Moeda
No fundo do cofre de um banco qualquer, existe um reino diferente de todos os outros. É um reino que não é feito de gente, mas, sim, composto por moedas.
Muitas moedas. De todos os valores correntes.
Como é de se imaginar, este reino possui suas divisões internas, assim como nossas sociedades humanas; e nada mais familiar para nós do que saber que ali a divisão é marcada pela diferença dos valores. Há moedas de um, cinco, dez, vinte e cinco, cinquenta centavos e um Real, e há muito pouco intercâmbio social entre suas categorias. Os valores de face de cada uma das moedas define seu valor individual: porém, este valor não é medido meramente por seu poder de troca, mas unicamente por seu valor moral e ético - e, isto sim soa estranho para nós, homens e mulheres.
De fato, as moedas de um Real são as que possuem o maior valor, e são as mais virtuosas dentre as demais. E, conforme a hierarquia dos valores decresce, diminuem também suas virtudes, restando às moedas de um centavo os maiores vícios e imoralidades do reino. Por este motivo, elas começaram a ser retiradas de circulação e recicladas, pois o desarranjo interno que causam é absurdo e estarrecedor.
Com o passar dos anos, a muito custo, a administração do banco foi eliminando uma a uma das moedinhas de um centavo. Porém, uma delas era extremamente astuta e conseguiu esconder-se por bastante tempo, em meio às demais, enquanto praticava suas diabruras. Porém, mesmo todo seu traquejo e malandragem não a manteriam imune eternamente, e ela sabia muito bem disto. Portanto, maquinou um plano que lhe parecia perfeito: disfarçar-se de moeda de um Real.
Para tal, recolheu um papel dourado qualquer que havia no chão do cofre e embrulhou à sua volta, a fim de mimetizar a aparência de um Real. Como era antiga, seu centro era prateado, e sua volta tornou-se dourada pelo papel, de forma que, aos incautos, ela passaria grosseiramente por uma moeda de maior valor. Logo em seguida, convencida de que seu plano era ideal, saiu à procura das moedas de um Real para misturar-se a elas.
Foi aqui e ali no meio das moedas deste valor, intentando andar com elas e, quem sabe, tirar algum proveito daquela virtuosidade toda. Mas, as moedas de um Real, reconhecendo a intrusa, refutavam-lhe, e a moeda de um centavo começou a desesperar-se, agora pensando que seu plano fora uma burrice; e refugiou-se no fundo escuro do cofre.
Lá chegando, encontrou uma moeda antiga de um Real, da primeira geração, já gasta e arranhada, solitária. Sentou-se ao seu lado e começou a puxar papo, esperançosa de que pudesse dobrar aquela velha tola - e que surpresa! Obteve sucesso imediato!
A moeda velha de um Real deu-lhe grande atenção e apreço, e pareceu enxergar nela uma grande amiga. Dessa forma, passaram a andar juntas aqui e acolá, e a moeda de um centavo ficou feliz pelo seu golpe estar dando certo, e buscou tirar máximo proveito daquela situação: iam a locais onde somente moedas de maior valor podiam frequentar, e divertiu-se muito com tudo o que sua “amiga” podia proporcionar-lhe por seu valor.
Para não dar muito na vista de que era uma impostora, a moedinha de um centavo se esforçava por imitar os trejeitos daquelas que estava travestida, mas este papel era demasiadamente grosseiro. Como era difícil ser boa como aquelas idiotas! Ser gentil, cordial, amável, corajosa, fiel, altruísta - enfim, toda aquela baboseira - lhe custava muitos aborrecimentos e situações constrangedoras, mas que eram sempre contornadas pela diligente ação de sua velha companheira de um Real, constantemente corrigindo aquelas patacoadas através de sua nobre atuação.
Assim o tempo foi passando e, já fartando-se daquela vida careta de um Real, a moedinha enfim buscou abandonar sua presa e voltar às suas francas iniquidades. Mas, óbvio, que antes deveria tripudiar sobre aquela que sequer aparentava desconfiar de seu tosco disfarce:
- Ei, Noventa e Quatro. Vamos àquele canto mais afastado que quero contar-lhe uma coisa.
- Certo, Dois Mil e Doze. Não quer terminar primeiro o seu milkshake?
- Não, não… Já estou cheia. Venha comigo agora. - E, tomando a mão de sua companheira, praticamente arrastou-a pela lanchonete do cofre até uma esquina, longe das vistas dos demais.
Chegando lá, arrancou o papel dourado e revelou sua real face à Noventa e Quatro. Antes que esta pudesse esboçar qualquer reação, logo pôs-se a murmurar friamente para ela:
- Imbecil, eu não sou tua amiga. Sequer sou do mesmo valor que você. Sou uma moeda de um centavo, uma das últimas guerreiras, que resiste graças à minha esperteza. Sabe por que estive contigo todo este tempo? Porque queria tirar proveito de você enquanto fugia dos homens que querem recolher-me. Mas, como você e esse seu mundinho lindo e maravilhoso são um saco, resolvi dar no pé. Fique aí, com sua solidão. Espero que recolham-te logo, e vou rir da tua cara quando for para a reciclagem. Com certeza verei esse dia, porque sou boa demais para ir antes de você, hahaha!
Aliviada de dizer tantos desaforos represados em sua garganta àquela desagradável idiota de um Real, pôde finalmente respirar e contemplar sua reação, no que teve outra surpresa: esta deu-lhe um sorriso estampado de ponta a ponta, sem esboçar a mínima reação de surpresa ou chateação. Contrariada, a moedinha de um centavo não pôde esconder sua confusão.
Então, Noventa e Quatro limitou-se a dizer-lhe isto:
- Eu sabia de tudo o tempo todo, assim como todas as demais sabiam. Apenas aceitei tua companhia porque eu precisava disto e, por um tempo, para mim foi bastante divertido tudo o que se passou. Posso dizer que você ajudou-me a recuperar a consciência de mim, e agora posso finalmente ser quem verdadeiramente sou - e que nunca deixei de ser.
O centavo ficou boquiaberto. Noventa e Quatro, já de saída, completou:
- Sempre soube que você era falsa e sem valor.
E, sem maiores delongas, virou as costas e partiu, sentando-se à mesa de algumas outras moedas antigas de um Real, ali perto, logo enturmando-se e dando gostosas risadas.
A moedinha de um centavo acompanhou perplexa a partida de sua antiga companheira, e finalmente sentiu aquilo que com certeza causara em inúmeras vítimas de suas traquinagens e golpes: vergonha. Por fim, seguiu por um beco e desapareceu.
Hoje a moeda de um Real ainda passeia aqui e acolá pelo cofre, cada vez mais popular e distinta, pois é reconhecida como uma das raras da antiga geração ainda circulando - e sem perder o seu valor.
Quanto à moedinha de um centavo, nunca mais ouviu-se falar dela.