A viagem da moça do quepe branco
Era mais um dia de trabalho e eis que embarcava no velho trem um jovem sonhador na cidade de Jequiá, Minas. Sem saber o seu destino e com uma bolsa tira-colo cheia de desejos, amores, sonhos, idas e vindas, certezas, incertezas, tomou seu lugar de maquinista logo à frente. Na parada seguinte as portas enguiçaram devido a uma porta que se enterrou na parada fora de nível da locomotiva, proibindo assim que seguissem viagem. Forçosamente, desenterrou a porta com as mãos, pois o compensado velho impedia que a máquina seguisse. De rápido, a grande locomotiva tomou impulso e recebeu novos viajantes. Entrava gente e saía gente, mas ali dentro respirava-se o amor.
Tudo parecia calmo e nos trilhos. Todos tomaram seus assentos e ajeitaram-se confortavelmente nas suas poltronas. Pegou a linha da direita, por aviso de uma moça de quepe branco. Seguiu. Logo mais a frente, os dormentes estavam todos podres no meio barro já exalando mau-cheiro. O trem parou numa ribanceira, despedaçando o trem em dois pedaços. Ninguém se machucou. Era milagre! Dentro do trem havia amor, havia Deus. O maquinista então resolveu juntar os dois vagões. A viagem seguia confortavelmente perante o dia nublado de fevereiro. O passageiro sonhador não entendeu como conseguira realizar o feito, mas colocou o trem nos trilhos e na viagem seguiam.
Tranquila e apreciando a mata verde da grande serra, a moça de quepe branco manda-lhe um bilhete. Não se sabe o que havia no bilhete. Apenas se deduzia pelo semblante de moça. Nisto já era meio de viagem, grandes paisagens já haviam contemplado. Ninguém nunca se deu conta do amor entre Leinad e Clara. Próxima parada seria na estação 12 de Junho, onde em cinco minutos degustariam o café requentado da lanchonete. Leinad ajoelhou-se ao lado de Clara, olhou para os lados para se reiterar de que nenhum dos passageiros vissem a cena, tamanha a timidez do jovem maquinista e pediu o coração de Clara. As mãos denunciavam, segundo ele.
Leinad era funcionário da companhia férrea a oito anos. Clara a dez. Sem saber o que fazer, a funcionária que abriu mão de seus três filhos e do casamento fracassado, na outra parada, a 12 de Junho II, pensava... refletia... decidia! Somavam-se dez minutos entre o amor e o sim do pedido. Retirou-se para junto da cabina dianteira com uma flor apanhada na parada 12 de junho. Um hibisco beira-mato de cor vermelha. Era o que tinha de momento o jovem Leinad. Sacou da sua tira-colo uma aliança dourada com os nomes gravados. E choraram juntos! Comoveu o feitio do jovem àquela bela moça trintona.
A viagem seguiu por mais duas longas horas até chegarem na cidade de Estância, no serrado mineiro. Próxima parada: cidade de Aceitação. Entre um café e outro, o hibisco murchou devido a longa viagem. A bolsa tira-colo, agora dependurada sobre os braços da poltrona, carregava o que tinha de mais valoroso para Leinad. Chegando na parada de Aceitação, não houve mais café nem hibisco vermelho. Havia um banco de madeira em tom de ferrugem, bem desgastado pelo tempo. Os passageiros todos alegres e satisfeitos contavam suas muitas histórias uns aos outros. Leinad se rendia aos encantos de Clara. De olhos angelicais e bochechas rosadas, a moça de quepe branco via-se num fogo cruzado entre as paradas e as alianças. Precisava então tomar a oportuna decisão que mudaria sua vida e de seus filhos. Não hesitou. Chorou silenciosamente, já que o medo lhe era notório.
Mas havia amor no meio do medo. Muito amor. Havia Deus!
Clara, na estação Aceitação, decidiu repetir seu último café. Amargo e requentado por causa do nó na garganta. Um turbilhão de acontecimentos e sentimentos, acidentes e descarrilhamentos em toda a viagem. Sem acidentados, mas foi a viagem mais linda de sua vida. Desceu elegante, portando seu passo firme em direção a Leinad. Gelou o coitado, parecia um iceberg estático e gigante. Sentaram-se no banco envelhecido e ali fizeram suas juras. Algumas recomendações foram salientadas. Clara precisava de tempo. Uma semana. Talvez seria o necessário para a decisão de sua vida e de seus três filhos.
Aceitação foi a última parada.
Ao lado, bem próximo a uma praça onde dormia o busto de Santo Antônio, padroeiro de Aceitação, a fonte brilhava suas águas agora já no sol da tarde de fevereiro. O tempo abriu com o lindo sol da quase noite. Escondiam-se no horizonte os juramentos de Leinad e Clara e os desejos dentro da tira-colo. Semana seguinte, quando seria a próxima escala de trabalho dos dois enamorados, eis que todo o mesmo trajeto haveria de ser feito. Leinad não queria repetir o hibisco nem os cafés. Mas não largava de sua tira-colo, em couro tom de ocre. Clara adentrou vagão, tomou sua posição. Seguiu decidida, assim como seus passos nas viagens de sua vida, de coração friorento e acelerado, talvez como a velha locomotiva.
Na estação 12 de Junho, nenhum dos dois desceram. Os passageiros esbaldavam-se na comilança afoita dos cinco minutos. Comiam e embarcavam, deixando as migalhas de salgados ao longo do piso do velho trem. Clara e Leinad estavam certos do que estavam por fazer. Leinad ainda mais, Clara receosa por causa dos filhos e família. Mas o amor havia nascido na vida dos dois, superando a sobrecarga das muitas falações. O amor superou a 12 de Junho, a 12 de Junho II. Só não superou a Aceitação, porque provavelmente seria a decisão de Clara.
Quando na fonte do busto estático de Santo Antônio, agora de bancos vazios, sem ninguém, Clara se aproximou. Refletiu mais uma vez e tomou sua decisão. Leinad, que aguardava na cabina do trem estava amarelo como um pequi. Suava frio e mal conseguia dar os avisos aos passageiros entre uma parada e outra, através de Clara. A viagem chegou ao fim. Os passageiros desceram e cada qual seguiram para seus rumos. O jovem da bolsa tira-colo e a moça de quepe branco ficaram. A próxima parada não foi em Aceitação para os dois. Seguiram rumo ao museu da cidade, num táxi que já estava a espera deles. Leinad era antecipado! Sentaram numa praça toda cercada pela cerca-viva de hibisco vermelho, apanhou o último remanescente da galha mais alta e delicadamente o colocou na orelha de Clara. Puxou a sua tira-colo e ali os dois choraram e se desencantaram.
A viagem agora tomara outro trajeto, em outro estado e em outras paradas. Clara partiu para sua casa deixando Leinad à sua espera, no aeroporto da capital. Esperou longas três horas, até que perderam o voo. Ainda no aeroporto, os dois à cargo dos trâmites burocráticos por causa do atraso de Clara, resolveram então tomar a decisão mais difícil de suas vidas. Choraram e adormeceram por ali mesmo, até o voo do dia seguinte, das 00:30. O atraso foi por causa dos filhos de Clara, já a caminho do aeroporto. Rumaram ao Rio Grande do Sul, em Gramados, num pequeno alqueire de terra de Leinad. E viveram juntos por 15 anos a linda história de amor, até o dia em que, inesperadamente, Clara recebia a visita de um homem carrancudo, de barba falhada, no pequeno sítio.
Correu Clara e enfiou a mão dentro do armário, onde numa caixa de madeira estava guardada sua força. Com dois tiros eis que jazia ali um corpo ferido nas pernas, de quem nunca havia lhe dado nada, além do fracasso conjugal. O alvo nas pernas pernas foi de propósito. Em legítima defesa e totalmente segura de si, assim como seus passos, seguiu Clara rumo à delegacia da pequena cidade. Prestou depoimento. Venceu. Não se sabe como, mas legitimou-a a delegada, outra sofredora que exercia suas funções pela mesma tentativa a que Clara se pusera.
O homem carrancudo sobreviveu, mas Clara sabia que para nada mais serviria o traste de homem. Clara absolvida e ao lado de Leinad e de seus filhos voltaram para Aceitação. O homem de barba falhada retomou seus sentidos. A história de amor agora teria outro fim, de outra maneira e em outro lugar. Só se sabe que havia amor, havia Deus, havia verdade! Clara e Leinad retornaram aos seus antigos empregos e refizeram todo o trajeto de sempre. Houve hibisco. Houve bolsa tira-colo. Houveram alianças. Não houve aeroporto nem atrasos. Houve vida e felicidade, agora no estado de Santa Catarina. Clara acordou assustada e rumou para seu trabalho, na linha férrea de Jequiá com seu quepe manchado.