Diário do lado de cá - III - Entrevista com um neonato, parte 3 - Oráculos de outro mundo
Orfeu se levantou e foi até a janela. Não seria digno das memórias de Zara sentido fazer anotações nesse momento, e ele abandonou o caderno. Além do quê, disse o instinto de Orfeu, ele se lembraria de tudo quando fosse a hora certa para escrever. Ele apoiou seus braços no batente da pequena e alta janela e olhou para baixo, para ver uma grande movimentação de pessoas indo em direção à Praça de Sator para atender à feira das ilhas. Esse evento bimestral movimentava todas as camadas da sociedade de Xibalba: Pobres e ricos, mortos-vivos e buscadores, neonatos e renascidos; Apesar de que as intenções e a apresentação de cada um mantinha clara a estratificação social.
Orfeu viu casais e famílias bem arrumadas, homens de cartolas e chapéus-coco de braços dados com madames com longos vestidos, algumas cobrindo do tronco até os braços - algo irracional, notou ele, no clima quente de Xibalba e sob aquele forte sol do Mês do Chamado, mas era o preço a se pagar pela moda - e outras ligeiramente mais expostas na vestimenta, com algum decote aqui e outro lá, mas quase todas faziam uso de cores fortes na roupa, com rendas e padrões coloridos. As mais pobres, que não podiam pagar por uma costura ou coloração mais elaborada, misturavam os arranjos para exibir a mais rica paleta possível, mas mesmo assim eram limitadas à cores mais apagadas, ou se utilizavam de métodos hashmal, no caso das neonatas. Uma boa parte se abanava com leques, ou se cobria com guarda-sóis coloridos, e era muito comum entre as mulheres de Xibalba usar tiaras com penas coloridas, reminiscentes de cocares indígeno-americanos, que davam um toque exuberante até à combinação mais simples, e contribuía grandemente para fazer daquela rua um desfile de cores.
A maioria dos homens tinha um estilo mais sóbrio e menos colorido - pois o excesso de cores era associado com a feminilidade - com suspensórios marrons ou pretos, botas ou chinelos simples e camisas que geralmente exibiam alguma cor única - Apesar de ser uma única cor, em muitos casos era tão forte como as muitas cores das mulheres. Muitos usavam cartolas, chapéus-coco ou boinas - de acordo com a classe social, claro - e alguns, os mais brutos, exibidos (ou talvez racionais) andavam sem camisa.
A moda de Xibalba lembrava Orfeu majoritariamente de algo europeu, do que era chamado do lado de lá de estilo Renascentista, como na Veneza dos séculos XV e XVI, mas o clima do arquipélago era mais próximo daquele do Caribe, e ele gostava de imaginar que a estética das ilhas caribenhas em plena época de colonização européia não devia ter sido muito diferente. No entanto, os padrões de cores e formas eram exóticos demais para serem definidos com apenas uma comparação geográfica e temporal: Havia um quê de exótico, ora polinésio, ora inca, ora hippie, e ora até mesmo egípcio antigo que permeava a cidade. O sincretismo não apenas enfeitava a rua de vestidos europeus acompanhados de cocares indígenas, mas também abria margem para improvisos estéticos que eram totalmente alienígenas para ele.
A arquitetura também era sujeita a essa aglomeração cultural: As casas do centro da cidade eram majoritariamente renascentistas, porém mais holandesas do que italianas: Pequenas porém altas e grudadas umas nas outras, com varias janelinhas simetricas, e haviam algumas construções misteriosas, mais antigas que as outras, que dispunham fachadas mais simples porém com algo glorioso e arcaico nelas, retas porém imponentes como algo egípcio ou sumério.
E claro, havia um ou outro morto-vivo na multidão. A maioria vinha das favelas ao sul da cidade, e a rua da casa de Orfeu e Zara não era farta deles por vir desde a região chamada de Os Pequenos Vales, ou apenas Os Vales, ao norte, habitada pela camada mais alta da sociedade - daí o fluxo tão exuberante - e passava pelo centro, adicionando à mistura. Os mortos-vivos deveriam ser trabalhadores dos vales ou do centro, supôs Orfeu, pois dificilmente saíam de tais posições. Eles andavam devagar, calados, cabisbaixos , com roupas escuras e sem enfeite, entristecendo esse fluxo. Apesar de que a maioria dos mortos-vivos pertencia as camadas mais baixas da sociedade, ambos não são sinônimos, e alguns trabalhadores pobres conseguiam escapar da conversão e da pressão grupal de uma boa parte das favelas, para poder se enfeitar e se vestir de acordo com a necessidade por cores e disfarçar seu status, expressando-se vividamente naquela massa.
"Diário do lado de cá - Adendo 12
Um dos maiores mistérios da vida após a morte são os estranhos efeitos sobre a memória dos recém-renascidos.
A maior parte dos renascidos não se lembra de detalhes conscientes de sua vida. No geral, apenas fragmentos subconscientes restam, que se manifestam em sonhos, na cultura e na linguagem, ou, como também é normal, poucos momentos ou pessoas marcantes de suas vidas, o que em muitos casos inclui a cena da própria morte.
Uma minoria significativa, a qual eu pertenço, consegue se lembrar, além desses momentos, do mundo do lado de lá: De fatos e conhecimento histórico, cultural, geográfico, científico e artítstico, por exemplo (mas mesmo assim, praticamente nada da própria vida passada). Somos chamados de "Delfínicos" ou "Oráculos", em uma antiga referência ao dom da profecia da cultura grega clássica, concedido pelo deus Apolo à seus escolhidos, pois para os habitantes das ilhas que não conhecem nada do lado de lá, sejam neonatos ou amaldiçoados, parecemos trazer conhecimento exótico e inovador sobre um mundo estranho, vindo de uma fonte desconhecida - como o arquétipo de um oráculo
Peço desculpas aos que não entendem o que nós Delfínicos dizemos: Eu tentei meu melhor para me expressar apenas com termos do lado de cá, mas é difícil traduzir tudo que passa na mente de alguem que viveu a vida inteira em um mundo para termos de outro. Esse livro provavelmente será apreciado e compreendido na íntegra apenas por outros Delfínicos ou pessoas que tenham algum estudo sobre a outra vida. Infelizmente, talvez apenas esses consigam entender as minhas referências à culturas e nomes do lado de lá. "
A população era diversa: O renascimento não discriminava étnica ou geograficamente, e pessoas de vários tipos físicos e cores de pele andavam pela rua. Apesar de que a maioria dos renascidos não lembrar de detalhes sua vida passada conscientemente, cada nova pessoa que aparecia na praia de Bifrósia parecia trazer um pouco de sua ideologia, ética, estética e cultura subconscientemente, o que fazia da cidade um verdadeiro mosaico humano após a morte.
"Exemplificando: Oráculos lembram-se de como era o mundo do lado de lá - lembram-se do formato dos continentes, da História, da cultura e de figuras famosas - até onde tiveram contato, claro. O nível de contato que cada um pode ter com o mundo que vive, no entanto, é debatido como extremamente limitado, o que leva algumas pessoas a desafiar o status elevado de óraculo atribuído aos Delfínicos"