume de veículos era baixo naquelas redondezas.

A noite quieta foi se enchendo com o som dos pneus, do motor que rugia com ferocidade. Podia sentir o chão vibrar sob seus pés.

Então aconteceu!

Um silêncio repentino varou a noite e Aroldo se assustou como se tivesse sido acordado repentinamente com uma bofetada no rosto.

O cigarro já apagado escapuliu dos dedos e se perdeu nas sombras sob a janela. Ele mal se deu conta, mantinha os olhos no barranco escuro do outro lado da estrada. Tinha impressão de ter vistos os faróis iluminarem brevemente o barranco de terra escura quando uma rajada de luz (como um flash fotográfico) sobrepôs a luminosidade dos faróis e tudo silenciou. O veiculo não poderia ter freado bruscamente sem fazer os pneus guincharem no asfalto (não seria nem possível frear aquela velocidade!) além de que não havia outras estradas onde ele poderia se enfiar. Que diabos houve afinal?

Será que houve mesmo um ônibus vindo meu velho? Será que não imaginou tudo? Essa sua cabeça de velho já não está rodando as engrenagens como antes você sabe... Não! Não imaginou nada! Então onde está ele? Simplesmente evaporou no ar? Insistiu aquela voz petulante em sua cabeça. Um companheiro imaterial que já vinha acompanhando-o há algum tempo e parecia disposto a manter-se ali. Uma desagradável companhia que viera lhe preencher a vida vazia.

Naquela noite não houve mais tráfego.

Aroldo deitou-se depois de ficar muito tempo à janela. Não dormiu e somente quando os primeiros raios do sol se infiltraram pelas frestas do telhado conseguiu ficar de pé. Vestiu-se e caminhou pelo asfalto ao longo da rodovia.

Àquela hora alguns veículos já circulavam e ele cuidadosamente manteve-se no acostamento. Procurava marcas de pneu no asfalto (Ele não freou, dizia) ou mesmo sulcos nas estradas de terra mais próximas (ele não as utilizou), todas distantes do ponto em que ocorrera... ocorrera o que? O acidente, sim, um acidente, sem veículo, sem mortos, sem marcas de pneu, mas de algum modo um acidente.

Não encontrou nada.

Aroldo ainda viveria por muitos anos naquela velha casa a beira da rodovia sempre ouvindo os pesados ônibus da Master ir e vir e o ronco de tantos outros motores preenchendo os dias e as noites; a lembrança do ocorrido naquela o acompanharia até o fim de sua vida: Sempre na forma sonhos em que estava a janela e via um ônibus lentamente se aproximar da entrada da sua propriedade e em seguida derreter como cera enquanto ouvia vozes dos passageiros gritando desesperados lá dentro. Nessas noites acordava ofegando, e sentava à beira da janela dos fundos vendo os roçados cinzentos aos poucos tornarem-se verdes enquanto os últimos resquícios de noites iam desaparecendo.

Continua...

Wenderson M
Enviado por Wenderson M em 25/02/2017
Reeditado em 30/06/2017
Código do texto: T5923456
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.