Bebeu outra dose, e pagou mais uma ao Anacleto. Mastigou chiclete para dissimular o bafo da pinga, e andou devagar, enquanto questionava:‘será que existiu muitas Eva? Talvez sete como disse certo cientista maluco, do contrário, os descendentes da primeira mulher teriam sido resultado de incesto. Talvez um só Adão e muitas Eva pelo menos assim, irmão se casariam com meio-irmão, como as raças de cavalos cruzadas no sítio de Alice. Deixou de lado as raças equinas e examinou, etimologicamente, o nome Holofernes, tentando formar algum conceito que designasse luz e inferno, claridade e trevas. Então o inferno é aqui e tapou o nariz para não sentir o cheiro da creolina que os cariocas derramam debaixo das marquises, para afastar os moradores de rua. Sem pressa, fumou um cigarro. Deu outro a um mendigo. Era o terceiro dia que trabalhavam o livro.
— É necessário excluir algumas personagens, e eliminar outras, logo nos capítulos iniciais.
E tomou como exemplo o trabalho de uma aranha. A aranha desenvolve uma armadilha para capturar sua presa. Ora, se a presa é grande, maior e mais resistente deverá ser a teia para envolvê-la, do contrário, facilmente escapará. O mesmo ocorre com as palavras de um texto: quanto maior for o rebanho de letras, maior será o trabalho do pastor para conduzi-las ao aprisco. Com as personagens de um romance a situação é semelhante: se forem em número excessivamente grande, uma ou outra, acaba escapando, desgarrando-se como aconteceu com o amado Jorge. Ele tinha 19 anos quando resolveu tocar um rebanho muito grande e acabou perdendo algumas ovelhas no caminho. É preciso juntar as pontas, alinhavar o texto, costurar o pano, depois, arrematar, aparar arestas. — Respirou fundo e continuou — A própria personagem pede trabalho e dá ajuda na confecção de sua fala. Torne-se amiga íntima dela, e ela te ajudará a construir a trama. Virá dialogar contigo e até sentar-se em teu colo.
— Alguém cunhou esta frase antes de ti.
— Não há nada novo debaixo do Sol. Não raras vezes, quando o criador se encontra com a mulher por ele idealizada, casa-se literalmente com ela, porque constrói para si a mulher perfeita.
— Isso é impossível!
— Como não? Conheci um escritor que se apaixonou por uma personagem. E ela passou a ocupar, não só seus sonhos literários, como também suas vigílias. À noite, acordava chamando o nome dela.
— Fantasias! Muita gente tem fantasia. Ela pode ser boa ou má. Se for má, transforma-se em pesadelos.
— Quem é louco de criar fantasias ruins? Fantasias são, muitas vezes, resultantes de um desejo. E só se deve desejar o é bom.
Robert fez um momento de silêncio, para assegurar-se de que não ia revelar os segredos de seu coração. Não sabia se a polução noturna que tinha era de origem boa ou má. Como examinar os frutos, se ela não dava fruto algum? Era uma figueira estéril... Não ele. Talvez ela, porque só chegava em sonho. E se Ravenala fosse realmente, estéril? Teria ele motivo legal para separar-se dela? ‘Para de devaneios, Bobby! Tu és solteiro, porque se preocupar com cruentas realidades que atormentam os casados?’ E continuou. — As fantasias boas ou más, chegam sem ser convidadas. Elas são atraídas por nossas inclinações. Pensamentos alimentados durante a vigília apresentam-se como temores noturnos ou sonhos coloridos. Cada um cria seu próprio mundo, a partir de seus desejos. São eles que alimentam os sonhos e os pesadelos. E têm o poder de tornar real aquilo que fora antes apenas um sonho.
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Adalberto Lima - trecho de Estrada sem fim...
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