Bruxuleante

Um dos caminhos mais rápidos para se chegar em Urtenwald, todos sabem, é através de Rottmur. O problema é que ninguém, em sã consciência, usaria Rottmur como atalho - principalmente à noite. E lá estávamos nós, eu e Majit, bem em frente ao pântano sinistro iluminado pelos últimos raios do sol num dia de outono, ponderando que não tínhamos muita escolha a não ser empunharmos nossos cajados e enfiar - literalmente - os pés na lama. Pelo menos, ao entrar ali, não seríamos seguidos pelos soldados do Usurpador e seus sabujos. E chegando em Urtenwald, estaríamos sob a proteção de Nornwell. Se chegássemos, naturalmente...

- Você conhece algo das Antigas Artes, - disse para Majit - ou não nos teria trazido até aqui para bater em retirada.

- Há um método para atravessar Rottmur, - disse ela, brincando com a ponta da trança castanha que caía sobre a frente do seu manto cinza de viagem - mas depende muito do grau de confiança de quem o pratica.

- Autoconfiança?

- Não, - corrigiu-me ela - confiança no método. Ele é contraintuitivo.

- Ah.

- Vamos nos sentar, Anton. É preciso esperar que a noite caia.

Sentamo-nos num bloco de rocha próximo e aguardei, enquanto Majit examinava objetos de seu alforje de viagem: um pergaminho enrolado, uma pena de escrever, uma vela de sebo e um pedaço de ferro. Em seguida, os últimos raios de sol desapareceram no oeste e um manto de estrelas cobriu o céu sobre nossas cabeças. O lugar estava estranhamente silencioso, fora o ocasional ruído do vento nas árvores baixas e retorcidas que pontilhavam o pântano.

- Vamos começar - disse Majit, pondo-se de pé. E erguendo os braços para o alto, exclamou:

- Que o Enforcado se levante e nos mostre o caminho!

Senti um arrepio percorrer-me a espinha. Realmente, invocar os espíritos dos mortos para atravessar um traiçoeiro pântano de turfa era o que eu chamaria de contraintuitivo! Até porque, os mortos provavelmente apreciariam que ficássemos ali para sempre.

Demorou um pouco para que houvesse alguma resposta ao chamado, mas finalmente, ouvi um estouro abafado e uma chama azul brilhou por alguns segundos sobre as águas do pântano, à nossa frente. Cerrei os dentes e apertei com força o amuleto que trazia pendurado no pescoço, mas Majit nem se abalou.

- Vamos - disse ela, tomando a dianteira. - Caminhe atrás de mim, devagar, e arrastando os pés. Não tente caminhar normalmente, seu pé pode ficar preso na turfa.

Avançamos cautelosamente, muitas vezes com água à altura dos joelhos. De vez em quando, a chama azul reaparecia brevemente à nossa frente e nos arrastávamos em sua direção. Quando ela demorou um pouco mais para aparecer e nos deixou em meio à escuridão onde rãs coaxavam, Majit pegou o pergaminho, desenrolou-o e exclamou:

- É preciso luz para ler o Caminho da Salvação!

Instantes depois, a bola de fogo azulada surgiu sobre as águas paradas, e lá fomos nós, tateando cuidadosamente na lama com nossos cajados. Mais adiante, nova pausa e Majit exibiu a pena de escrever:

- É preciso luz para registrar nossas faltas no Livro do Perdão!

Um estouro abafado, e o fogo-fátuo brilhou mais além. Seguimos em frente.

A terceira parada ocorreu quando já havíamos atravessado mais de dois terços do pântano e a madrugada ia pela metade. Majit sacou a vela de sebo, e gritou:

- É preciso luz para iluminar os salões do Enforcado!

Novo estouro, novo brilho azul sobre a água parada. Caminhamos.

Finalmente, já perto da alvorada, vimos que alguém vinha ao nosso encontro, vindo da direção oposta. Era um homem de pele negra e luzidia como couro molhado, completamente nu, apenas com um gorro de pele sobre a cabeça e um pedaço de corda amarrado no pescoço. Os pelos da minha nuca se eriçaram.

- É o Enforcado - sussurrou Majit. - Não se mexa. Não fale nada. Mantenha os olhos fechados. Quando eu disser para andar, ande, e não olhe para trás!

Sentindo meus ossos converterem-se em gelatina, fiz como havia sido ordenado. Aguardei em silêncio com os olhos cerrados, enquanto o chapinhar da água indicava a aproximação do Enforcado. O barulho parou e ouvi a voz dele - uma voz profunda que parecia estar saindo de debaixo da turfa sob as águas escuras.

- Você pediu luz e agora deve pagar o preço. O que tem a oferecer?

- Eu lhe ofereço... isso - ouvi Majit dizer. Em seguida, ouvi um estouro e um forte cheiro de ozônio encheu o ar.

- Anda! - Gritou Majit.

Abri os olhos e me pus a arrastar os pés atrás dela. O Enforcado havia desaparecido!

- O que você fez? - Perguntei.

- Dei-lhe o pedaço de ferro. Era o que eu tinha a oferecer, mas espíritos não se dão muito bem com ferro - disse ela em tom sardônico.

À nossa frente, um brilho rosado no horizonte indicava que o dia estava prestes a nascer. A linha escura das árvores de Urtenwald também era visível à distância. Havíamos conseguido atravessar o pântano tenebroso, pensei lá com meus botões. Mas, subitamente uma dúvida passou-me pela mente:

- Majit... e se algum dia tivermos que fazer o caminho em direção contrária, nas mesmas circunstâncias?

Ela parou e olhou para trás. Estava séria, mas tinha um brilho brincalhão nos olhos verdes:

- Ah, Anton... aí você terá a oportunidade de conhecer em primeira mão os salões do Enforcado.

E retomando a marcha, exclamou:

- Vamos! Nornwell nos espera!

[04-02-2017]